Adolescência além do sintoma: sobrevivência, neoliberalismo e condição humana
Jamie é o retrato cru da degradação humana em tempos de superexploração do trabalho e isolamento das subjetividades
A série Adolescência, da Netflix, tem impulsionado debates relevantes sobre os dilemas enfrentados por jovens, suas famílias e instituições como a escola e o Estado. Embora a abordagem psicanalítica — como a publicada por Vera Iaconelli na Folha de S.Paulo (25/03/2025) — ofereça diagnósticos consistentes, me proponho a lançar um outro olhar sobre a questão.
Como bem observa Iaconelli, a série percorre quatro dimensões fundamentais da sociabilidade contemporânea: o Estado, a escola, a família e o sujeito. Cada um desses espaços é explorado em episódios distintos, de forma complexa e sem linearidade. Os diálogos são marcados por tensões, contradições, idas e vindas — e o desconforto do espectador diante das cenas é parte do efeito intencional da narrativa. Ainda em consonância com a psicanalista, a série destaca com força as questões de gênero e os conflitos geracionais, colocando em evidência dilemas urgentes: como exercer a parentalidade em tempos tão desafiadores?
Contudo, sem negar os aspectos de gênero e de geração, que de fato atravessam o problema, é fundamental lançar luz sobre um elemento estrutural muitas vezes negligenciado: o neoliberalismo ocidental. Ignorar esse recorte nos leva a interpretações parciais e reducionistas da adolescência; uma interpretação carente de determinações concretas da vida. A série revela um espaço de vida dos adolescentes que é completamente incompreensível e obscuro aos pais: as regras das redes sociais. A sensação é que temos dois mundos paralelos: aquilo que se vive na rede social e o que se vive na vida real – aqui, essência e aparência se (con)fundem na vida de pais e seus filhos. Essa (con)fusão parece conduzir a dinâmica familiar a um nível absoluto de perda dos laços de intimidade; falta de diálogo, filhos trancados nos quartos; muros que criam verdadeiros guetos existenciais no cerne do contexto familiar.
Por que isto ocorre? Por que os pais não escutam seus filhos? Por que Eddie não reconhece em Jamie a criança que criou?
As respostas a essas perguntas são inúmeras e não pretendo esgotá-las, mas parece-me importante salientar que educar adolescentes dá muito trabalho. Eles têm uma busca incessante por autonomia e construção de suas subjetividades; são revolucionários, contestam e confrontam. E os pais? Os pais estão exaustos! Mas exaustos do que exatamente? De seus filhos? Não. Estão exauridos de sobreviver.
Jamie, em certa parte do filme, comenta que seu pai conserta privadas. Em seguida, indaga se é possível alguém ser feliz nesta atividade. Eddie relata a jornada exaustiva de trabalho e a perda paulatina do contato com o filho. Ele sobrevive a jornadas massacrantes.
Os professores parecem também completamente alheios de suas respectivas posições funcionais. Brigam, coíbem, perdem-se na dinâmica descontrolada dos adolescentes na escola. Os professores, por que não escutam seus alunos? A resposta parece ser a mesma: eles também estão sobrevivendo. Mal remunerados, precarizados, deslegitimados.
Nesse contexto, a escola não é espaço de formação, mas de confinamento. Um “curral”, como a própria série sugere. E as interações virtuais que substituem a realidade, a violência que explode sem mediações simbólicas, o corpo da mulher como território de dominação — tudo isso não emerge do nada. São sintomas perversos da lógica do consumo, da propriedade privada, da hipercompetitividade e da performance que define o nosso tempo.
A terapeuta da série até tenta ouvir Jamie e restaurar algum sentido de laço social. Mas se assusta. O sujeito que aparece diante dela — um adolescente acusado de assassinato — não cabe nas categorias clínicas tradicionais e nem nas avaliações comuns de psicodiagnóstico. Jamie é, talvez, o sintoma mais cru de uma degradação mais ampla: a da condição humana em contextos de superexploração do trabalho e das subjetividades confinadas ao isolamento.
Ler os sintomas é fundamental, mas não podemos ficar presos a eles. Sem um horizonte alternativo de sociedade, não é possível apontar para práticas mais transformadoras de resgate do sentido de humanidade e de comum. Por isso, a pergunta que deveria nos mover é: que mundo estamos oferecendo a esses jovens? Sem enfrentar a mercantilização da vida e a ausência de perspectiva, seguiremos apenas constatando e padecendo.
* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.
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