A psicanálise mais uma vez tratada como Geni
A crítica à Psicanálise conhecemos há anos e ela não se sustenta quando se faz um trabalho sério sobre os conceitos da psicanálise
Prof. Dr .Roberto Calazans
Profª Drª Rosane Zétola Lustoza
Natália Pasternak fez um bom trabalho de divulgação científica durante a pandemia ao explicar para a população porque a vacina era importante ser usada e a cloroquina, não. Mas sua posição se torna problemática quando, valendo-se da fama conquistada, tenta passar para a população em geral que é possível falar sobre todo e qualquer problema a partir de uma única régua: o dito método científico como modo de validação para todo e qualquer conhecimento. É o que ela faz na entrevista ao Estado de S.Paulo para lançar seu livro e de Carlo Orsi intitulado “Que bobagem! pseudociências e outros absurdos que não merecem ser levados a sério”. Ao fazer isso, ela e seu parceiro Orsi não percebem que não estão mais tratando de divulgação científica ou mesmo de método científico e sim sobre sistemas de validação de conhecimento. É muito comum alguém achar que saber algo sobre um campo de conhecimento lhe dá autoridade para falar sobre qualquer campo de conhecimento. Principalmente quando fala sobre a Psicanálise, que é nossa área de expertise e sobre a qual nos restringimos aqui a comentar.
A nosso ver, há algo que Natália Pasternak ignora completamente: pensar e estabelecer o modo de validação de um conhecimento é um campo de conhecimento específico. E ele se chama epistemologia. A crítica feita por Pasternak à Psicanálise ignora os próprios fundamentos de sua posição, a qual parte ora do falsificacionismo de Popper, ora da teoria de Mario Bunge. Só que os princípios de análise de Popper e Bunge foram criticados dentro da epistemologia, seja pelos seguidores de Gaston Bachelard, seja por Thomas Kuhn, seja por autores como Lakatos ou Feyerabend. Lembramos isso aqui apenas para frisar que a epistemologia tem seus debates internos. Ao achar que seus pressupostos não podem ser criticados, a pesquisadora empobrece demais sua análise.
Mas há algo mais preocupante nessa postura. Ao julgar que a verdade de todo e qualquer campo de conhecimento deva estar conforme ao critério da objetividade, ela reduz todo regime de produção da verdade à ciência. E isso tem outro nome no campo epistemológico: cientificismo. Pois ao adotar que a ciência é o único parâmetro para pensar a validação de conhecimento, acaba ignorando que podemos ter dimensões de problemas distintos em que o critério de objetivação não é pertinente. Esse campo de problemas é justamente o que as ditas Ciências Humanas pretendem abarcar. Este também é o campo da Psicanálise.
Três outros pontos nos saltam aos olhos também. Natália Pasternak diz que discordar dela é discordar de diversos autores que fizeram pesquisas e provaram a ineficácia da psicanálise. Este argumento não é científico, é de autoridade. E, ao menos o que sabemos sobre ciência, interrogar o princípio de autoridade é o passo inicial. Pois podemos - e encontramos - diversos artigos científicos que provam a eficiência da psicanálise em detrimento às outras psicoterapias. O segundo ponto é que parece ignorar como se deu o debate no campo das ciências humanas e o seu permanente tensionamento entre proposições. E o terceiro é que não leva em consideração que nas ciências humanas devemos levar em consideração seus impactos sociais. Se os Estados Unidos não ensinam mais psicanálise nas faculdades de psicologia é devido a um impacto social sobre a disciplina a partir da década de 1970 que não pode ser desvencilhado do impacto do neoliberalismo sobre aquela sociedade e o uso da psicologia, mais uma vez, como dispositivo de controle (Roberts, 2015; Cohen, 2015)..
Jean Ullmo já dizia que as Ciências Naturais deviam se afastar de algumas experiências, não por elas não serem reais, mas por não serem repetíveis. Não trata estas experiência a partir de uma métrica única ou a considera irreal, apenas como não pertinente ao método científico, sem julgar sua validade. Ora, as experiências históricas, sociais e subjetivas correspondem justamente a algo que não pode ser reproduzido artificialmente em laboratório. Isso as torna ciências de um tipo especial, caracterizadas pela pluralidade metodológica e pelas divergências sobre a forma mais adequada de conceber seu objeto.. Considerar que a querela metodológica das Ciências Humanas está ultrapassada e que foi superada por um método único é não só uma perspectiva ingênua como também autoritária.
A psicanálise - a nova velha Geni a quem vários gostam de tacar pedras e cuspir, pois gera engajamento midiático - não trata de problemas científicos, ela trata de problemas que a ciência não dá conta: como lidar e conviver com o Outro em um mundo dominado por senhores que querem determinar os modos de viver a partir de uma razão instrumental? Freud chamava isso de mal-estar na civilização. E esse mal-estar produz efeitos subjetivos da ordem do sofrimento. Ao lidar com esse problema, a psicanálise constitui uma clínica com princípios claros, com possibilidade de transmissão de conhecimento que não passa por uma repetibilidade que massifica os sujeitos. Ao contrário, ela vai dar conta desse impossível de massificação e da tensão entre massificar ou não. Daí, chega a ser pueril - ou uma tentativa de evitar o debate sério e amplo - reduzir o problema da psicanálise, seus princípios teóricos e sua clínica a saber se esta faz uso do método científico ou não. Afinal, algo que aprendemos com Gaston Bachelard é que, para se posicionar em um debate científico, antes de mais nada precisamos saber de qual problema se trata. Saber colocar os problemas é o primeiro passo e esse não foi dado por Pasternak e Orsi. Falta aí algum embasamento não de ciência e sim de epistemologia.
Por isso aquele trabalho de excelência que a entrevistada realizou durante a pandemia não pode ser autorizativo para falar sobre tudo. Mais ainda: epistemologicamente, a entrevista de Pasternak aponta para um retrocesso de mais de 150 anos. Como disse a colega Magali Silva em um telefonema: “nosso tempo tem que decidir sua forma de retrocesso. Ou é anticientífico ou faz da ciência uma religião de caça aos infieis. As duas não dá”. E é nesse segundo aspecto que passa-se de uma avaliação sobre cientificidade para o campo da denúncia. Pois ao ignorar a epistemologia e sair em busca de pseudociência, ao adentrar em uma dimensão de problemas que não é da ordem científica, passa-se do trabalho científico para a acusação moral. E aí isso é muito sério.
Pois devemos lembrar que foi em nome da ciência e da caça ao charlatanismo, em nome da ciência e da modernização que o Brasil da era Vargas modificou a estratégia de inferiorização e exclusão de comunidades indígenas, quilombolas e africanos no Brasil: criminalizando suas práticas rituais e de cura como charlatanismo e prendendo e proibindo essas práticas que fazem parte do modo de organização social das comunidades. Conferir o livro de Ynaê Lopes dos Santos (2022) sobre o Racismo Brasileiro para esse tópico. A confusão entre dimensões de problemas faz com que a gama de dados e informações coletadas por Pasternak e Rossi, conforme ela mesma diz na entrevista, não seja organizada historiograficamente, antropologicamente ou mesmo linguisticamente.pois a depreender da entrevista, da massa de dados não há interrogação sobre seu método de avaliação da psicanálise.
Daí ser um discurso, nesse caso específico, não apenas raso, mas sofista no sentido de não articular com precisão os conceitos da psicanálise, mas mistificá-los ao não procurar o sentido de seus axiomas, mas a vida do autor da Psicanálise, Sigmund Freud. E aí é que vemos o aspecto moral incidir não sobre a psicanálise, mas sobre seu autor e, daí, passar da persona dele para a crítica da teoria. Nesse aspecto, algo salta ao olhos da entrevista quando ela diz que há um endeusamento de Freud pelos psicanalistas e por pessoas cultas e que elas ignoram a história da psicanálise. É curioso ela achar que os psicanalistas não conhecem a história da psicanálise e de seu autor; ou não se interrogar porque os psicanalistas que conhecem história continuam sendo psicanalistas. Falamos por nós e não por todos os psicanalistas: se mantemos a posição de psicanalistas é por conhecer a história e a psicanálise e saber o quanto nossa disciplina pode se sustentar sem a idolatria à persona de Freud.
Mas aqui o curioso é que essa crítica à Psicanálise conhecemos há anos e ela não se sustenta quando se faz um trabalho sério sobre os conceitos da psicanálise, e não sobre a moral de seu autor - aliás, anedoticamente, há uma área na historiografia da Psicanálise que busca saber se, em uma viagem, Freud transou ou não com a cunhada. A nosso ver, essas anedotas são cortinas de fumaça para não analisar o problema do mal-estar na civilização que a Psicanálise coloca. Assim como são o denuncismo acerbo do Livro Negro da Psicanálise - onde encontramos todas essas mesmas críticas de Pasternak e Orsi - e já respondidas. Aliás, desde a década de 1990 que a ideia de fazer livros negros contando, de maneira dramática os ditos erros de duas teorias que colocam o problema do mal-estar na civilização viceja de maneira amplamente acrítica e, na verdade, tentam evitar que esses problemas seja mais uma vez recolocados: a psicanálise e o marxismo. E isso em nome do método científico.
Por último, sobre a crítica de que a psicanálise é aceita acriticamente por pessoas intelectualizadas: não podemos dizer o mesmo sobre quem acha que o método científico ao estilo positivista pode se impor a todo e qualquer problema de maneira açodada? Ao se aceitar acriticamente tal posição sem ao menos considerar o campo epistemológico da Psicanálise e seu debate, não se correria o risco de validar práticas políticas de exclusão das diferenças, tal como aconteceu na era Vargas?
*Este texto foi escrito em co-autoria com a Professora Doutora Rosane Zétola Lustoza do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Federal do Paraná
*Roberto Calazans é Professor Titular do Departamento de Psicologia e do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Federal de São João del-Rei e Doutor em Teoria Psicanalítica pela Universidade Federal do Rio de Janeiro. Foi Pró-Reitor Adjunto de Pesquisa e Pós-Graduação da Universidade Federal de São João del-Rei e também já foi bolsista de Produtividade em Pesquisa nível 2 do CNPq
*Rosane Zétola Lustoza é Professora Associada do Departamento de Psicologia e do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Federal do Paraná e Doutora em Teoria Psicanalítica pela Universidade Federal do Rio de Janeiro
* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.
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