"Ainda estou aqui" - onde estão os negros e trabalhadores no filme?
Fazer uma crítica que não vê a importância desse filme é de uma estreiteza sem tamanho. Os possíveis reparos são sectários, descabidos
Entre as críticas que fazem restrição ao filme de Walter Salles, podemos anotar as mais severas a seguir.
Fabiane Albuquerque, no Le Monde Diplomatique: “jovens brancos de Copacabana, fumando maconha, querendo mudar o mundo, sem lavar a própria louça, são abordados pela polícia. Embora o período seja de Estado de Exceção, nem de longe podemos comparar com as abordagens policiais nas favelas e periferias do Brasil... Com o avançar do filme, o incômodo aumentou, sobretudo quando dei-me conta de que o olhar da obra se fechou numa família burguesa” .
Ou aqui, em Dani Sousa: “acho o filme alienante. É o ponto de vista de uma pessoa branca, herdeira em uma família de banqueiros, narrando a vida de gente branca e rica (o desaparecimento do patriarca não chega a afetar a qualidade de vida da família - no máximo a mudança da casa de praia para São Paulo), para outros brancos e ricos. É o puro suco da esquerda branca brasileira”.
Ou aqui, em vídeo do qual retiro alguns trechos, de Jones Manoel: “dois problemas na maioria dos produtores culturais sobre a ditadura: ou eles carregam o filme sobre o grande acontecimento, grande personagem, ou retratam dinâmicas e problemas da classe média durante a ditadura. Em ’Ainda estou aqui’, senti um grande incômodo em como é retratada a personagem Zezé, empregada doméstica no filme. De modo geral, o cinema falta muito retratar como era a vida da maioria na ditadura... Chico Buarque foi embora do Brasil (Jones faz movimento nos ombros como quem diz “e daí?”, ou “qual a importância?”). Enfim, diz pouco, não é?”.
Isso posto, devemos anotar duas ou três coisas que procuram responder a semelhantes críticas.
Numa resposta, digo que na criação da arte não existe a divisão de cor, raça ou origem. É preciso que se repita isso à exaustão, e se mostre o quanto é impossível a segregação em uma obra de arte? A discriminação, o preconceito, se dá na interpretação da obra, mas não na própria natureza do que se cria na arte. Pelo contrário. Um inesgotável valor da arte e do artista é romper os grilhões da sua origem de sexo, raça e classe.
Penso em Cruz e Sousa, um dos maiores poetas brasileiros de todos os tempos. Se assim ainda não é visto, a razão está longe do que ele escreveu.
“SÓ
Muito embora as estrelas do Infinito
Lá de cima me acenem carinhosas
E desça das esferas luminosas
A doce graça de um clarão bendito;
Embora o mar, como um revel proscrito,
Chame por mim nas vagas ondulosas
E o vento venha em cóleras medrosas
O meu destino proclamar num grito;
Neste mundo tão trágico, tamanho,
Como eu me sinto fundamente estranho
E o amor e tudo para mim avaro!...
Ah! como eu sinto compungidamente,
Por entre tanto horror indiferente,
Um frio sepulcral de desamparo!”
Para a mais profunda estética desse soneto, não precisamos saber que Cruz e Sousa era negro. Só é uma alegria e tristeza permanentes. Podemos ver, é certo, por acréscimo, que o poeta escreveu esse fundo grito depois das maiores discriminações contra a sua pessoa, sobrevivência, em razão de cor e raça. Mas o valor do soneto se impõe, antes e além de tal insuportável injustiça.
No mesmo lado, contra o erro de avaliar uma obra pela origem de classe do autor, não precisamos ir ao exemplo de Balzac, muito bem analisado por Engels. Recorro ao imediato, mais perto de nós. Penso em João Cabral de Melo Neto, que expressou a maior miséria de nordestinos que não eram da sua própria classe social. Ou no cinema, maior exemplo não há que o do paulista classe média Eduardo Coutinho, com o clássico Cabra Marcado para Morrer, denúncia sobre o assassinato de líder camponês João Pedro Teixeira, de Pernambuco, de todo o Brasil, para todo o mundo.
Na questão da origem, de lugar e de tempo! De uma obra de arte, penso que o melhor caso é o da tragédia grega. Marx escreveu sobre ela: “a dificuldade não está em compreender que a arte grega e a epopéia estão ligadas a certas formas do desenvolvimento social. A dificuldade reside no fato de nos proporcionarem ainda prazer estético e de terem ainda para nós, em certos aspectos, o valor de normas e de modelos inacessíveis”.
E Freud foi buscar nela nomes, características e fundamentos em sua obra de psicanálise.
Mas chegando mais perto do objeto do filme. Para uma obra que fala de uma família de classe média, que sofre um dos muitos crimes impunes da ditadura, falar uma crítica que não vê a importância desse filme é de uma estreiteza sem tamanho. Digo mais: os possíveis reparos são, de um ponto de vista político, sectários, descabidos. Os bolsonaristas já identificaram o perigo de uma obra que anuncia para o mundo inteiro a sua crueldade. Eles sabem. Repito o que eu publiquei antes.
Transmitido pelo filme, temos uma história real da miserável e terrível ditadura no Brasil. O diretor Walter Salles, Fernanda Torres, Fernanda Montenegro, Selton Mello e todo elenco nos põe de volta à tragédia humana que a extrema direita e golpistas querem desmerecer, ocultar, debochar, desrespeitar, na sua revoltante impunidade. Trazida pela arte, a ditadura se mostra, com um drama humano, familiar, que não poupou nem os bem-nascidos. Que matou sem escrúpulo, porque, afinal, todo resistente era chamado de terrorista. E num ponto ótimo do filme, o público nas salas de cinema tem compreendido a ditadura que se ocultava. A ditadura que nem dizia o seu nome, pois era chamada de revolução de 1964.
Todos os democratas, todos os jovens e eternamente jovens devemos ver, discutir e divulgar este filme. Ele está inscrito em nosso DNA. É nosso. Todos, populares, estudantes, brancos, negros, não importa a condição, nos sentimos presentes.
E concluo agora: recusar esse feito estético porque nele não há negros e trabalhadores, olhem, para ser mais explícito, digo: restringir nesse nível expressa uma visão bárbara que se disfarça de esquerda.
* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.
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