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    Urariano Mota

    Autor de “Soledad no Recife”, recriação dos últimos dias de Soledad Barrett, mulher do Cabo Anselmo, entregue pelo traidor à ditadura. Escreveu ainda “O filho renegado de Deus”, Prêmio Guavira de Literatura 2014, e “A mais longa duração da juventude”, romance da geração rebelde do Brasil

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    A música da ditadura no Brasil

    Nos limites de um artigo ligeiro sobre os compositores brasileiros na ditadura, anoto:

    Protesto contra a ditadura militar (Foto: Wikimedia Commons)

    Chico Buarque, para o seu talento e o gênio, informa a Wikipédia que ele, nascido em 19 de junho de 1944, “é um cantor, compositor, violonista, dramaturgo, escritor e ator brasileiro. Ganhou destaque como cantor a partir de 1966, quando lançou seu primeiro álbum, Chico Buarque de Holanda, e venceu o Festival de Música Popular Brasileira com a música A Banda. Autoexilou-se na Itália em 1969, devido à crescente repressão do regime militar do Brasil nos chamados “anos de chumbo”, tornando-se, ao retornar, em 1970, um dos artistas mais ativos na crítica política e na luta pela democratização no país”.

    1970 Apesar de Você (original) - Chico Buarque

    Isso para fazer um resumo violentador, injusto ao extremo, para a obra genial do compositor. 

    Para Gilberto Gil, nascido em 26 de junho de 1942, a Wikipédia registra; 

    “é um cantor, compositor, multi-instrumentista, político e escritor brasileiro. Vencedor de prêmios Grammy Awards, Grammy Latino e galardoado pelo governo francês com a Ordem Nacional do Mérito (1997). Em 1999, foi nomeado ‘Artista pela Paz’, pela UNESCO[.
    Preso pela ditadura, junto com Caetano Veloso, em 13 de dezembro de 1968. Em fevereiro de 1969, foram soltos e “aconselhados” a deixar o Brasil. Amargou Londres no exílio. incluído posteriormente em São Paulo e no Rio de Janeiro. Ao saírem do regime de confinamento, se apresentaram em um espetáculo de despedida, no Teatro Castro Alves. Posteriormente, partiram, Gil e Caetano, com suas respectivas esposas para o exílio”.

    Aqui, um registo do seu tempo de angústia em Londres: 

    Back in Bahia Gilberto Gil - “Back In Bahia" - Expresso 2222

    Sobre Caetano Veloso, nascido em 7 de agosto de 1942, a enciclopédia virtual fala:

    “é um cantor, músico, produtor, arranjador e escritor brasileiro. Com uma carreira que ultrapassa cinco décadas, Caetano construiu uma obra musical marcada pela releitura e renovação e considerada amplamente como possuidora de grande valor intelectual e poético. Em 1967, saiu seu primeiro LP, Domingo, com Gal Costa, e, no ano seguinte, liderou o movimento chamado Tropicalismo, que renovou o cenário musical brasileiro e os modos de se apresentar e criar música no Brasil, através do disco Tropicalia ou Panis et Circencis, ao lado de vários músicos. Em 1968, face ao endurecimento do regime militar no Brasil, compôs o hino "É Proibido Proibir", que foi desclassificado e amplamente vaiado durante o III Festival Internacional da Canção. Em 1969, foi preso pelo regime militar e partiu para exílio político em Londres”.

    Numa ideia aproximada do tempo da ditadura, por exemplo, para a  composição Irene, de Caetano, os militantes socialistas interpretavam que a risada, na letra da canção, era uma metáfora para o som da metralhadora de Che Guevara na Bolívia. 

    Caetano Veloso - Irene (1969)

    Mas isso vinha da nossa imaginação carente de ação. A música era um elogio à risada da irmã de Caetano, Irene Veloso. Hoje, tal interpretação da risada de Irene daria pra rir.   

    Insisto, as canções linkadas acima são algo bem pálido em relação à riqueza e diversidade genial desses compositores. Não são representativas da sua criação. Apenas menciono, como uma passagem rápida de foguete. 

    Agora entro no objeto do texto. Quero dizer, para quem viveu sob a ditadura no Brasil, a música de Chico Buarque, de Caetano Veloso, de Gilberto Gil, de Geraldo Vandré, por exemplo, foram alimento espiritual e diria até mesmo alimento e bebida materiais. Tanto pela qualidade musical, quanto pelas letras e frases insinuadas, quase em código particular entre artistas e público, porque a censura e o terror eram grandes. Mas a nossa imaginação era livre, apesar de tudo. 

    Sem qualquer exagero, podemos dizer que gostar de Chico, de Caetano, de Gil, no tempo da ditadura, vinha a ser um atestado ideológico, um atestado de quem era de esquerda. Então podemos escrever que somente ousávamos declarar que éramos fãs desses artistas para os iguais a nós próprios: almas penadas nas trevas daquele tempo e resistentes. Como escrevi e publiquei no romance “A mais longa duração da juventude”, traduzido para o inglês por Peter Lownds sob o título de Never-Ending Youth: 

    “- É muito melhor compositor. Não acha? – Vargas me questiona.

    – Hum. Quem é maior? – respondo sem entender a pergunta. 

    - Caetano Veloso, é claro. Está dormindo? – Ele volta. 

    - Eu? Nada. Sim, Caetano Veloso é bom - falo. 

    - Ele não é bom. Ele é o melhor compositor da música popular brasileira – Vargas responde. 

    - Não, aí é demais – falo. – Olhe, já é uma batalha gostar de Caetano. Mas ver Caetano como o melhor é demais. 

    - Eu gosto de Caetano Veloso – Alberto fala. – Ele tem umas coisas boas. 

    - Boas?! – Vargas se exalta. – Ele é o melhor compositor da música brasileira.... – “de todos os tempos”, ele ia dizer. Hoje percebo que se conteve com uma modéstia do Barão de Itararé, que ia se chamar de Duque  mas baixou o título para Barão. E continuou Vargas:  – É o melhor! Caetano Veloso é o melhor compositor do tempo da revolução. 

    Olho em volta e percebo que nas mesas vizinhas se faz um silêncio. Todos nos escutam, concluo. Assuntos de música popular, no Brasil, são os que mais despertam interesse, depois do futebol. Mas na ditadura falar na altura da voz de Vargas, usando a palavra “revolução”, é demais. Nelinha lhe toca o braço e sussurra “cuidado”. Ele sorri: 

    - Tranquilo, minha santa. Estou falando de cultura. 

    - Estamos falando sobre música, não tem problema – Alberto fala. 

    - E tudo é revolucionário, não é? – Vargas completa. – O cinema de Glauber é revolucionário, a juventude é revolucionária, tudo é revolucionário. Menos Chico Buarque. 

    Todos riem. Ocorre o que às vezes se chama brincar com o perigo. Zombar do abismo. Mas na hora o que me ocorre é o cometimento de uma injustiça. 

    - Eu não acho – falo. – Chico, para mim, é o melhor compositor de música popular brasileira hoje. Ele tem uma poesia que não tem Caetano. Chico é de fazer música, não é de dar espetáculo. Caetano é escandaloso, entende? 

    - A revolução é um escândalo! – Vargas quase grita. Alberto ri, Nelinha sorri para o companheiro, que se vê estimulado. – Chico é o compositor de Carolina, Januária na janela. É o poeta dos olhos verdes das meninas. Isso é revolucionário? Preste atenção: a música de Chico é o passado. Ele é um compositor de 1960 pra trás. 

    - Olhe... – eu queria dizer, se compreendesse então, que Chico ligava a tradição à música de 1970, assim como Paulinho da Viola fez essa ligação como samba. Mas há um tempo em que possuímos o sentimento, mas não encontramos as palavras, que ainda não nos chegaram pela experiência. Então arquejo, como um náufrago, diante da catilinária. – Olhe, você quer poesia melhor que ... – e tento cantarolar “se uma nunca tem sorriso, é pra melhor se reservar...” – que “a dor é tão velha que pode morrer”, hem? – E baixo a voz: - Chico é a esquerda do futuro. 

    - Ele não é nem do presente – Vargas responde. – Que dirá do futuro. Preste atenção, muita atenção: “sei que um dia vou morrer de susto, de bala ou vício”. Escutou? Esta é a música de agora, dos jovens revolucionários de hoje.

    - Isso não é de Caetano. É de Gil, Torquato e Capinam – falo. 

    - De Gil? – Vargas responde. – Não importa. Está no disco de Caetano. Ele fez da música um hino revolucionário. Isso é o que importa”. 

    E a discussão corria noite adentro em 1972. Os foquistas, como chamávamos aos guerrilheiros urbanos, que assaltavam bancos para arrancar dinheiro para a revolução, os foquistas eram partidários de Caetano Veloso e Gilberto Gil. Já os partidários do movimento de massa para derrubar a ditadura, como os comunistas do Partido Comunista do Brasil, Partido Comunista Brasileiro e Ação Popular Marxista-Leninista, estávamos ao lado de Chico Buarque, Paulinho da Viola e Geraldo Vandré. Hoje, à distãnia, podemos ver que os dois lados estavam certos em suas ambições estéticas. Os geniais compositores, agora com mais de 80 anos de idade, continuam suas fecundas jornadas. 

    No presente, vemos que nós não amávamos apenas a música. Nós queríamos tudo, todo o céu na terra. Nós éramos as almas vivas do nosso tempo.  Aquela   história não morreu, os grandes compositores nos cantam até agora: ainda estamos aqui. 

    * Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.

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