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    Roberto Ponciano

    Escritor, mestre em Filosofia e Letras, especialista em Economia. Doutorando em Literatura Comparada

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    A segunda Inquisição contra o Padre Antônio Vieira

    Antônio Vieira passa por uma segunda Inquisição, tão burra e obscurantista como foi a primeira!

    Padre Antônio Vieira (Foto: Reprodução (YT))

    […] É possível que por acrescentar mais uma braça de terra ao canavial, e meia tarefa a mais ao engenho em cada semana haveis de vender a vossa alma ao diabo? Mas a vossa, já que o é, vendei-lha embora. Porém, as dos vossos escravos, por que lhas haveis de vender também, anteposto a sua salvação aos ídolos de ouro, que são os vossos malditos e sempre malogrados interesses?[…] Vieira, Sermões tomo II, Nossa Senhora do Rosário, p. 49, Ed. Hedra, São Paulo 2001.

    Nosso querido Stanislaw Ponte Preta, alter ego de Sérgio Porto, cunhou o Febeapá, Festival de Besteiras que assolam o Brasil, para consignar as boçalidades que grassavam no Brasil durante a ditadura militar, que fez das suas: teve prefeitura tentando cancelar a lei da gravidade; mandado de prisão para Sófocles e Stendhal; proibição de como comunista do livro “O vermelho e o preto”, além de outras coisitas mais. Mas, antes que pensemos que a estupidez é monopólio da direita, eis que, em 2023, em pleno Rio de Janeiro, outrora a capital cultural do Brasil e cidade vermelha, eis que uma lei que visa retirar as estátuas de escravistas do cenário da cidade, vemos o Padre Antônio Vieira na mesma lista em que constam o ex ditador Castelo Branco.

    A primeira coisa que me assalta é um espanto imenso e a certeza total e absoluta de que quem escreveu esta lista não tem a mínima leitura sobre Antônio Vieira. Acima está um pequeno trecho do Sermão de Nossa Senhora do Rosário, ou dos pretos, no qual, sim, o padre prega a resignação dos pretos diante da escravidão, mas não só isto.

    Antes de tudo é importantíssimo deslindar este sermão para que saibamos porque não, Antônio Vieira não era um escravista ou apologista da escravidão. Padre e teólogo da Companhia de Jesus, obviamente, não podia ser um abolicionista no Brasil do século XVII no Brasil, simplesmente porque inexistia movimento abolicionista. Versado em dialética, de Platão e Aristóteles a São Tomas de Aquino e Santo Agostinho, suas posições eram as mais progressistas do clero para aquela época. Apesar de ter sido escrivão da Inquisição, se posicionou contra ela e teve posições mais avançadas para época. A não distinção entre cristãos novos, convertidos do judaísmo e antigos (a eficácia e a universalidade da graça), a posição contra a escravidão dos indígenas e contra o instituto da escravidão em geral (inclusive da escravidão dos negros).

    Detenhamo-nos sobre este tópico no qual ele é acusado de ser um escravocrata. O cerne da bendição da Igreja Católica à escravidão negra era a defesa aberta de que os negros não tinham alma, como não tinham alma e não podiam ser salvos, era lícito que fossem escravizados, Antônio Vieira contradiz este cerne, do início ao fim do Sermão (não à toa, por seu inconformismo foi processado, julgado e condenado à prisão e ao silêncio pela Inquisição, que agora ganha o patrocínio luxuoso de uma certa esqueda no Brasil!).

    Ainda que no sermão do Rosário, o padre Antônio Vieira tenha pregado a resignação diante do cativeiro (e não a revolta), a pregação dele é compreensível primeiro diante da ideia geral da resignação e do sofrimento como válvula de salvação que é o motor do cristianismo primitivo. Partindo desta controvérsia da resignação, todos os movimentos dele são pró negros. O reconhecimento da igualdade absoluta entre negros e brancos, o discurso da abertura da salvação da alma, defendendo então claramente que os negros são seres plenos e iguais perante Deus, o que dá o motivo epistemológico para qualquer discurso abolicionista vindouro; a condenação de todos os suplícios corporais; a identificação do engenho e da senzala como inferno, dos senhores de engenho e seus capatazes como agentes do demônio, e o do sofrimento dos negros com o sofrimento e as chagas de Cristo.

    Bem, se este é o “apologista da escravidão” no século XVII devo dizer que todos meus professores que me ensinaram sobre Antônio Vieira eram umas bestas, me ensinaram muito mal, e que li os Sermões de Antônio Vieira de maneira muito equivocada. Gostaria de saber qual a outra forma de o ler, e realmente gostaria de saber se as pessoas que colocaram o padre nesta lista tiveram o mesmo trabalho que eu tive de ler os seus sermões.

    Para se entender a prática desta nova esquerda, em olhar o mundo de forma heterocrônica e ahistórica, em que a práxis deve se ajustar a uma narrativa, por mais que esta não tenha nenhuma base ou prova documental histórica, deve se entender como a troca da práxis pela “narrativa da pós modernidade” afeta nossa esquerda (duvido mesmo que tenham lido algum).

    Esta bobajada de narrativas sem provas, sem fatos históricos está negada a uma esquerda que se esqueceu da práxis.

    “A questão de saber se ao pensamento humano pertence a verdade objectiva não é uma questão da teoria, mas uma questão prática. É na práxis que o ser humano tem de comprovar a verdade, isto é, a realidade e o poder, o caráter terreno do seu pensamento. A disputa sobre a realidade ou não realidade de um pensamento que se isola da práxis é uma questão puramente escolástica.” Tese II sobre Feuerbach, Obras Escolhidas de Marx e Engels em https://www.marxists.org/portugues/marx/1845/tesfeuer.htm

    A tese 2 sobre Feuerbach é muito mais importante que a tese 11. É fundamental entendermos que o canto de sereia do “fim das grandes narrativas” é também o fim da verdade. A verdade perde sua base material e de prova, e passa a ser apenas a narrativa, ou a força coercitiva capaz de dizer uma verdade, como diria Foucault. O estudo dos aparelhos de poder detentores da verdade em Foucault é muito importante, não me alio àqueles “marxistas” (agora abrigados nesta bobajada de “ataque ao marxismo ocidental”) que atacam um autor sem o ler. Não nego a importância dos estudos de Foucault, mas não foi um marxista, foi um pós marxista frankfurtiano, Habermas, que chamou a atenção para o fato de que se a verdade em Foucault não se apoia em nenhum sistema de prova ou empiria. Assim, ela vai sempre girar em falso, se digo que a verdade é uma narrativa com coesão interna, não posso distinguir, de fato, entre a teoria da evolução, a teoria da relatividade ou o criacionismo, As 3 tem coesão interna.

    No pseudoataque a um pretenso naturalismo-positivismo na filosofia se jogou a criança fora, junto com a água do banho. Sim, houve em alguns setores do materialismo dialético muito positivistas e com muita antropomorfização da teoria, mas, não, condenar o iluminismo, o racionalismo, as grandes narrativas e a práxis como critério de verdade não tornaram as ciências mais esclarecedores, foram a antessala que criou a pós verdade, que sim, serve para os neofascistas e os neonazistas divulgarem fake news na internet, mas serve também, para certos setores de esquerda, que se apoiam na pós-modernidade, encetarem um discurso heterocrônico, sem provas, ad hominem e ahistórico de ataque à práxis.

    É fundamental recordar que a fenomenologia nasce com Husserl e Heidegger, e tem como predecessores, Nietzsche, Kiekergaard e Schopenhauer. O que unem todos estes filósofos? Uma desconfiança absoluta sobre a dialética e o materialismo, e a negação da possibilidade de conhecimento último da verdade. Veja, não estamos falando em verdade absoluta, mas em objetividade da verdade, prova, práxis. Claro que o texto não tem o objetivo de esquadrinhar ou falar de cada um deles, mas apenas lembrar que o nascimento da suspeita sobre a verdade teve moldes conservadores.

    Husserl era um antes de tudo um conservador, apesar de falar sobre uma possibilidade de um pensamento supranacional, o móvel de sua filosofia foi combater a dialética e a influência do marxismo revolucionário na filosofia europeia, para isto vai criar o eidos e a ideia do ser essente, o  noemas, para “refutar” a relação entre o ser e a essência, baseado na introspecção, num mergulho na ânima e até numa influência budista orientalista. Era nacionalista e pró guerra e participou ativamente da Primeira Guerra Mundial, tendo sido ferido em combate e se realistado, até ser definitivamente afastado após ser atingido na cabeça e ser ferido no olho. Nunca se manifestou contra a ascensão conservadora e nazista, até perder seu lugar como catedrático na universidade por sua ascendência judia (do qual tinha se resignado se convertendo ao luteranismo). Foi professor e preceptor de Heidegger.

    Heidegger, foi nazista ativo, participou gostosamente da cassação de professores judeus, social democratas, liberais e de todos aqueles que ele considerasse seus antagonistas, não teve uma palavra de piedade sobre prisão, tortura, remoção para campos de concentração e aniquilação de seus adversários políticos e nunca se posicionou, em nenhum segundo, contra nenhuma das atrocidades nazistas e foi feroz propagandista do nazismo. Perdeu depois seu lugar de reitor por ser menos hábil que seus congêneres menos talentosos mas politicamente mais hábeis nacional socialistas.

    Bem, o que quero dizer com esta longa digressão, não é que não devemos ler ou estudar os filósofos retromencionados. Óbvio que devemos os ler e estudar, por favor, não me confundam com a turba idiota dos cancelamentos, que se parece muito, no seu ódio á cultura que não retroalimente suas narrativas, às SAs ou as SSs. Estou apenas lembrando que a origem do irracionalismo moderno é conservadora e tinha como propósito atacar a dialética marxista. Aliás, Heidegger fala em palavras abertas sobre judaísmo e bolchevismo cultural, e, ainda que sua filosofia seja muito mais refinada e importante do que seu discurso, sua motivação é reacionária e não progressista.

    Efetivamente não se pode reduzir à fenomenologia, o estruturalismo, o existencialismo ou o pós-estruturalismo a um esquema antimarxista, como alguns pseudomarxistas preguiçosos querem fazer, nem é esta minha intenção, mas, sendo repetitivo, é bom frisar que o ataque ao racionalismo não tem objetivo revolucionário e progressista (não custa lembrar as posições de direita e reacionárias no fim da vida de Levy Strauss que virou um nacionalista chauvinista ou de Foucault, que virou um fervoroso defensor da direita não fascista).

    Assim, a pós verdade não tem seus apóstolos só na ultradireita, parte da nossa esquerda ataca o marxismo sem nunca ter lido Hegel e papagueia seus heróis pós modernos sem nunca ter feito uma pesquisa diligente sobre seus móveis ideológicos e posições de classe (salvam-se poucos à esquerda, Althusser, Sartre e mais meia dúzia mais de 3 ou 4).

    Foi necessário falar sobre isto, porque este heterocronismo e ahistoricismo de parte da esquerda tem como base as teorias pós-modernas, nas quais que se troca a verdade da práxis pela narrativa e o sentido do discurso. Assim, não é necessário se provar que Antônio Vieira é um defensor da escravidão, basta dizê-lo e reivindicar um lugar de fala. Depois, basta atacar quem falar contra, basta fazer um discurso de autoridade ad hominem, xingar o adversário de racista e escapar de ter que aduzir provas sobre algo que nunca existiu (a defesa da escravidão em Vieira).

    É bom lembrar que, aos caros detratores, que querem retirar a homenagem ao grande Antônio Vieira, vocês estão ficando muito parecidos com aquela turba de ensandecidos direitosos que querem proibir performances, com uma propaganda idiota de moralidade. Para quem diz que é um projeto educativo, retirar do ar livre e colocar num museu, com uma explicação, antes de que a obra seja exposta, esta ideia já foi usada, por uma dupla, Hitler e Goebbels, no século XX. Eles retiraram todas as obras modernistas “degeneradas” de circulação e a exibiram com explicações nazistas, numa grande exposição, a inspiração de vocês, convenhamos, meus caros, não é muito louvável. Contraditoriamente, as obras degeneradas alcançaram dez vezes mais sucesso que as exposições clássicas nazistas. Pela crescente lista de Index Prohibitorum, desta new esquerda, talvez daqui a pouco também tenhamos algumas obras queimadas.

    Pelos mesmos argumentos “anti-Vieira” dificilmente escapariam da fogueira, os soldados da coroa e da colonização, Camões e Cervantes. Os jovens deverão a partir de agora não ler mais os Lusíadas? Deve vir com um índice anterior avisando da perniciosidade da obra, já que é um épico que retrata a conquista portuguesa do mundo?

    E Cervantes, que perdeu um braço defendendo a coroa espanhola na Batalha de Lepanto, e combateu os moros, em nome da glória de Espanha, deve ser expurgado de nossas bibliotecas? Devemos sair queimando e destruindo suas estátuas que por acaso existam pelo mundo?

    Quando os bolcheviques invadiram o Palácio de Inverno Lênin proibiu que sequer uma obra de arte do czarismo, sequer um quadro fosse rasgado, sequer uma estátua fosse quebrada, sequer um livro fosse queimado e fosse considerado patrimônio espiritual do povo revolucionário soviético em armas. Marxista, materialista, dialética, Lênin sabia que a cultura se apoia no ombro das gerações passadas e não queria o ano zero da cultura.

    Todas as tentativas de “ano zero” na história foram desastrosas, a começar pela Revolução Francesa, que tentou abolir à força a religião católica e não teve sucesso, passando pelos expurgos da Revolução Cultural Chinesa, que quase transformou a China numa república de agricultores sem técnicos ou intelectuais, ao desastre do Khmer Vermelho ou do Sendero Luminoso.

    Não existe ano zero, a cultura é polimorfa e tem nuances incontroláveis.

    No Brasil, na luta contra Bolsonaro, a ária “Fortuna”, de Carl Orff, foi música de resistência contra as investidas de Bolsonaro. Carl Orff era músico oficial do Terceiro Reich, enriqueceu com patrocínio nazista, assumidamente nazista e antissemita, o preferido de Goebbels, a ópera dele foi toda construída na ideia de sangue, solo e bravura do nazismo. Devemos parar de cantar e ouvir Carmina Burana?

    Antônio Vieira passa por uma segunda Inquisição, tão burra e obscurantista como foi a primeira!

    * Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.

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