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      Marcelo M. Nogueira

      Ggraduado em Direito e mestre em Políticas Públicas e Formação Humana pela UERJ. Pesquisador em direitos humanos (UFRJ e PUC-RS), foi coordenador executivo da ABJD e atua como colaborador da Comissão de Estudos e Combate ao Lawfare da OAB-RJ)

      1 artigos

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      A necropolítica ontem e hoje: quando o Estado decide quem pode morrer

      O genocídio negro não é um erro do sistema — ele é o próprio sistema em operação

      (Foto: Marcello Casal Jr / Abr)

      A ditadura militar brasileira (1964-1985) não foi apenas um regime de cassações, tortura e censura contra militantes de esquerda. Foi também um projeto de extermínio da população negra e pobre, executado por meio de políticas de Estado e da ação de esquadrões da morte. Enquanto o governo militar vendia a imagem de um país de “democracia racial”, corpos negros eram sistematicamente caçados nas periferias. Essa máquina de morte, que o filósofo Achille Mbembe chamou de necropolítica, não foi desativada com a redemocratização. Pelo contrário: o Brasil contemporâneo opera sob um estado de exceção permanente, conceito elaborado por Giorgio Agamben, no qual o Estado administra a necropolítica, decidindo quem merece viver e quem pode ser eliminado.

      O Mito da Democracia Racial e a Perseguição ao Movimento Negro

      A resistência negra no Brasil é histórica. Desde os tempos coloniais, comunidades negras escravizadas resistiram à violência do Estado e do regime escravocrata, formando quilombos, como o de Palmares, e protagonizando levantes e fugas em massa. Essa luta pela liberdade e dignidade atravessa os séculos e se reconfigura diante das formas contemporâneas de opressão.

      Durante a ditadura militar, essa resistência seguiu viva, apesar da repressão brutal. Em 1978, o Movimento Negro Unificado (MNU) surgiu em São Paulo com um protesto público contra o racismo e a violência policial. Mesmo antes disso, diversas organizações e militantes negros enfrentaram a censura e a perseguição política, dando continuidade a uma longa trajetória de luta iniciada há séculos.

      Enquanto os generais propagavam o discurso de uma nação racialmente harmoniosa, a realidade era outra: jovens negros eram executados nos porões da ditadura ou mesmo nas próprias favelas e comunidades periféricas,

      Dados do Projeto Brasil: Nunca Mais indicam que, embora uma parte considerável dos presos políticos perseguidos pelo regime golpista fosse de classe média branca, muitos militantes negros também foram alvo da repressão — seja como integrantes de várias  organizações de esquerda, seja como lideranças comunitárias. A historiadora Ynaê Lopes dos Santos lembra que a ditadura “sistematizou a violência contra brancos de classe média”, mas a população negra já vivia sob esse terror há séculos. 

      Do Controle Social ao Extermínio: A Lógica da Necropolítica

      Michel Foucault cunhou o termo biopoder para explicar como o Estado moderno passou a administrar a vida das pessoas. No Brasil, entretanto, esse controle sempre foi seletivo. Durante a ditadura militar, o biopoder se transfigurou em necropolítica — um sistema no qual o Estado não apenas abandona certos grupos, mas ativamente os elimina. 

      A militarização das favelas e comunidades periféricas, iniciada nos anos 1960, serviu como campo de experimentação para as estratégias repressivas do Estado, consolidando uma política de controle e extermínio direcionada às populações negras e pobres.

       Hoje, os resultados estão evidentes: mais de 80% das vítimas de operações policiais no Rio de Janeiro são negras. O discurso oficial chama isso de “segurança pública”, mas os números revelam outra realidade: um genocídio em curso.

      Vida Nua: Quando o Estado Trata Gente Como Lixo

      O filósofo italiano Giorgio Agamben fala da “vida nua” — a condição de quem é tratado como descartável, sem direitos ou proteção. Na ditadura militar, os pobres e negros já viviam nesse limbo. Hoje, o cenário pouco mudou.

      Quantos corpos negros caem todos os dias sem que a sociedade sequer se comova? Quantos jovens são eliminados como “suspeitos” antes mesmo de qualquer investigação e julgamento? O Estado age como se algumas vidas valessem menos — e, pior, como se essa fosse a ordem natural das coisas.

      A  Resistência Continua, Mas o Estado Ainda Mata

      Em 2019, a Coalizão Negra por Direitos emergiu como herdeira direta da luta contra a ditadura. Suas bandeiras — fim do genocídio negro, reparação histórica e justiça — mostram que a necropolítica não é um fantasma do passado. Trata-se de uma política de Estado que segue operante.

      Recentemente, o STF aprovou novas regras para operações policiais no Rio de Janeiro, exigindo câmeras, ambulâncias e investigação de mortes em 60 dias. Um avanço? Talvez. Mas ainda permite operações policiais próximas de escolas e hospitais, o que é inaceitável. Enquanto o Estado continuar tratando vidas negras como perdas aceitáveis em sua política de segurança, qualquer mudança será apenas cosmética.

      "Quantos mais terão que morrer para que essa guerra acabe"? - Parafraseando Marielle

      O Brasil nunca encarou de frente seu passado escravocrata nem a violência institucionalizada herdada da ditadura militar. Por isso, a necropolítica segue viva — e seu alvo continua tendo cor e endereço: é negra, é pobre, é favelada. A cada operação policial, a cada corpo caído no asfalto quente da periferia, o Estado reafirma quem considera matável.

      Enquanto o racismo estrutural for ignorado e a polícia seguir agindo como braço armado dessa lógica de extermínio, seguiremos presos em um ciclo de morte e impunidade. Como alertou Angela Davis, “Não basta não ser racista; é preciso ser antirracista”. E hoje, ser antirracista é exigir o fim das chacinas, a responsabilização dos agentes do Estado que matam, e a desmilitarização urgente da segurança pública.

      O genocídio negro não é um erro do sistema — ele é o próprio sistema em operação. E diante disso, é impossível não ecoar o grito de Marielle Franco, brutalmente silenciada por denunciar essas mesmas violências: “Quantos mais terão que morrer para que essa guerra acabe?” A resposta ainda está sendo escrita com sangue. Mas a luta organizada segue — porque só ela pode interromper esse projeto de morte.

      * Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.

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