A terra é redonda e o governo Bolsonaro é fascista
"No que respeita ao Brasil de hoje temos a ideologia neofascista, o movimento neofascista e um governo no qual os neofascistas ocupam a posição dominante – lograram, após alguns meses de governo, deslocar o grupo militar para um plano secundário e o grupo militar é propenso a outro tipo de ditadura", afirma o professor de Ciência Política da Unicamp Armando Boito
Por Armando Boito
(artigo publicado originalmente no site "A Terra é redonda")
Como caracterizar o movimento de extrema direita que chegou ao poder no Brasil? E como caracterizar o governo Bolsonaro? Neoliberal? Neocolonial? Neofascista? Todas as anteriores?
Intelectuais e dirigentes políticos socialistas e progressistas têm afirmado que não se deve caracterizar o Governo Bolsonaro e o movimento que o apoia como fascistas ou neofascistas. Argumentam contrapondo tal movimento e tal governo a uma caracterização a nosso ver errônea do fascismo original. Ao contrário do que pensam aqueles que recusam o conceito de fascismo ou de neofascismo para caracterizar o bolsonarismo, não é correto caracterizar o fascismo pela fração burguesa que deteve a hegemonia política no fascismo original – a grande burguesia monopolista italiana e alemã – e tampouco é correto caracterizá-lo fazendo referências genéricas ao nacionalismo, ao militarismo e às práticas imperialistas característicos da política dos Estados fascistas originais.
Essas ideologias e práticas também estiveram ou estão presentes em democracias burguesas daquele e de outros períodos históricos. Dentro de uma mesma forma de Estado – seja a democracia, a ditadura militar ou a ditadura fascista – são possíveis diferentes blocos no poder e, consequentemente, diferentes tipos de política econômica, social e externa.
A ditadura fascista num país imperialista não terá o mesmo bloco no poder que uma similar sua implantada num país cuja economia e cujo Estado são, ambos, dependentes. Isso significa que é possível sim contemplar a hipótese de um movimento fascista e de uma eventual ditadura fascista submissos ao capital internacional, e não à burguesia nacional imperialista como sucedeu na Alemanha e na Itália. Dito diretamente: um governo fascista pode aplicar uma política econômica e social neoliberal e, nos países dependentes da América Latina, pode aplicar uma política externa de subordinação passiva aos EUA.
A distinção entre forma de Estado e bloco no poder é fundamental. Porém, para caracterizar o neofascismo já em vigor no Brasil, é necessário mobilizarmos outras distinções conceituais. É preciso explicitar a distinção, que opera implicitamente no parágrafo anterior, entre a forma de Estado, o movimento e a ideologia.
A ditadura fascista supõe a existência de uma ideologia, a ideologia fascista, e tal regime ditatorial somente se torna realidade se houver um movimento social, o movimento fascista movido pela ideologia fascista, que lute para a implantação daquele regime. Mas – atenção! – os fascistas também fazem cálculos táticos, podem hesitar e nem sempre têm toda clareza sobre os seus objetivos. Eles podem, numa determinada conjuntura, abrir mão da luta por uma ditadura fascista, postergá-la, ou mesmo não ter clareza sobre ela.
Palmiro Togliatti, em seu livro clássico Lições sobre o fascismo, mostra que aconteceu um pouco de tudo isso no Governo Mussolini entre 1922 e 1925. E não estava dado que Mussolini sairia vitorioso da crise gerada pelo assassinato do deputado socialista Mateotti. Ou seja, teoricamente é possível admitir que um movimento fascista, movido pela ideologia fascista, chegue ao governo e não logre implantar uma ditadura fascista.
No que respeita ao Brasil de hoje temos a ideologia neofascista, o movimento neofascista e um governo no qual os neofascistas ocupam a posição dominante – lograram, após alguns meses de governo, deslocar o grupo militar para um plano secundário e o grupo militar é propenso a outro tipo de ditadura. O que não temos no Brasil, pelo menos até agora, é um regime político fascista. O regime vigente no Brasil é uma democracia burguesa deteriorada e em crise.
Fascismo e neofascismo
Façamos uma terceira distinção: fascismo é um gênero; o fascismo alemão e italiano, de um lado, e o fascismo brasileiro, de outro, são, ambos, espécies desse gênero. Estou chamando o primeiro de fascismo original e o segundo de neofascismo.
O que é o gênero fascismo? As definições sintéticas são sempre limitadas, mas podemos arriscar a afirmação, inspirada na análise de Togliatti, de que, nas suas características mais gerais, o movimento fascista é um movimento reacionário de massa enraizado em camadas intermediárias das formações sociais capitalistas.[i] A ideologia fascista e as características típicas de sua base social estão presentes, com variações, tanto no fascismo original, quanto no neofascismo brasileiro. Inclusive o analista precisa detectar as relações entre uma – a ideologia – e outra – a base social.
O fascismo e o neofascismo são movidos por um discurso superficialmente crítico e ao mesmo tempo profundamente conservador sobre a economia capitalista e a democracia burguesa – crítica ao grande capital e defesa do capitalismo; crítica à corrupção e à “velha política” combinadas com a defesa de uma ordem autoritária.
A ideologia de ambos é heterogênea e pouco sistemática; nela se destacam a designação da esquerda como o inimigo a ser destruído (Bolsonaro não proclamou abertamente em discurso transmitido nos telões da Avenida Paulista que a esquerda em seu governo deveria emigrar ou iria para a prisão?); o culto da violência (alguma dúvida sobre isso no que respeita ao bolsonarismo?); seu caráter principalmente destrutivo, negativo, não propositivo (Bolsonaro não esclareceu, para justificar sua falta de propostas positivas, que o governo dele será uma quimioterapia para o Brasil?); o irracionalismo (a terra é plana e o aquecimento global uma invenção, certo?); um nacionalismo autoritário e conservador (culto da homogeneidade da sociedade nacional e rejeição dos “desviantes”) e a politização do racismo e do machismo, ervas que brotam espontaneamente no solo da sociedade capitalista – na desigualdade de classe, na organização patriarcal da família, no autoritarismo da empresa capitalista – e que o fascismo alça, com o seu programa partidário, para a cena política.
Arriscamos dizer que se formos procurar as raízes sociais da crítica conservadora, do combate à esquerda, do culto à violência, da atitude fundamentalmente destrutiva, do irracionalismo e das demais características da ideologia fascista e neofascista, encontraremos, sempre, um desespero pequeno-burguês ou de classe média, desespero de quem se vê diante de uma ameaça, real ou imaginária, pouco importa, e, ao mesmo tempo, sente-se, também, politicamente incapaz de oferecer uma solução para os seus próprios problemas. São os pequenos burgueses enlouquecidos dos quais nos falou Engels ao examinar situação semelhante.
O fascismo tem como objetivo eliminar a “esquerda” do processo político, e não simplesmente derrotá-la. Porém, “esquerda” é um termo genérico e meramente indicativo. No fascismo clássico essa “esquerda” era composta por dois partidos operários de massa, que almejavam superar o capitalismo ou reformá-lo profundamente – o Partido Socialista e o Partido Comunista. Já no neofascismo brasileiro, a “esquerda” a ser eliminada é o movimento e os governos democráticos, movidos pelo reformismo burguês neodesenvolvimentista e com apoio popular, campo político que esteve, até aqui, sob a direção do Partido dos Trabalhadores.
Esse partido deixou, há muito tempo, de ser um partido de massa e se tornou um partido de quadros ou de notáveis. O inimigo do fascismo original exige desse último um partido também de massa. Esse partido de massa foi um partido pequeno-burguês, que comportava também militantes e dirigentes recrutados em setores desqualificados da sociedade. Já o inimigo do neofascismo brasileiro não é uma ameaça aberta ao capitalismo e não organiza politicamente a heterogênea parcela da população, típica dos países de capitalismo dependente, que podemos denominar “trabalhadores da massa marginal”. Por isso, o neofascismo pode, pelo menos até aqui, dispensar um partido de massa, mobilizar suas bases para lutas específicas pelas redes sociais,[ii] e se contentar com um lastro político baseado em organizações religiosas.
O fascismo no poder
O fascismo e o neofascismo são movimentos reacionários das classes intermediárias, mas que chegam ao poder, não como representantes dessas camadas que lhe deram origem, e, sim, após terem sido politicamente confiscados pela burguesia ou por uma de suas frações com o objetivo de, apoiada neles, superar uma crise política e implantar um governo antidemocrático, antioperário e antipopular.
Esse tipo de crise, que Nicos Poulanzas em sua obra Fascismo e ditadura, caracterizou para a Alemanha e a Itália da década de 1920, verificou-se também, mudando o que deve ser mudado, na crise brasileira da década de 2010. A crise no bloco no poder devido à intensificação da disputa entre as frações burguesas e a crise ou declínio dos partidos burgueses tradicionais ensejaram a cooptação, pelo alto, de um movimento que veio de baixo.
Essa dinâmica particular do processo político só pode ser devidamente compreendida quando se leva em conta que nas fases mais avançadas do processo de fascistização, tanto no fascismo original como no neofascismo, as classes populares vêm de seguidas derrotas e se encontram politicamente na defensiva – momentaneamente incapacitadas, portanto, para apresentar alternativas políticas próprias e viáveis. Essa dinâmica prevaleceu tanto no fascismo original, quanto no neofascismo brasileiro, a despeito das diferenças entre a espécie de fascismo vigente no século XX e a espécie de fascismo que está se formando no século XXI.
Se no fascismo clássico, o grande capital nacional, diante da crise dos partidos políticos que tradicionalmente o representavam, confiscou o movimento pequeno-burguês, apoiou-se nele, para implantar a sua hegemonia; no neofascismo brasileiro, foi o capital internacional que, tendo em vista a crise do seu tradicional representante no Brasil, o PSDB, tetracampeão em derrotas nas eleições presidenciais, foi esse capital, principalmente o estadunidense, que confiscou, em aliança com segmentos da grande burguesia brasileira, o movimento da alta classe média e logrou restabelecer a hegemonia política perdida durante os governos do PT.
Foi a alta classe média que pegou carona nas manifestações iniciadas pelo Movimento Passe Livre (MPL) em junho de 2013 e que tomou a iniciativa de organizar a luta pelo impeachment, enquanto o PSDB dividido hesitava, e foi daquele movimento que surgiu o movimento neofascista. Cabe lembrar que as mobilizações, a partir de convocação presidencial, da base social do governo Bolsonaro, em 17 de março, 26 de maio e 30 de junho, pode contar – ora com umas, ora com outras – com as organizações criadas a partir de junho de 2013 – MBL, Vem pra Rua, Revoltados on Line e outras.
Dos protestos de junho de 2013, passando pelo antipetismo explícito de 2015 até chegar ao neofascismo de 2018 e de 2019, o caminho não é tão tortuoso. O capital internacional e segmentos da grande burguesia brasileira confiscaram esse movimento de classe média para, no caso do capital estadunidense e dos segmentos da grande burguesia brasileira a ele associados, além de ampliar a internacionalização da economia brasileira, perfilar o Estado brasileiro ao lado dos Estados Unidos na disputa de hegemonia com a China. Tiveram a sua tarefa facilitada devido ao fato de a burguesia no seu conjunto convergir para o programa, que o movimento golpista apresentou desde o início, de retirada dos direitos dos trabalhadores.
O grupo neofascista consolidou o seu domínio na equipe governamental. As medidas contra os direitos democráticos se ampliam – censura, ameaças, prisões arbitrárias. Não digo que seja o mais provável, mas não está descartado chegarmos a uma ditadura de tipo fascista no Brasil.
* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.
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