A opinião de um Insider: a tragédia do Deep State dos EUA
A princípio, eu havia arquivado e esquecido algumas banalidades de Henry, o K. Mas, então, alguém que já ocupou uma posição de destaque no altíssimo escalão do Deep State dos Estados Unidos mostrou que ele havia prestado muita atenção
Por Pepe Escobar, para o Strategic-Culture
Tradução de Patricia Zimbres, para o 247
Henry Kissinger, 97 - Henry, o K., para os que ele mantém próximos - é ou um pensador estratégico ao estilo oráculo de Delfos ou um criminoso de guerra de papel passado, para os mantidos não tão próximos assim.
Ele agora parece ter tirado uma folga de sua especialidade, o Dividir para Dominar de sempre - e passado a aconselhar o combo por trás do Presidente dos Estados Unidos, também conhecido como o Boneco de Teste de Colisão - a emitir algumas pérolas de realpolitik.
Em um recente fórum realizado no Arizona, referindo-se ao inflamado e descomunalmente importante conflito sino-americano, Henry, o K. disse: "É o maior problema para a América; é o maior problema para o mundo. Por que, se não conseguirmos resolvê-lo, há o risco de, por todo o mundo, uma espécie de guerra fria vir a se desenvolver entre a China e os Estados Unidos".
Em termos de realpolitik, essa "espécie de guerra fria" já começou. Por todo o Beltway, a China é unanimemente vista como a maior ameaça à segurança nacional dos Estados Unidos.
Kissinger acrescentou que a política dos Estados Unidos em relação à China deve combinar a ênfase nos "princípios" norte-americanos, para exigir o respeito da China, e o diálogo, para encontrar possíveis áreas de cooperação: "Não estou dizendo que a diplomacia sempre levará a resultados benéficos... Essa é a tarefa complexa que temos pela frente... Ninguém jamais conseguiu total sucesso".
Henry, o K., na verdade, deve ter perdido de todo a noção - em questões de diplomacia. O Chanceler chinês Wang Yi e o Chanceler russo Sergey Lavrov estão, no momento, dedicados em tempo integral a demonstrar - principalmente ao Sul Global - que a "ordem internacional baseada em regras" impingida à força pelos Estados Unidos não tem absolutamente nada a ver com o direito internacional e com o respeito pela soberania nacional.
A princípio, eu havia arquivado e esquecido essas banalidades de Henry, o K. Mas, então, alguém que já ocupou uma posição de destaque no altíssimo escalão do Deep State dos Estados Unidos mostrou que ele havia prestado muita atenção.
Essa personalidade - que iremos chamar de Mr. S. - vem sendo uma de minhas inestimáveis e valiosas fontes desde inícios dos anos 2000. Confiança mútua sempre foi o fator-chave. Perguntei a ele se eu poderia publicar passagens selecionadas de suas análises, sem citar nomes. Um relutante consentimento foi dado. Portanto, apertem os cintos.
Dançando com Mr. S.
Mr. S., de forma bastante intrigante, parece estar expressando a opinião coletiva de diversas personalidades extremamente qualificadas. Desde o início, ele aponta que as observações de Henry, o K., explicam o atual triângulo Rússia-China-Irã.
O primeiro ponto que queremos colocar é que não foi Kissinger que formulou políticas para Nixon, e sim o Deep State. Kissinger era só um mensageiro. Na situação 1972, o Deep State queria sair do Vietnã, política essa que foi montada para conter a China Comunista e a Rússia.
Ele continua:
O Deep State planejava alcançar uma série de objetivos ao se aproximar do Presidente Mao, que era antagonizado pela Rússia. Em 1972, eles queriam se aliar à China contra a Rússia. Isso fez com que o Vietnã perdesse todo e qualquer sentido, pois a China se tornaria a parte incumbida da contenção da Rússia, e o Vietnã deixava de ter importância. Nós queríamos usar a China para contrabalançar a Rússia. Em 1972, a China não era uma grande potência, mas poderia ajudar a exaurir a Rússia, forçando-a a posicionar tropas de 400 mil homens na fronteira entre os dois países. E a política de nosso Deep State funcionou. Fomos nós, no Deep State, que formulamos essa ideia, e não Kissinger. Tropas de 400 mil homens na fronteira chinesa abririam um rombo no orçamento russo, como mais tarde ocorreria com o Afeganistão, com mais de 100 mil homens, e o Pacto de Varsóvia, com outros 600 mil.
O que nos leva ao Afeganistão:
O Deep State, em 1979, queria criar no Afeganistão um Vietnã para a Rússia. Eu fui um dos que se opuseram, porque isso iria, desnecessariamente, usar o povo afegão como carne de canhão, o que seria injusto. Fui voto vencido. Aqui, Brzezinski fazia o papel de Kissinger: uma outra nulidade superestimada que não fazia nada além de levar e trazer mensagens.
O Deep State decidiu também derrubar o preço do petróleo, o que enfraqueceria economicamente a Rússia. E isso funcionou em 1985, levando o preço a oito dólares o barril, o que devorou metade do orçamento russo. Então, nós praticamente demos licença a Sadam Hussein para a invadir o Kuwait, como manobra para enviarmos nosso exército avançado para expulsá-lo, demonstrando ao mundo nossa superioridade em termos de armamentos, o que desmoralizou muito a Rússia e colocou o temor a Deus no petróleo islâmico. Então, inventamos a ficção da Guerra nas Estrelas. A Rússia, para nossa surpresa, esmoreceu e entrou em colapso.
Mr. S. define todo o descrito acima como algo "maravilhoso", em sua opinião, porque "o comunismo saiu e a cristandade entrou":
Nós, então, queríamos aceitar a Rússia na comunidade das nações cristãs, mas o Deep State pretendia desmembrá-la. Isso foi estúpido, porque eles serviriam de contrapeso à China, pelo menos de seu ponto de vista mackinderista. Foi ingênuo de minha parte ter esperança em um retorno ao cristianismo, uma vez que o Ocidente se dirigia rapidamente à total desintegração moral.
Enquanto isso, nossa aliada China continuava a crescer, porque não havíamos ainda concluído o desmembramento da Rússia, e os consultores que enviamos à Rússia destruíram toda a economia do país nos anos 1990, indo contra minhas objeções. O bombardeio de Belgrado, que durou 78 dias, fez a Rússia finalmente acordar e dar início a uma remilitarização maciça, uma vez que estava óbvio que a intenção era, ao final, bombardear e arrasar Moscou. Portanto, mísseis defensivos passaram a ser de importância essencial. Daí o S-300, o S-400, o S-500 e, pouco mais tarde, o S-600s.
O Deep State havia sido avisado por mim, em nossas reuniões, de que bombardear Belgrado, em 1999, faria com que a Rússia se remilitarizasse, mas fui voto vencido. Belgrado foi bombardeada por 78 dias, bem mais que os dois dias que duraram o bombardeio por vingança de Hitler. E a China continuava a crescer.
Por que o equilíbrio de poder não funciona
O que nos traz a uma nova era - que, na prática, começou com a China anunciando as Novas Rotas da Seda, em 2013; e com Maidan, em Kiev, em 2014:
A China acorda para tudo isso e começa a se dar conta de que havia simplesmente sido usada, e que a frota dos Estados Unidos controlava agora todas as suas rotas de comércio. Ela decide se aproximar da Rússia em 2014, mais ou menos na mesma época em que testemunhava a derrubada de Maidan, na Ucrânia. Essa derrubada foi organizada pelo Deep State, que então começou a entender que havíamos perdido a corrida armamentista e sequer sabíamos muito bem o que estava acontecendo.
O Deep State queria atrair a Rússia para um novo Vietnã na Ucrânia para exauri-la economicamente, e novamente derrubar o preço do petróleo, o que de fato fizeram. Pequim estudou a situação e entendeu do que se tratava. Se a Rússia cair, o Ocidente irá controlar todos os seus recursos naturais, dos quais a China passava a depender, à medida que se tornava uma economia gigantesca, maior que a dos Estados Unidos. E Pequim passa a abrir caminho a uma relação amistosa com Moscou, na tentativa de obter recursos de base terrestre, como petróleo e gás natural da Rússia, de modo a evitar ao máximo precisar transportar recursos naturais por via marítima. Nesse meio tempo, Pequim acelera maciçamente a construção de submarinos porta- mísseis capazes de destruir as frotas dos Estados Unidos.
Então, onde Kissinger no Arizona entra nessa história?
Kissinger reflete a angústia do Deep State frente à relação Rússia-China, que ele quer ver rompida a qualquer custo. Kissinger se expressa de forma bastante interessante. Ele não quer falar a verdade sobre a realidade do equilíbrio de poder, que ele descreve como "nossos valores", quando os Estados Unidos, hoje, só tem como valores a anarquia, o saque e o incêndio de centenas de cidades. Biden espera poder comprar todas essas multidões privadas de qualquer direito enquanto imprime dinheiro em ritmo desvairado.
Estamos de volta, portanto, a Kissinger chocado com a nova aliança russo-chinesa. Os dois países têm que ser separados.
Eu não concordo com os conspiradores do equilíbrio de poder, que afirmam que a moralidade e os valores nobres, e não o poder, devem reger a política internacional. Os Estados Unidos vêm perseguindo sonhos de equilíbrio de poder desde 1900, e agora veem-se confrontados com a ruína econômica. Essas ideias não funcionam. Não há razão alguma para os Estados Unidos não serem amigos da Rússia e da China, e as diferenças podem perfeitamente ser solucionadas. Mas não se consegue dar sequer os passos iniciais, uma vez que considerações de equilíbrio do poder dominam tudo. Essa é a tragédia de nosso tempo.
* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.
iBest: 247 é o melhor canal de política do Brasil no voto popular
Assine o 247, apoie por Pix, inscreva-se na TV 247, no canal Cortes 247 e assista: