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    Zacarias Gama

    Professor Titular da UERJ/Faculdade de Educação. Coordenador Geral do Programa de Pós-graduação Desenvolvimento e Educação Teotonio do Santos (ProDEd-TS) e membro do Comitê Gestor do LPP-UERJ

    25 artigos

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    A universidade está se liquefazendo. Vamos abrir os olhos?

    (Foto: ABr)

    As aulas presenciais nas universidades estão de volta depois de pelo menos cinco semestres de ensino remoto e de levar o professorado a entrar no mundo digital a toque de caixa, a despeito do pequeno apoio financeiro e tecnológico oferecido pelo Estado. Cada professor em seu isolamento social imposto pela pandemia de Covid-19 teve de se virar com os seus aparelhos eletrônicos da forma que pôde. E houve de tudo, desde quem tivesse usado as teclas ctrl+alt+del pela primeira vez, até quem tivesse se achado um grande influenciador digital ou um George Lucas criando efeitos mirabolantes para as suas aulas. O fato é que o aprendizado de todos foi grande, muito embora se possa afirmar que a entrada da Universidade, em sua completude, no mundo digital tenha sido postergada. Ela se fixou no ensino remoto e demonstrou a sua inaptidão, má vontade ou incapacidade de oferecer uma educação a distância de qualidade. 

    Os estudantes, grande quantidade nascida neste século XXI, constituem um mundo à parte em se tratando de ensino remoto e, como disse Henry Giroux na obra Teoria Crítica y Resistencia em Educacion (Siglo XXI, 1992), com muita criatividade apreenderam e dominaram de imediato as artimanhas desta modalidade de ensino, somando-as às que desenvolvem com maestria no ensino presencial. Elas foram tão bem apreendidas que houve Departamento obrigado a limitar o número de matrículas em disciplinas por semestre para evitar diplomações em tempo recorde; enquanto as inscrições foram livres houve quem requeresse matrícula em mais de vinte disciplinas em um único semestre. Durante as aulas remotas os estudantes também aprenderam a fazer muitas coisas ao mesmo tempo, desde namorar, fazer as unhas e cabelos, arrumar os armários, produzir Reels para o Instagram, vídeos para o TikTok e outras coisas que até Deus foi incapaz de pensar. 

    Esse comportamento estudantil, à distância ou presencial, nos força a pensar sobre os seus significados. Ele é uma simples malandragem juvenil ou contém elementos de maior profundidade e preocupação social? Com base teórica em Giroux ele pode ser compreendido como força para anular ou subordinar as formas docentes de dominação. O poder, afinal de contas, não é unidimensional e tanto pode ser exercido como modo de dominação e de resistência “ou mesmo como expressão de uma forma criativa de produção cultural e social fora da força imediata de dominação” (Giroux, 1992, p. 145). Positivamente é a astúcia estudantil que consegue impedir o reprodutivismo absoluto que Bourdieu afirmou haver nas instituições escolares; ele vai além de uma simples vadiagem. Como produto cultural e social tende a se tornar longevo e ter consequências importantes, ao naturalizar formas de agir, ser e estar na universidade. Ele é parte substantiva da cultura escolar e estudantil. 

    Se, contudo, apoiamo-nos em Jameson para o compreender, outras de suas facetas se tornam visíveis. Ele apresenta ares de um movimento que refuta a seriedade e a racionalidade da instituição escolar, a afirmação das manifestações formais.  São “reações específicas a formas canônicas da modernidade, opondo-se a seu predomínio na Universidade, nos museus, no circuito das galerias de arte e nas fundações” (Jameson, 1985). Não são mais simples resistências como Giroux as apreendeu, mas complexos movimentos reativos que refutam a herança social recebida. As análises de Baumann, revelam que são poderosas forças de liquefação da modernidade que trazem à boca de cena o grande público que devora a moderna elite cultural, assiste aos programas populares de TV e, “onivoramente”, consome diversas formas de arte, populares e até intelectualizadas desde que contenham importantes rebaixamentos. Debates e leituras profundas se tornam enfadonhas e as preferências recaem sobre os debatedores e leitores que são engraçados e que aligeiram as coisas para consumo rápido. 

    É preciso, todavia, esclarecer que numa época de transição, as sólidas instituições e valores antigos tendem a se liquefazer, ou como dizia Marx a se desmanchar no ar. É o novo se impondo sobre o velho, muito embora ambos ainda possam conviver por bastante tempo. O primado da burguesia na modernidade custou a liquidação das instituições do Antigo Regime feudal; hoje é a voraz classe dominante deste capitalismo tardio que impõe à sociedade o individualismo mais radical e fragmentador, a liquidação dos tribunais da razão e a superação da modernidade cheia de amarras que não mais lhe convém.  

    O território universitário de hoje, onde tais estratégias coletivas e individuais vicejam, além de fluído, está bastante próximo do mundo do pastiche típico da pós-modernidade, no qual a produção acadêmica se torna neutra, perde a combatividade de antes e a originalidade; o mesmo ocorre nas artes em geral, com destaque para o que acontece na música e artes plásticas. Tudo ou quase tudo já se encontra pronto e à mão no Google, Wikipédia e nos tutoriais do YouTube. O pastiche reina.  Tudo é imitável e a prática acadêmica se torna neutra, sem graça e sem combatividade, “é uma fala em língua morta”, nos dizeres de Jameson. Segundo o Google, somente na WEB há mais de 14 páginas com aproximadamente 138 milhões de resultados para trabalhos acadêmicos prontos, gratuitos ou com preços módicos.  

    Nas universidades os professores mais modernos e inflexíveis e até o ministério público se mostram sem vontade ou forças para deter os avanços do pastiche. Dialeticamente, elas e eles também se tornam outras e outros, alinham-se com a ordem social emergente do capitalismo tardio para alegria dos conservadores e da direita politicamente organizada. Os estudantes e simpatizantes empurram elas e eles em direção ao futuro de um mundo globalizado com astúcias cada vez mais novas, tirando proveito delas e até os forçando a se abdicarem de funções sociais herdadas da modernidade; tudo isto com muitas dancinhas no TikTok ao som do funk e do sertanejo.  A universidade iluminista em processo de liquefação vai se tornando outra e diferente. 

    A universidade brasileira vai sendo impelida a reassumir a condição de grande escola de diplomação de profissionais de nível superior sem compromissos com a ciência. Estamos sendo forçados a voltar à condição de compradores de saberes produzidos alhures. Lyotard em sua obra A Condição Pós-moderna, publicada pela primeira vez em 1979, em tom quase profético já chamava a nossa atenção para a monopolização da produção de saberes pelos países avançados e da disposição deles de escamotear ou sonegar tais saberes aos países periféricos: 

    As sociedades periféricas só terão pleno acesso a eles se os respectivos governos ou as empresas nacionais delegarem às suas instituições de saber, ao alocar-lhes fundos generosos, a indispensável tarefa de aprimoramento de um corpo de pesquisadores e de docentes de altíssimo nível. A pesquisa de ponta é o alicerce indispensável para que se afirme o poder econômico na competitiva era pós-industrial (Lyotard, 2009, p. 126).

    Aliás, as reformas das universidades brasileiras e latino-americanas inspiradas no Processo de Bolonha e o que deriva delas, com grande financiamento do Banco Santander, como por exemplo o Espaço Comum de Ensino Superior da União Europeia, América Latina e Caribe (ECES – UEALC) são os meios mais evidentes de conformação das universidades da região a determinados parâmetros e indicadores de qualidade que as subordinam aos interesses dos países centrais da acumulação capitalista e ao que está sendo chamado de sociedade do conhecimento. Na divisão internacional de produção de conhecimentos que vai se desenhando, reserva-se para nós o papel de compradores de conhecimentos de alta complexidade e vendedores de conhecimentos básicos, da mesma forma como nos tornamos produtores e vendedores de commodities. 

    É preocupante a inexistência de reações conscientes e organizadas à liquefação da modernidade. De certa forma assistimos bestializados aos acontecimentos e às surpreendentes novidades em todos os setores da vida social como se fosse uma simples fatalidade e não como sendo expressão da mais importante e abrangente luta de classe em escala planetária. Quando abrirmos os olhos já será tarde. 

    Il est désolant!

    * Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.

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