A turma da maré nada mansa
Na minha passagem da infância para a juventude, entremeio dos anos 70 e 80, eu ouvia, por intermédio de um radinho de pilha que captava ondas curtas, um programa humorístico veiculado pela rádio Globo do Rio de Janeiro chamado "A Turma da Maré Mansa" (link nos comentários). Ia ao quintal de casa, à noite, para captar a transmissão, e ainda assim ouvia com dificuldade, entre interferências e falhas de sinal.
Formado por uma sequência de quadros vividos por comediantes por mim desconhecidos - eram vários e os nomes não eram anunciados -, o formato inspirou os programas de humor que àquela época já faziam sucesso na TV, especialmente na Globo.
Foi lá que nasceu, por exemplo, o célebre Saraiva, o sujeito nervosinho que não suportava perguntas imbecis. Não sei o nome do ator que emprestava a voz ao personagem, no rádio; sei, porém, que, levado à TV, foi encarnado pelo saudoso camarada piracicabano Francisco Milani. No rádio e na TV, a esposa Carolina perguntava ao marido, depois de uma crise de irritação, "tá calminho agora, tá?" E o Saraiva respondia: "agora tô!"
Outro personagem marcante era um aluno de uma escola cujo quadro se iniciava com o locutor anunciando "de Barroso a Burroso". Não me perguntem o nome do comediante, pois também não faço a menor ideia.
Este segundo quadro me veio à lembrança por conta do que aconteceu ontem, no Congresso da UNE, em que o ministro Luís Roberto Barroso, valendo-se de sua mortal condição de cidadão brasileiro, discursou que "nós derrotamos o bolsonarismo, a extrema-direita", além de outras sentenças pronunciadas nessa mesma linha.
Nenhum reparo a fazer, em princípio. Afinal, todo cidadão desta amada "terra brasilis" que seja portador de mais de um neurônio, tenha um pingo de consciência democrática, vergonha nas fuças e uma lasca de amor no coração diria o mesmo. Só que ele se esqueceu que não é um simples cidadão, como eu, como você, meu leitor, minha leitora. É ministro do STF e, ainda que não seja seu atual presidente, sua fala é institucional.
Claro que a turma da maré revolta não perdeu tempo. Até em impeachment do ministro já falam os sensíveis e magoados bolsonarentos. O presidente do Senado, Rodrigo Pacheco, chegou a arvorar-se em censor do supremo magistrado e lhe passou um pito em público, reforçando as especulações sobre o impedimento do iluminado falastrão.
Tenho para mim que Barroso não deu uma de Burroso e, sim, como o mexicano "Chapolim Colorado", seu movimento foi friamente calculado.
Barroso fez foi sua estreia no ambiente político ao discursar para uma plateia de estudantes. Até porque, que diabos haveria de fazer um membro dos píncaros do Poder Judiciário num congresso de estudantes? Não custa lembrar que ele foi nominalmente homenageado em incontáveis acessos de loucura pelo ex-inquilino do Palácio da Alvorada, inclusive com adjetivos dos mais chulos e acanalhados, e ninguém, por conta disso, aventou a hipótese de provocar a defenestração antecipada do despresidente da república, embora fosse o caso.
Por impeachment - do qual duvido - ou por frios cálculos dos passos que, a meu ver, pretende dar e voos que almeja alçar, Barroso decerto antecipará sua aposentadoria e deixará o conforto do cargo vitalício que hoje ocupa para enveredar pelo terreno movediço da política.
Duvido do impeachment do ministro porque o Brasil já amadureceu o suficiente para saber que deve desviar de rotas perigosas como essa, sobretudo passado tão pouco tempo de uma sequência de diatribes golpistas que o país vivenciou. Uma nova crise institucional é tudo de que não precisamos.
Quanto ao que disse Pacheco, como líder de uma casa politicamente plural como o Senado Federal - que detém a competência constitucional de promover o processo de impeachment de um ministro do Supremo -, mesmo não sendo ele um típico bolsonarento, deu por cumprido o papel que dele se exige de não deixar barato o infeliz pronunciamento do juiz da Corte dita excelsa. Depois da tempestade, é inevitável que venha a mansidão da maré.
O ministro Barroso cometeu uma grande bobagem, é certo, mas é inegável que o cidadão Luís Roberto lavou a própria alma e falou por milhões de concidadãos brasileiros.
Aos Saraivas deste imenso Brasil, profetas do caos, pergunto se já estão calminhos. Agora estão?
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