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    Pepe Escobar

    Pepe Escobar é jornalista e correspondente de várias publicações internacionais

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    A Rodovia Pamir: a estrada no telhado do mundo

    As antigas Rotas da Seda eram uma apoteose de conectividade: ideias, tecnologia, arte, religião, enriquecimento cultural mútuo. Não foi por acidente que os chineses, com seu fino senso de história, identificaram o "legado comum da humanidade" como sendo a base conceitual-filosófica das Novas Rotas da Seda ou Iniciativa Cinturão e Rota, lideradas pela China

    (Foto: Pepe Escobar / Asia Times)

    Por Pepe Escobar, Rodovia Pamir, Tajiquistão, via Asia Times

    Tradução de Patricia Zimbres - Parte 1 de uma série de 2 partes 

    É bem possível que, em termos de viagem por terra, não haja nada de tão espetacular no mundo. Marco Polo passou por ela. Todos os lendários exploradores da Rota da Seda passaram por ela. Uma viagem ininterrupta pela Rodovia Pamir na época em que o inverno inclemente se aproxima, o que permite que ela seja apreciada em sua plenitude, em silêncio e na solidão, oferece não apenas um mergulho histórico na complexidade da antiga Rota da Seda, mas também um vislumbre do que o futuro pode vir a trazer na forma das Novas Rotas da Seda. 

    Essa é uma viagem encharcada da mágica história da Antiguidade. Os tadjiques traçam sua origem às tribos sogdianas, báctrias e partas. Os indo-iranianos viveram na Báctria ("o país das mil cidades") e na Sogdiana, dos séculos VI-VII A.C. até o século VIII A.D. Os tadjiques representam 80% da população da república e têm grande orgulho de sua herança cultural persa, sendo aparentados aos povos de língua tadjique do norte do Afeganistão e da região de Tashkurgan, em Xinjiang.

    Os proto-tadjiques e outros povos ainda mais antigos estiveram sempre na periferia de incontáveis impérios - desde os  aquemênidas, kushan e sogdianos até os greco-báctrios, o emirado de Bucara e a URSS. Hoje, um grande número de tadjiques vive no Uzbequistão vizinho - que vem agora apresentando um crescimento econômico explosivo. Em razão do desenho de fronteiras demente de Stalin, as lendárias Bucara e Samarcanda - cidades quintessencialmente tadjiques, hoje se encontram no "Uzbequistão". 

    O território da Báctria incluía o que hoje é o norte do Afeganistão, o sul do Tadjiquistão e o sul do Uzbequistão. Sua capital era a lendária Bactra (Balkh, como a chamavam os gregos), que levava o título informal de a "mãe de todas as cidades". 

    Sogdiana era chamada pelos gregos e romanos de Transoxiana: entre rios, o Amu-Darya e o Syr-Darya. Os sogdianos praticavam o zoroastrismo e viviam da agricultura arável baseada em irrigação artificial.

    Todos nos lembramos que Alexandre o Grande invadiu a Ásia Central em 329 A.C. Após conquistar Cabul, ele avançou para o norte e cruzou o Amu-Darya. Dois anos mais tarde ele derrotou os sogdianos. Entre os prisioneiros capturados estava um nobre báctrio, Oxyartes, e sua família.

    Alexandre se casou com a filha de Oxyartes, a deslumbrante Roxana, a mulher mais bela de toda a Ásia Central. Ele então fundou a cidade de Eskhata ("A Longínqua"), que hoje é Kojand, ao norte do Tadjiquistão. Em  Sogdiana e na Báctria, ele construiu doze Alexandrias, entre elas a Alexandria Ariana (que hoje é Herat, no Afeganistão) e a Alexandria Margiana (que hoje é Mary, anteriormente Merv, no Turcomenistão). 

    Em meados do século VI, todas essas terras haviam sido divididas entre os Kaganatos Túrquicos, o Império Sassaniano e uma coalizão  de reis indianos. O que sempre permaneceu imutável foi a ênfase na agricultura, no planejamento urbano, nas artes e ofícios, no comércio, na ferraria, na cerâmica, no artesanato em cobre e na mineração.

    A rota das caravanas que cruzam os Pamires - de Badakshan a Tashkurgan – é matéria de lendas no Ocidente. Marco Polo a descreveu como "o lugar mais alto do mundo". De fato, os Pamires eram conhecidos pelos persas como Bam-i-Dunya (traduzido apropriadamente como "o telhado do mundo"). 

    Os picos mais altos do mundo podem estar nos Himalaias, mas os Pamires têm algo de singular: situa-se ali a mais alta encruzilhada orográfica da Ásia, o divisor de águas a partir do qual irradiam as cordilheiras mais altas do mundo: Hindu Kush ao noroeste, a Tian Shan ao nordeste e a Karakoram e os  Himalaias a sudeste.

    As encruzilhadas imperiais máximas 

    Os Pamires são a fronteira meridional da Ásia Central. Para ir direto ao assunto, essa é a região mais fascinante de toda a Eurásia, agreste como nenhuma outra, abarrotada de picos de tirar o fôlego, de pináculos nevados, de rios rasgados por fendas geladas, de imensas geleiras - um espetáculo em escala imponente, feito de brancos e azuis com nuances de cinzas rochosos. 

    Eles também são quintessencialmente uma encruzilhada entre impérios – entre eles o lendário Grande Jogo russo-britânico do século XIX. Não é de admirar: imaginem uma encruzilhada elevada entre Xinjiang, o Corredor Wakhan, no Afeganistão, e Chitral no Paquistão. Pamir pode significar um "vale ondulante elevado". Mas os áridos Pamires Orientais bem poderiam ficar na lua - cruzados menos por humanos que por carneiros Marco Polo de chifres curvos,  por íbexes e iaques. 

    Incontáveis caravanas de mercadores, batalhões militares, missionários e peregrinos religiosos fizeram com  que a Rota da Seda de Pamir ficasse conhecida como a "estrada das ideologias". Exploradores britânicos como Francis Younghusband e George Curzon atingiram o Oxus superior e mapearam os passos elevados que levavam à Índia britânica. Exploradores russos como Kostenko e Fedchenko desbravaram o Alay e os grandes picos do Pamir setentrional.  A primeira expedição russa chegou nos Pamires em 1866, liderada por Fedchenko, que descobriu e deu seu nome a uma imensa geleira, uma das maiores do mundo. Quando o inverno se aproxima, é impossível caminhar até ela.

    E houve também os lendários exploradores da Rota da Seda, Sven Hedin (1894-5) e Aurel Stein (1915), que  pesquisaram a cultura histórica da região.

    A Rodovia Pamir, como versão atual da Rota da Seda foi, na verdade, construída pela União Soviética entre 1934 e 1940, seguindo as trilhas das antigas caravanas, como seria de se esperar. O nome da região permanece  soviético: o Gorno-Badakhshan Oblast Autônomo (GBAO). Para viajar na rodovia, é necessária uma autorização GBAO.

    Por nada menos que 2.000 anos - de 500 A.C. a inícios do século XVI - caravanas de camelos transportavam não apenas seda do Oriente ao Ocidente, mas também mercadorias de bronze, porcelana, lã e cobalto do Ocidente ao Oriente. Havia nada menos que quatro ramais diferentes da Rota da Seda no Tadjiquistão. As antigas Rotas da Seda eram uma apoteose de conectividade: ideias, tecnologia, arte, religião, enriquecimento cultural mútuo. Não foi por acidente que os chineses, com seu fino senso de história, identificaram o "legado comum da humanidade" como sendo a base conceitual-filosófica das Novas Rotas da Seda ou Iniciativa Cinturão e Rota, lideradas pela China.

    Sem modernização chinesa, nada de viagem

    Nas vilas de Gorno-Badakhshan, espalhadas por espetaculares vales fluviais, há séculos que a vida gira em torno da agricultura de irrigação e da pecuária de pastos sazonais. À medida que avançamos  rumo aos desérticos Pamires Orientais, a história se transmuta em uma narrativa épica: como os povos montanheses acabaram por se adaptar à vida em altitudes de até 4.500 metros. 

    Nos Pamires Ocidentais, as atuais obras de modernização foram feitas  - por quem mais? - pela China. A qualidade é equivalente à da Rodovia Karakoram, ao norte. As  empresas de construção chinesas vêm lentamente abrindo caminho em direção aos Pamires Orientais - mas a repavimentação de toda a rodovia pode levar anos. 

    O rio Pyanj traça uma espécie de enorme arco em torno da fronteira do Badakshão, no Afeganistão. Vemos vilarejos absolutamente espantosos empoleirados nas montanhas do lado oposto do rio, inclusive algumas casas boas, com um SUV em vez de um burro ou uma bicicleta. Hoje existe um bom número de pontes sobre o Pyanj, financiadas pela Fundação Aga Khan, substituindo as de antes, que não passavam de tábuas sustentadas por montes de pedras suspensas sobre precipícios vertiginosos.

    De Qalaykhumb a Khorog, e então até Ishkoshim, o rio Pyanj traça a fronteira afegã por centenas de quilômetros - atravessando matas de álamos e campos impecavelmente cultivados. Entramos então no lendário vale do Wakhan: um importante - e desértico ramal da Antiga Rota da Seda, com os espetaculares picos nevados do Hindu Kush ao fundo. Mais ara o sul, uma trilha de umas poucas dezenas de quilômetros leva a Chitral e a Gilgit-Baltistan, no Paquistão.

    O Wakhan não poderia ser mais estratégico – contestado, em diferente épocas, por pamiris, afegãos, quirquizes e chineses, e salpicado de qalas (fortalezas), que protegiam e tributavam as caravanas comerciais da Rota da Seda.

    A estrela entre essas qalas é a fortaleza de Yamchun, do século III A. C. – um clássico castelo medieval, que originalmente media 900 metros de comprimento e 400 metros de largura, incrustados em uma encosta rochosa praticamente inacessível, protegida por dois desfiladeiros profundos, com quarenta torres e uma cidadela. O lendário explorador da Rota das Sedas, Aurel Stein, que lá esteve em 1906, a caminho da China, ficou estarrecido. A fortaleza é conhecida no lugar como o "Castelo dos Adoradores do Fogo". 

    O Badakstão pré-islâmico era zoroastrista e adorava o fogo, o sol e o espírito dos ancestrais e, ao mesmo tempo, praticava uma versão distintamente badakstani do budismo. De fato, em Vrang encontramos vestígios budistas dos séculos VII e VII em cavernas  artificiais que talvez tenham servido de santuário zoroastrista em um passado ainda mais remoto. O monge peregrino da alta dinastia Tang, Xuanzang, ali esteve no século VII. Ele descreveu os monastérios e, significativamente, notou uma inscrição budista: "Narayana, vitória".

    Ishkoshim, que Marco Polo atravessou em 1271 a caminho do alto Wakhan, é o único ponto de cruzamento de fronteira para o Afeganistão aberto a estrangeiros nos Pamires. Falar de "estradas" no lado afegão é um exagero. Mas velhas trilhas da Rota da Seda continuam existindo, levando a Faizabad e, mais além, a Mazar-i-Sharif, embora só um robusto jipe russo seja capaz de enfrentá-las.

    Essas são os trechos da história da guerra contra o Afeganistão, com seus 18 anos de duração e custo de um trilhão de dólares,  que a montanha de mentiras contadas pelos americanos não consegue alcançar. A única "América" que chega até aqui são os DVDs de grandes sucessos de Hollywood, vendidos a 30 centavos cada. 

    Tive a enorme sorte de me deparar com um vislumbre dos verdadeiros Pamires: uma caravana de camelos, direta da antiga Rota da Seda, seguindo uma trilha no lado afegão do Wakhan. Eram nômades quirguiz. Há cerca de 3.000 nômades quirquiz no Wakhan, que gostariam de se reassentar em sua terra  natal. Mas eles se veem perdidos em um labirinto burocrático - mesmo supondo-se que possuam passaportes afegãos.

    Essas são as antigas Rotas da Seda, que o Talibã jamais conseguirá alcançar. 

    * Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.

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