Agosto
O agosto de 2020 nos surpreende com pesquisas de opinião indicando uma melhoria nos índices de aprovação ao governo federal, apesar do desastre econômico e da genocida gestão da crise sanitária
Em 1974, com a imprensa censurada, quase toda a esquerda morta, presa, clandestina ou exilada, a três meses das eleições a Ditadura tinha altos índices de aprovação segundo a percepção geral. As eleições se avizinhavam. Eu tinha 16 anos, estudava no Colégio Estadual do Paraná.
O resultado das urnas surpreendeu. Em 16 estados foram eleitos senadores do partido da oposição. A ditadura elegeu apenas 8. Surpresa generalizada. O país vivia o “milagre econômico” e, para espanto de muitos, chegaram ao Senado personagens obscuros, desconhecidos, eleitos pelo simples fato de serem candidatos pela oposição, demonstrando o caráter plebiscitário daquelas escolhas eleitorais, realizadas quando o regime militar contava dez anos desde a usurpação.
Nas eleições seguintes eu já era estudante de terceiro ano na faculdade de Direito da UFPR. No ano anterior, temendo novo desastre eleitoral, a Ditadura editou o “pacote de abril”, criando a figura dos “senadores biônicos”, eleitos pelas assembleias legislativas controladas pela Arena, o “maior partido do ocidente”, que apoiava a Ditadura. O regime tentava se manter como podia. O agosto de 1978 foi tenso. Nas eleições de novembro as urnas consagraram novas vitórias da oposição. A quantidade de votos contra o partido da ditadura foi tão grande que em Curitiba foram eleitos três inexpressivos deputados, com votação em torno de apenas mil votos ou pouco mais, carregados pelos votos na legenda do partido de oposição.
As análises dos cientistas políticos da época eram divergentes, mas com o distanciamento histórico percebe-se hoje que a reprovação do governo decorria fundamentalmente da crítica, sussurrada, à maneira de existir imposta pelos militares. Não era bom viver na ditadura.
O agosto de 2020 nos surpreende com pesquisas de opinião indicando uma melhoria nos índices de aprovação ao governo federal, apesar do desastre econômico e da genocida gestão da crise sanitária.
Tenho insistido, nos meus textos e em minhas análises, que não é bom viver em nossa realidade bolsonara. As pesquisas recentemente divulgadas demonstram que o terço do meio encontra-se dividido, entre o terço bolsonarista/lavajatista/cristão, que apoia o neoliberalismo, e o terço da população que foi derrotado nas últimas eleições e que continua fiel aos fundamentos social-democratas.
Mencionei outro dia que não existe o bolsonarismo, como doutrina. Há bolsonaristas, com distintas motivações, que têm em comum o apoio ao líder populista, por se identificarem com o mito encarnado no repugnante jaguara e com determinados aspectos daquilo que ele representa, com uma proposta geral de relações sociais tidas como desejáveis, com uma maneira de existir em sociedade. Sem Bolsonaro não existe o bolsonarismo. Pelo menos por enquanto. Daí a importância de atingi-lo, debilitá-lo, desmoralizá-lo. Mas isso não basta, parece evidente.
Não me parece inteligente apenas opormos o passado ao presente. Pode ajudar, mas é insuficiente. Não era bom viver no Brasil antes do golpe. Não se choquem com essa afirmação. Não era bom por ser pouco, por haver muito ainda a ser feito. Comparado ao que denomino de realidade bolsonara era infinitamente melhor viver na realidade que tínhamos. O Brasil piorou muito desde o Golpe de 2016.
Sobrevivemos em uma realidade inaceitável, sem governo, autoritária, careta, conservadora, que deprecia a razão, a ciência, a cultura, as artes, a solidariedade, que dilapida o patrimônio natural e que destrói o patrimônio público. E que, ao mesmo tempo, supervaloriza o individualismo, o obscurantismo, a religiosidade, o punitivismo, a meritocracia, a ganância e a soberba. Não é bom viver nessa realidade bolsonara.
A ela, cedo ou tarde, depois do fim do auxílio emergencial que vitamina o governo, será oposto um outro projeto de relações entre as pessoas, uma proposta de uma forma alternativa de viver no futuro (não no passado, que não era tão ruim, percebemos agora; nem neste sufocante presente). Uma nova maneira de existir socialmente haverá de ser concebida, pois a atual é ruim, não pode continuar.
Essa proposta alternativa ainda não amadureceu, está em gestação. Seus primeiros efeitos serão visíveis nos resultados eleitorais deste ano, mais tímidos do que gostaríamos, embora identificáveis. Não é bom viver nessa realidade bolsonara. E se não é bom, haverá mudanças. Questão de tempo e de nossa capacidade em articular uma proposta sedutora de existir em sociedade.
As condições econômicas estão rapidamente se deteriorando. O neoliberalismo é incapaz de dar os resultados que promete. O coiso não romperá com Guedes. A arrogância e a soberba dos integrantes do aparato repressivo estatal, dominado pela Direita Concursada, não serão toleradas por muito tempo. O moralismo se esvai a cada evidência de “pecados” dos líderes espirituais, a cada revelação dos desmandos do lavajatismo, a cada descoberta das íntimas relações do governo com as milícias, a cada evidência de corrupção, a cada demonstração de incompetência dos interventores militares na contenção das mortes pela pandemia.
As contradições entre os diversos grupos bolsonaristas aflorarão com a primavera que se seguirá a este tenebroso agosto de tantas incertezas. Por quê? Porque não é bom viver nessa realidade bolsonara.
Wilson Ramos Filho (Xixo), doutor em direito, presidente do Instituto Defesa da Classe Trabalhadora."
* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.
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