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    Roberto Ponciano

    Escritor, mestre em Filosofia e Letras, especialista em Economia. Doutorando em Literatura Comparada

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    A volta dos que não foram, o retorno de Marta Suplicy e a estetização da política

    Basta uma enquete ou uma pesquisa que prove que Marta de 2024, depois de tantas traições, teria ainda o legado do PT de governar e a confiança da “periferia”

    Marta Suplicy e Guilherme Boulos (Foto: Divulgação)

    O século XXI é um século imagético, século em que me dizem, com olhares de entendidos no assunto, que não devo escrever textões, nem devo retransmitir mensagens de internet que tenham mais de 2 minutos. Século em que os estrategistas de política foram trocados por marqueteiros com MBA em propaganda, e formação ideológica zero, em que se acredita piamente que tudo deve ser ganho ou perdido numa disputa imagética, que fica apenas na superfície e que nunca aprofunda a crítica.

    Não nego que a internet tenha seu funcionamento próprio e que tenhamos que conhecer seus recursos e utilizá-los a nosso favor, nem sou avesso a que usemos de todas as armas, incluindo os tik toks da vida. Efetivamente, o meio ambiente virtual tem mecanismos de sustento e manejo próprios que devem ser aprendidos, junto aos nossos especialistas que trabalham na rede e usados a nosso favor. Mas uma coisa é entender os mecanismos próprios, a episteme da internet, da propaganda, da semiótica da indústria cultural, do marketing, outra é reduzir à política a ela.

    Mészáros, no seu denso livro, “Para além do capital” tem quase um capítulo inteiro e denso destinado a tentar entender e criticar a perda de base e representatividade dos partidos operários, social democratas, socialistas e comunistas. É óbvio que o toyotismo, a robótica, a automação, a fragmentação e desregulamentação do mundo do trabalho são fatores essenciais para entender esta perda de representatividade, já que a formação do indivíduo é sempre um processo mediado histórico, mudando-se as condições históricas, forma-se-ão indivíduos completamente diferentes, é o que se chamaria de zeitgest, “espírito do tempo”, ou, em termos marxistas, de bloco histórico.

    A perda de significação da identidade do ser humano como trabalhador, num capitalismo de funções difusas e desemprego estrutural, efetivamente, tem seus efeitos no espírito das pessoas, e cobra um alto preço. Isto repercute na falta de identificação do trabalhador como trabalhador, dificultando a formação de sujeitos coletivos como sindicatos e partidos operários. 

    Não somos daqueles que caem na tentação fácil de ter uma solução apriorística para entender a profunda perda de representatividade dos partidos de esquerda de cunho ideológico, reduzindo tudo sempre a uma “crise de direção” (como de maneira simplória e positivista fazem algumas organizações de esquerda, que veem as árvores, mas nunca conseguem enxergar a floresta), reduzindo tudo a chavões como burocracialismo, personalismo, individualismo, aburguesamento, traições. Assim, em lugar da análise marxista histórica dos epifenômenos, tudo se restringe a traições e opções individuais que teriam levado à classe trabalhadora e seus partidos ao atoleiro. Isto está muito longe do tipo de análise da política e da sociedade inaugurada por Karl Marx.

    Todavia, sim, não se pode restringir tudo a fatores objetivos, negar a importância dos fatores subjetivos, porque isto levaria a um circuito fechado de estruturas que deixariam de ser históricas e se fossilizaram, porque não estariam permeáveis a sofrer impacto das pessoas organizadas dentro dos sujeitos coletivos e dos movimentos sociais históricos. Se chegaria a um fim da história, em que a condição de penúria das nossas organizações cimentaria o argumento pró oportunismo e burocracia, fundamentado numa “real politik” tautológica, no qual a crise tem fatores históricos para ser explicada mas que, para se justificar o oportunismo disfarçado de “pragmatismo”, para ela não há saída. Os fatores que a criaram, que são históricos, estruturais e coletivos, tornam-se eternos e sem saída, no curto-circuito de que “não há alternativas” ao sistema.

    Há dos sofismas teóricos colocados no início deste texto, um, muito usado pela extrema esquerda brasileira, que se tornou ahistórica e trabalha com uma ideologia reificada e antropomorfizada de “refundações” (refundação do PT “original”, refundação do “PCB” ou do PC do B histórico), como se as condições de fundação do PT, por exemplo, as grandes greves do ABC paulista, a gigantesca classe operária da década de 70 no Brasil, as comunidades eclesiais de base, pudessem ser revividas para se “resgatar o PT original”, se elidindo os problemas reais do partido e se partindo para uma confusa mitologia em que a política se torna moral e não histórica. 

    Não haverá refundações, não haverá retorno da história, não haverá nova tomada do Palácio de Inverno, não se refundarão o PCB da década de 20 a 60 ou o PT da década de 70. A dialética de verdade trabalha com as tarefas e condições reais do seu tempo, tempo de capitalismo de trabalho fragmentada e classe trabalhadora difusa e dispersa; de processos de socialização midiatizados e controlados pela indústria cultural. Para novas tarefas se deve buscar novas soluções teóricas e novas formas de se organizar a nova classe trabalhadora, tão difusa e caótica.

    Isto não significa que tenhamos que trocar o marxismo pelo oportunismo, a luta de classes pela ideia absurda a histórica de que não há alternativas, a revolução pelo conformismo. O que nos leva ao segundo sofisma tratado neste texto.

    O fato de o capitalismo imperialista ultraneoliberal monopolizar todas as instâncias, inclusive a instância cultural, produzindo ideologia midiatizada e fetichizada que vai sendo introjetada pelos nossos poros, de forma passiva, sem muita resistência, não significa que chegamos ao fim da história, sem possibilidades de resistência ou de rupturas. O discurso de que não há alternativa esconde o fato de que o Capital gera contradições insuperáveis que podem levar a vida humana à extinção. O capitalismo, em sua fase imperialista extrema, reduziu a participação do trabalho vivo, do capital variável, na composição orgânica do capital, a uma parte muito pequena, o que leva a grande contradição insolúvel do Capital. O Capital tem que produzir mais e mais, para gerar o mesmo volume de mais valia ampliada, repartindo menos o produto social e acumulando e segregando ainda mais. A crise do Capital torna-se crônica, não é mais cíclica.

    Desemprego estrutural, com gigantescas massas da humanidade que nunca terão um trabalho formal por toda a vida, exército de subempregados e uberizados, permanente crise ambiental (o Capital tem que produzir mais e mais para manter a ampliação da mais valia, num planeta que é um só e tem recursos finitos), emprobrecimento e expropriação crescente dos países periféricos, com agigantamento das crises de refugiados e ampliação da guerra como negócio para queimar recursos e renovar as crises do sistema.

    A humanidade não se coloca problemas para os quais as soluções não estejam colocadas, ainda que em tese. A primeira questão para se enfrentar o problema da crise crônica do capital é entender o porque ela existe, que ela é crônica e não tem saída dentro das possibilidades de um sistema irreformável, concentrador de renda e recursos e que pode levar à humanidade à extinção.

    Daí chegamos finalmente ao segundo sofisma tratado neste livro e que Mészáros também aborda em Para além do capital. A domesticação e a estetização dos partidos operários e proletários, sua cisão, entre um partido burocratizado e domesticado à lógica de que não há alternativa, e de que devemos apenas e tão somente trabalhar para regular o sistema e evitar maiores desastres. Isto leva a uma cisão entre a base trabalhadora pobre e precarizada e a cúpula, burocratizada na lógica de uma disputa política, que se restringe ao cretinismo parlamentar e à administração do sistema, sem provocar danos a ele ou tentar propor qualquer forma de reforma estrutural.

    Esta questão não é uma doença própria do PT ou restrita ao Brasil. É um problema estrutural de basicamente todos os partidos historicamente de base operária, depois da derrota do campo socialista na década de 90. Reconfigurados no discurso de que não há alternativas, os partidos foram amoldando a bunda das suas lideranças às cadeiras da burocracia parlamentar e do Executivo e tornando-se “alternativas” ao sistema capitalista que não deixa frestas para alternativas de mudança estrutral. A mudança efetuada pelos partidos populares de esquerda é sempre contingente, nunca pode ferir ou ameaçar as estruturas. O discurso revolucionário, mesmo que de uma revolução não armada e feita através da pressão das grandes massas, deve ser esquecido e relegado, para participarmos de um jogo em que as regras são as deles, o campo de jogo são o deles, o juiz é deles, a bola é deles e o tribunal é deles.

    Veja, eu não parto da ideia da burocratização como algo ahistórico e que provém de um defeito de caráter das lideranças, traço um histórico das mudanças estruturais no capitalismo no últimos 40 anos para entender em que barril de pólvora estamos sentados. 

    No domínio total não só sobre a estrutura, também sobre a máquina produtiva e governamental que o capitalismo e a burguesia internacional impuseram, não basta controlar só a máquina. É necessário controlar a alma das pessoas. A cultura tem que ser o culto ao Capital. Benjamin já havia nos alertado que no Imperialismo a única verdadeira forma de religião seria o Capital. Todas as formas mediadas de socialização e humanidade ficam subsumidas a uma fetichização absoluta da humanidade, tudo fica relegado a um discurso maniqueísta de sucesso x fracasso que deve ser sempre medido em termos de lucratividade. É um discurso adocicado, porque a dominação não deve ser aberta, como na estética do fascismo, deve ser tomada em pílulas, todos os dias, nos vários aparelhos ideológicos da sociedade de consumo, mas sempre quantificados em arrecadação, lucro, patrocinadores, seguidores – quem não está no topo na ideologia de sucesso do Capital deve ser descartado como lixo.

    Não por outra razão as ideias de empoderamento são todas apropriações da forma valor  fetichizada capitalista introjetadas no discurso de esquerda. O objetivo central não é mais coletivo e de emancipação da classe ou do gênero, mas de sucesso individual. O empoderamento é o “Yes you can”, do Partido Democrata dos Estados Unidos, transformado em bandeira universal da esquerda. Assim, em lugar de se acabar com a favela e dar uma vida e moradias dignas a toda a classe trabalhadora que vive nestes guetos, podemos empoderar indivíduos pobres e pretos e trafegar a ideia de que, se João ou Joana, pretos e pobres, podem obter sucesso, todos podem. Basta criar estruturas de escape que possibilitem o sucesso indivídual de alguns, O que são, de fato, as exceções da regra de exclusão no sistema, viram produtos vendíveis de prova desta falsa justiça social.

    A política deixa de ser a mediação e a luta entre as classes e também se torna um espetáculo, na sociedade do espetáculo, que deve deixar um nicho, uma válvula de escape para que a fetichização da política – na sociedade que prega que não há alternativas, e chegamos ao fim da história – seja mostrada como sendo a alternativa. Assim, o espaço consumido e cedido à esquerda, dentro da sociedade do espetáculo, e que também vira um nicho de consumo, exatamente igual ao nicho dado à direita, se torna uma sombra alienada da política real, que deixa de ser a disputa de corações e mentes pela ruptura e pela emancipação.

    Os partidos divorciam-se de suas bases populares, porque seguem uma lógica de sobrevivência puramente parlamentar, esforçando-se para manter um discurso aparentemente coerente, para sedimentar coeficientes eleitorais, sem aprofundar nenhum esforço em retomar uma vida política para além da via meramente eleitoral. Nesta batalha de aparências, não à toa, a juventude acaba descrendo na política, que se lhes parece um espetáculo em que a linha tênue entre os partidos da ordem e os que disputam a frecha do sistema nunca está bem delineada.

    Esta longa digressão não é um nariz de cera, é para entender porque ao fim e ao cabo, depois de tantas traições e de um primoroso serviço prestado ao impeachment, ao golpe, ao protofascismo brasileiro, a um movimento que quase engoliu o Estado Democrático de Direito, possa parecer tão banal e tão palatável que o PT aceite Marta Suplicy de volta.

    O divórcio entre o partido de massas e o partido eleitoral chegou a um nível tão cavalar, que um gesto que, outrora, poderia levar a rupturas, guerras e cisões internas, hoje leva, no máximo, a artigos e lives na internet, porque já está tudo pré-justificado na estetização da política. Basta uma enquete ou uma pesquisa que prove que Marta de 2024, depois de tantas traições, teria ainda todo o legado do modo PT de governar de 2001 a 2004 (quando esteve à frente da Prefeitura de São Paulo) e a confiança da “periferia”. Toda esta fantasia, todo este fetiche, só parece real porque não se trabalha mais com sujeitos históricos. São figuras estéticas antropomorfizadas. Marta não é sua história, sua saída do PT apoiando a direita e o golpe, pedindo impeachment de Dilma, preparando o terreno para o bolsonarismo. Ela é Marta, uma entidade metafísica que terá para sempre o apoio de uma periferia fossilizada, que é também só uma figura de retórica que justifica previamente todo tipo de aliança e acordo, inclusive este que recebe de volta alguém que lutou pela extinção do PT.

    Gramsci defendia que o marxismo, para ter força moral e de coesão sobre as massas, teria que, antes de tudo, acabar com o divórcio na política entre corações e mentes. A política burocrática e oportunista esteticizada não tem coração e finge ter uma mente, um deus ex machina, que apresenta os resultados finais ajustados como “tática e estratégia”, que, conseguidos a duras penas, no erra e acerta, são apresentados como planejamento irrecusável de algum gênio. É a política sem fraturas, sem saltos, sem antagonismos, sem oposições, sem representações de classes e de frações de classes, sempre pré-justificada por um possível sucesso eleitoral futuro.O interessante desta estratégia genial, feita por algum deus ex machina, de estrategistas infalíveis do PT, é que ela nunca tem auto-crítica. Nunca é culpada de nossos fracassos, do golpe, do impeachment, da prisão de Lula, da eleição de Bolsonaro. Nada do que aconteceu ou acontece de negativo tem que ver com os erros de tática estratégia ou análise errônea de conjuntura do tipo: não haveria mensalão sem Joaquim Barbosa, que foi por nós indicado ao STF. Não haveria impeachment nem prisão do Lula se não tivéssemos recheado o mesmo Supremo com tanta gente de direita. A lei da delação premiada é uma criação estapafúrdia nossa. Nada disto são erros, o resultado futuro revertido é ajustado para defendermos a ideia de que sempre acertamos e continuaremos sempre a acertar. A política como estética, não como ação política inserta nas classes e frações de classe, na qual esta cúpula que pensa por nós, que somos apenas eleitores e consumidores da política, se aproxima da santidade e da infalibilidade, que na indústria cultural é imputada aos CEOS, estes novos deuses sacrossantos da humanidade.

    A periferia que apoiaria Marta não é a real, histórica ou organizada, porque, de verdade, não temos interesses em organizar esta periferia para além do voto. É só uma mentira útil para justificar 1% ou 2% para lá ou para cá nas intenções de votos para Boulos. O problema é que esta estratégia eleitoral e eleitoreira, restrita ao voto, restringe a política a um espetáculo que consumimos como espectadores, não como atores da história, no qual agora passa o tosco filme, “Marta, a volta dos que não foram”.

    * Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.

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