A polícia brasileira está cada vez mais evangélica, autoritária e violenta
Consequência de um cristianismo que nasceu como sistema político e não como religião
Você já se perguntou o porquê de só três séculos após a sua morte Jesus Cristo ter sido entronizado oficialmente como o salvador da humanidade? O Concílio de Nicéia pode nos ajudar a entender tal questionamento quando, a partir da romanização de um culto que, até então, era primitivo, foi estabelecido que um só Deus ao mesmo tempo seria três pessoas. Pai, filho e espírito santo. Algo que foi duramente contestado pelas igrejas reformadas e por outras religiões monoteístas, como o Judaísmo e o Islamismo, que não creem no caráter divino de Jesus Cristo como segunda pessoa da Santíssima Trindade. A questão é que tal conceito de Trindade divina já existia na religiosidade de outras civilizações, como, por exemplo, o Egito, cuja tríade era formada por Hórus, Ísis e Osíris, e na Índia por Brahma, Vishnu e Shiva. O que nos leva, na melhor das hipóteses, a deduzir que a doutrina da Igreja Católica Romana instituída após o referido concílio eclesiástico, 325 anos depois de Cristo, é uma apropriação cultural.
Convocado pelo Imperador romano Constantino I, o Concílio de Nicéia foi o divisor de águas da fé cristã. Diria até que a fé das pessoas foi lançada por água abaixo após a politização da espiritualidade dos fiéis em benefício do Estado. Com o objetivo de obter um consenso na Igreja com relação à natureza divina de Jesus e organizado aos moldes do senado romano, o Concílio determinou a construção da primeira parte do chamado Credo Niceno, uma profissão de fé dos 318 bispos que participaram da reunião. Uma simbologia imitada nos dias de hoje pela Igreja Universal de Edir Macedo e a sua “reunião dos 318 pastores". ” A ideia de um encontro ecumênico foi estabelecida, o que permitiria que as decisões tomadas no Concílio fossem universalizadas, o que faria com que a Igreja de Alexandria, palco onde se origina a discussão sobre a natureza divina de Jesus, fosse obrigada a acatar e se submeter às determinações do Concílio. As discussões sobre a origem do Cristo envolveram dois posicionamentos: se ele não teve começo e foi gerado pelo Pai a partir de seu próprio ser ou se teve começo e foi criado do nada. O primeiro posicionamento saiu vencedor, o que poderia nos levar a crer que a origem divina de Jesus é uma opinião humana. Ou não?
Constantino era um político hábil e soube se fazer passar por democrata ao ‘legalizar’ o cristianismo e estabelecer o fim da perseguição aos cristãos. Obviamente, tudo teria o seu preço e uma das faturas cobrava a destruição de tudo o que Jesus Cristo havia pregado. Principalmente, contra o sistema político. E assim, a Igreja Católica passou a ser um Estado de direito onde suas decisões e posicionamentos influenciavam a vida de todos os cidadãos na sociedade. O Papa, a figura infalível de Deus na terra, tinha poderes espirituais e temporais, fato que permitiu a concretização de absurdos como o santo ofício e as execuções de pessoas consideradas hereges na fogueira da santa inquisição. Avançando um pouco mais no tempo, nos deparamos com a Igreja sendo aliada nos processos de colonização europeia ao redor do mundo, onde civilizações foram vilipendiadas e tiveram seus territórios roubados e seus povos escravizados e dizimados sob a égide da expansão territorial, tendo as bênçãos de uma divindade estabelecida em consenso pelo poder do Estado. A essa altura dos fatos, Jesus Cristo era aliado do Estado que ele sempre combateu e que o assassinou por enxergá-lo como um subversivo, que autorizava em seu nome o roubo, a destruição e a morte em razão do progresso. Dessa forma, apenas dessa forma, o pobre palestino filho de uma mulher camponesa e de um pobre carpinteiro, poderia ser louvado como o “Rei dos Reis”.
Estamos diante de uma manobra diabólica do sistema político que conseguiu fazer com que opressores e oprimidos tivessem o mesmo Deus como salvador. Algo inimaginável para quem raciocina minimamente e entende que um deus que o oprime não pode lhe salvar. A não ser que eu me renda ou me converta a esse deus, esquecendo da minha condição de oprimido e excluído diante dele. É o que ocorre quando negros e indígenas, por exemplo, se convertem ao cristianismo sistêmico acreditando que serão salvos por um deus que lhes fora apresentado por seus opressores históricos. Eu fico imaginando o preto escravizado sendo chicoteado no tronco e clamando pela ajuda do deus europeu de olhos azuis que iria receber o seu algoz com todo amor em sua casa (Igreja), horas depois de ele ter lhe açoitado. Quanto sadismo por parte de um deus, não? Parece até um policial brasileiro que é pago para fingir que protege a todos, mas no fundo a sua proteção só é desfrutada por aqueles que instituíram a sua “autoridade”. O Estado e os seus descendentes, entre os quais não se incluem pretos, indígenas e demais culturas e religiões que não professam a “fé” de Constantino e de um sistema religioso cada dia mais alinhado ao poder estatal.
A polícia brasileira está cada vez mais convertida às Igrejas evangélicas e as suas diversas e nefastas vertentes. Fruto de um projeto de poder religioso que vem sendo pavimentado há mais de três décadas no país. A cooptação dos agentes de segurança do Estado se dá por meio de programas pretensamente de assistência espiritual, como o “Universal nas forças policiais”, lançado em 2018 e que já ganhou centenas de almas policiais para o Jesus estatal. Por coincidência, ou não, esse período remete a um aumento da violência policial no país, cujo alvo é a população mais pobre e periférica, majoritariamente composta por negros e indígenas. Não por coincidência, essas periferias têm sido tomadas por igrejas evangélicas que em muitas delas se associam ao tráfico e às milícias para estabelecer o reino do Jesus de Constantino nesses locais. Também por coincidência, muitas dessas localidades não permitem mais o culto de religiões de matriz africana e seus adeptos começam a sofrer perseguições e ameaças de morte caso insistam em cultuar outros deuses nesses territórios.
A conta fecha, pelo menos para mim, quando me deparo com um vídeo (https://www.instagram.com/p/C2nwk6hr_Oe/ ) no qual a polícia militar foi chamada para interromper o culto num terreiro de candomblé, sob uma denúncia de perturbação do sossego. Algo que se fosse aplicado às inúmeras Igrejas evangélicas existentes no país, onde o grito emitido pelos fiéis deve incomodar os ouvidos do próprio deus que eles louvam, teríamos que criar centenas de patrulhas para atender a demanda de ocorrências. No vídeo em questão, é possível ver um policial militar ameaçando prender o Babalorixá responsável pelo templo, porque o mesmo se recusava a entregar o seu ekete, uma espécie de chapéu que compõe a indumentária do sacerdote. Além da perseguição imposta por muitos líderes evangélicos, os religiosos de matriz africana agora precisam aturar policiais militares atuando como agentes de segurança do racismo religioso no país. E há quem diga que policiais ganham pouco e que deveriam ganhar mais. Eu não só discordo, como acho que deveriam ganhar menos. Em uma sociedade capitalista dinheiro representa poder, e quando este dinheiro cai nas mãos de um grupo de pessoas que já abusam do poder e da autoridade que possuem mesmo sem tê-lo em grande quantidade, as consequências podem ser drásticas para a parte da sociedade que sistematicamente é alvo desse grupo. Talvez, ganhando ainda menos, eles se identificassem mais com aqueles que eles oprimem e menos com aqueles que lhes autorizam a oprimir.
O que estamos acompanhando em Gaza pode já estar chegando a nós sem que muitos percebam. A ideia de um Estado teocrático e evangélico de direito vem ganhando forma diante da nossa impotência e omissão. É preciso promover um resgate cultural no país, como havia prometido o presidente Lula em seu programa de governo. Não podemos permitir que um grupo religioso siga atuando como uma eminência branca dentro de um Estado que atualmente tem um governante progressista e comprometido em combater as desigualdades e as injustiças sociais. Lula precisa reestruturar as polícias do país, nem que para isso ele tenha que apertar o reset e iniciá-las novamente. As estruturas policiais estão contaminadas pelo bolsonarismo e pelo cristianismo do Estado, o que tem aumentado a sua letalidade e ineficiência. É sempre bom lembrar a todos os policiais, sobretudo, aos autoritários e abusadores do poder – e, infelizmente, os bons também acabam tendo que ouvir – que é o povo quem paga os seus salários, inclusive aquela parte do povo que o Estado ordena que eles reprimam. Chegará um momento em que essa parte da sociedade não aceitará mais esse tratamento e as consequências podem ser ainda mais desastrosas para o coletivo. As pessoas podem até suportar a opressão por um tempo, mas não por todo o tempo.
* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.
iBest: 247 é o melhor canal de política do Brasil no voto popular
Assine o 247, apoie por Pix, inscreva-se na TV 247, no canal Cortes 247 e assista: