A velha toupeira morreu?
A velha toupeira trabalha no subsolo, sob a superfície do tecido social, e não frequenta os corredores dos palácios e gabinetes parlamentares
Tenho acompanhado com atenção a polêmica provocada pelo texto de Rudá Ricci intitulado “A Esquerda que não é Esquerda”, discussão enriquecida pela resposta de Valter Pomar “Rudá Ricci e a teoria da esquerda que não é esquerda” (Rudá Ricci e a teoria que não é de esquerda | Página 13 (pagina13.org.br). Meu interesse se deve a que considero este um debate necessário e ao fato de que R.R. me cita ao fazer referência à ideia de que seria possível reconhecer nas esquerdas brasileiras o que tenho designado de “esquerdas de estado” e “esquerdas sociais” (ele usa o singular e ao invés de “esquerdas de estado” fala de “esquerda institucional”, o que não é exatamente a mesma coisa). Acho que o fato de ter sido citado me confere, por assim dizer, o direito de fala.
Deixando a brincadeira de lado, em primeiro lugar gostaria de insistir na relevância da reflexão e discussão sobre a trajetória e realidade de nossas esquerdas, uma vez que isso pode contribuir para orientar a construção de caminhos a trilhar no presente e de perspectivas futuras. Esse debate é tanto mais relevante quanto assistimos muitas vezes a esforços para criar em torno das esquerdas uma espécie de “silêncio obsequioso”, com o argumento de que eventuais críticas acabariam fazendo o jogo da direita, fortalecendo por conseguinte o bolsonarismo – ou o fascismo ou neofascismo, como preferem alguns. Ninguém pretende, nem faria sentido, criar um tribunal da história para sentenciar culpados e incensar inocentes, mas, num contexto como o que vivemos, penso que, antes de mais nada, temos de saudar o engajamento polêmico de R.R. e V.P.
Com relação ao texto do primeiro, gostaria de insistir na diferença entre “esquerdas de estado” e “esquerda institucional”. Mais além de escolher o uso do plural para chamar a atenção para a multiplicidade e diversidade das concepções e práticas que caracterizam cada campo, penso que o qualificativo “institucional” reduz o sentido que procuro conferir à ideia de “esquerdas de estado”. Em ocasiões anteriores tenho tentado esclarecer que não se trata de construir uma muralha da China a separar os dois campos, mesmo porque eles convivem lado a lado, se interpenetram e interagem, conforme as conjunturas. Isso não obstante, estamos falando de distintas perspectivas – teóricas e/ou práticas. As “esquerdas de estado” tendem a olhar, conceber e pensar a sociedade a partir do Estado; em consequência, seus horizontes têm este limite e suas práticas conferem prioridade ou exclusividade às disputas de posições no interior das instâncias estatais. De seu lado, de maneira inversa, as “esquerdas sociais”, de maneira mais ou menos radical, mais ou menos setorial ou localizada, concebem, olham e confrontam o Estado a partir da sociedade. Aceite-se que, como toda classificação binária, esta também simplifica de alguma maneira as realidades, contribuindo, no entanto, para realçar algumas diferenças não desprezíveis. Aceite-se, também, que ao reconhecer estes campos, não se pretende atribuir a um todos os pecados e ao outro todas as virtudes. Se temos concentrado nossas reflexões sobre as “esquerdas de estado” é porque elas têm tido maior capacidade de influir nas agendas e pautas na esfera pública; isto, porém, não impede de identificar e discutir as limitações das “esquerdas sociais”, entre outras: tendências à fragmentação, ao localismo e/ou ao isolacionismo, pouco contato com experiências vitoriosas ou fracassadas das lutas revolucionárias, escasso conhecimento do acúmulo teórico do pensamento crítico...
V.P. lembra que a oposição entre “esquerda institucional” x “esquerda social” não é nova. Em certa medida tem razão. Como teria razão se afirmasse que a oposição entre reforma x revolução não é nova. Penso, no entanto, ser necessário não esquecer que estas oposições se dão em contextos históricos determinados, assumindo formas e consequências diversas. Se o pensamento crítico e as experiências revolucionárias dos séculos XIX e XX nos legaram conceitos e categorias que continuam a nos inspirar, esta herança não é suficiente para pensar e enfrentar o capitalismo e o Estado contemporâneos. Certamente, ainda e sempre estamos confrontados ao capitalismo e ao Estado burguês, mas, como diria o Conselheiro Acácio, não são os mesmos de 50, 100, 200 anos atrás. E, cabe destacar, entre outras coisas, não são os mesmos porque se redefiniram e reconfiguraram as relações do estado com a sociedade e com a economia, assim como as formas de exploração, dominação e opressão, para não falar das novas condições e posições dos trabalhadores.
Penso que V.P. comete um equívoco ao pretender estabelecer uma analogia entre as oposições “esquerda institucional” x “esquerda social” e política x social. Nesta abordagem, a diferenciação entre “esquerdas de estado” e “esquerdas sociais” apenas reproduziria a oposição entre os “iskristas”, liderados por Lenin, e os “economicistas”, fulminados pelo primeiro em seu famoso “Que Fazer”, de 1903. São várias, a meu ver, as confusões. Em primeiro lugar porque a ideia de “esquerdas sociais” contempla, mas não se limita ao que se considera “lutas econômicas”.
Em segundo lugar, porque os que ainda hoje leem as lutas sociais com as lentes do Lenin no Que Fazer?, parecem esquecer ou desconhecer incontáveis textos em que o líder bolchevique chamou a atenção para a importância das lutas econômicas. Sem pretender fazer deste pequeno texto uma coletânea de citações que viriam comprovar as teses do autor (afinal, sempre é possível encontrar a “boa” citação para usar como argumento de autoridade), parece válido lembrar texto em que Lenin cita Marx:
A grande indústria concentra num só lugar uma multidão de pessoas desconhecidas umas das outras. A concorrência divide seus interesses. Mas a defesa dos salários, interesse comum frente ao patrão, une-as numa ideia comum de resistência, de coalizão... As coalizões, a princípio isoladas, organizam-se em grupos, e, diante do capital sempre unido, manter essa associação vem a ser para eles mais importante que a defesa dos salários... Nessa luta — verdadeira guerra civil — reúnem-se e desenvolvem-se todos os elementos necessários para a batalha futura. Ao chegar a esse ponto, a coalizão adquire caráter político.” (Marx, Karl. A Miséria da Filosofofia. Apud Lenin, V. I. A Tática da Luta de Classe do Proletariado (1914). In: Lenin. V. I.. Obras, t. XXI, págs. 58/62. Disponível em https://www.marxists.org/portugues/lenin/livros/sindicato/01.htm. Acesso em 03/06/2024).
Uma das marcas das "esquerdas de Estado” é que elas tendem a estabelecer a sinonímia entre Política/Luta Política com Estado/Ação do/no/a partir do Estado. Reduzir a esfera da política à esfera estatal é desconhecer a infinidade de dispositivos de poder que operam na sociedade. Sobretudo, ao confundir POLÍTICA com INSTITUCIONALIDADE (estatalidade), se acaba restringido a ação política à esfera e limites deste mesmo estado... inviabilizando qualquer perspectiva contra-hegemônica. Desta forma também se reduz a luta social à luta econômica, pretendendo que a luta concreta no tecido social é sempre, necessária e exclusivamente, econômica. Por outro lado, reproduz uma arrogância dos que, vendo-se como “vanguardas", mostram desprezo pelas lutas concretas de explorados e oprimidos, muitas delas localizadas e segmentadas.
Mas, para além do desprezo ou reconhecimento da relevância das lutas econômicas, sindicatos e movimentos fora ou à revelia de partidos e organizações das “esquerdas de estado”, seria necessário perguntar se e até que ponto essa separação entre luta econômica x luta política não seria ela mesma questionável. Afinal, é o próprio Marx quem politiza a relação econômica, ao falar de “despotismo do capital” no chão da fábrica, e “economiza a luta política”, ao mostrar o papel do Estado na acumulação primitiva ou na regulação da jornada de trabalho. E se não se pode, de modo geral, na sociedade capitalista, separar economia e política, as esferas das relações de poder e das relações (econômicas) de compra e venda da força de trabalho, menos ainda isso é aceitável no capitalismo contemporâneo em que, sob a égide do capital financeiro e da financeirização, estado e capital quase se fundem. E não se trata aqui apenas de afirmações teóricas, pois todo militante sabe que lutas que parecem estritamente econômicas e/ou reivindicatórias rapidamente se “politizam” pela intervenção do Estado que, como vem sendo repetidamente denunciado, criminaliza a pobreza e a luta social. E como qualificar as lutas contra o racismo e suas manifestações quotidianas na violência policial contra a juventude negra, as lutas das mulheres contra desigualdade de remunerações ou pelo controle de seu próprio corpo, as lutas contra remoções de bairros populares para atender a demandas do capital financeiro-imobiliário? Eis evidências de que a oposição entre economia e política, entre lutas econômicas e lutas políticas não mais é capaz de contemplar, descrever e entender a complexidade e diversidade dos conflitos sociais contemporâneos.
Em terceiro lugar, ao contrário do que deixa entender V.P., em nenhum momento o que os “iskristas” concebiam como luta “política”, indispensável ao avanço revolucionário, poderia ser confundido com o que se está chamando de luta “institucional”, luta no horizonte e interior do estado. Tampouco acredito que os “iskristas” se reconheceriam na seguinte afirmação: a “politização inclui, em maior ou menor medida, alguma relação com ou participação no Estado do inimigo, ou seja, envolve a chamada “institucionalidade”. Devagar com o andor que o santo é de barro! Relação com o estado? Que esfera da vida social hoje não “envolve alguma relação com o Estado”? Mas uma coisa é relação com o estado, outra coisa é relação de confronto/enfrentamento, crítica teórica e crítica prática … e uma terceira coisa é “participação no Estado”. Afinal, ninguém propõe que se desconheça que a luta política tem foco no Estado, mas o que se está discutindo é se temos ou não um campo de pensamento e de práticas que se move e pensa com prioridade a partir e no Estado … que V.P. faz questão de lembrar que é o “Estado do inimigo”.
Ademais, não há por que supor que os dois campos estariam, condenados, sempre, desde sempre e para sempre, a atuarem desta ou daquela forma. Não existe nenhuma lei que afirme serem as “esquerdas sociais” mais ou menos radicais; tampouco pode-se fazer qualquer associação automática entre estas esquerdas e a tal de sociedade civil, em oposição aos partidos, que seriam inexoravelmente condenados a encerrarem-se nas “esquerdas de estado”. Assim como há nos partidos políticos institucionalizados segmentos de base que, por suas práticas e relações com o tecido social, fazem parte do campo das “esquerdas sociais”, são muitas as organizações e movimentos que, seja qual for sua origem, caberia colocar no campo das “esquerdas de estado”. Sem falar que as esquerdas sociais, em sua diversidade e multiplicidade, também avançam ou recuam, passam por descensos e ascensos, vivem períodos de maior ou menos isolamento no próprio tecido social.
Parece-me irrisória a tentativa de reduzir o debate, afirmando que “parte da esquerda ‘social’ é acomodada” ou que “outra parte tem muito de retórica e pouco de ‘social’”. Irrisória igualmente a tentativa de apontar o dedo para psolistas e outros, acusando-os de “institucionalismo”. O que é importante e merece destaque é que V.P. assume a necessidade de “entender como se opera a metamorfose que transforma líderes da esquerda ‘social’ em expoentes da esquerda ‘institucional’”, processo que atinge militantes de várias origens e filiações a partidos e movimentos diversos. Ao invés de adotar postura defensiva ao apontar o dedo, aliás com razão, para os “psolistas e outros expoentes comunistas” que também perderam-se na institucionalidade, bem mais rico seria seguir a proposta de buscar entender estas metamorfoses ... que certamente não serão entendidas a partir de juízos pretensamente morais.
No caso histórico de parte expressiva da social-democracia europeia, a burocratização e a institucionalização, de alguma maneira, expressaram a formação do que Marx chamou de “aristocracia operária”, sócia do colonialismo e do imperialismo, e, sobretudo após a 2ª Guerra Mundial, os pactos sociais que reconheceram direitos e incorporaram parcela expressiva da classe operária à sociedade de consumo de massa e à vida política. No Brasil, a história é diversa, sendo, portanto, necessárias ainda muitas pesquisas e discussões para desvendar processos em que lutas sociais formam lideranças que, não raro, acabam lançadas e absorvidas pela prática política institucional, desfalcando as organizações e lutas pela base e, às vezes, virando às costas às experiências e ao mundo no qual se formaram.
O mais importante, a meu ver, é que V.P. acaba por reconhecer que, após a Constituição de 1988, vivemos uma situação em que “não há como obter vitórias sem combinar os dois movimentos, ‘dentro’ e ‘fora’”. Mas para que esse reconhecimento fosse mais abrangente, teria que superar a visão, típica de quem olha a sociedade e as lutas sociais a partir do Estado, de que não há como explorar as conquistas alcançadas nas lutas institucionais “sem que tenhamos força social organizada fora das instituições” (ênfase no original). Quem são os sujeitos ocultos de verbo “tenhamos”? Aqueles que estão “dentro” da institucionalidade. Parece estarmos bem longe do tempos da fundação do Partido dos Trabalhadores, quando prometíamos e esperávamos colocar mandatos parlamentares e posições conquistadas na institucionalidade a serviço da luta e organização sociais; agora, o que se propõe é colocar estas últimas a serviço da ação institucional e institucionalizada. V.P. explicita, de maneira clara, o que lhe parece principal. E acredito não haver dúvidas de que esta visão é a que predomina e confere identidade a diversos segmentos, concepções, partidos, organizações e práticas que designo de “esquerdas de estado”.
Assim, não proponho, nem acredito que R.R. o faça, abdicar de toda e qualquer ação institucional, isto é, nos marcos e limites do Estado. Esta é uma contingência e circunstância determinada pelo estado atual das lutas de classes em nosso país e, de modo mais geral, no mundo. E as “esquerdas de Estado” ocupam um lugar na conformação atual do Estado brasileiro e podem, a partir das posições ocupadas, contribuir mais ou menos para o avanço de algumas reivindicações, mais ou menos para fortalecer as “esquerdas sociais” e sua dinâmica. Mas o que parece, a esta altura, fundamental afirmar é que seja a revolução, sejam alterações expressivas na atual correlação de forças, sejam conquistas expressivas nas condições de vida da imensa maioria da população, terão como origem e motor nas práticas conflituosas de luta e organização no tecido social, fora e contra o poder exercido pelo estado em favor, com raríssimas exceções, do capital e das classes dominantes.
Num discurso proferido em 1856, em reunião com militantes do Cartismo, Marx comentou como segue a surpresa com que as classes dominantes receberam a explosão reovolucionária de 1848:
“Nos sinais que desorientam a classe média, a aristocracia e os pobres profetas da regressão, reconhecemos o nosso bom amigo, Robin Goodfellow, a velha toupeira que sabe trabalhar a terra tão rapidamente, esse digno sapador — a Revolução (Discurso no Aniversário de "The People's Paper", a 14 de Abril de 1856[N270]. https://www.marxists.org/portugues/marx/1856/04/14.htm#r1)
A velha toupeira trabalha no subsolo, sob a superfície do tecido social, e não frequenta os corredores dos palácios e gabinetes parlamentares. Será que a velha toupeira morreu? Ou será que, como sugere Chomsky, ela “está escavando lá em baixo e isso pode tomar diversos caminhos” (Noam Chomsky, “A velha toupeira de Marx está mesmo abaixo da superfície”. In Esquerda, 24/05/2021. Disponível em https://www.esquerda.net/artigo/chomsky-velha-toupeira-de-marx-esta-mesmo-abaixo-da-superficie/74527. Acesso em 03/06/2024).
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