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    Sara Goes

    Sara Goes é âncora da TV247, comunicadora e nordestina antes de brasileira

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    Alcateia contra a democracia

    “A radicalização de grupos extremistas, assim como o caso de Francisco Wanderley Luiz, ilustra a organização hierárquica de uma alcateia”, escreve Sara Goes

    Francisco Wanderley Luiz, o "Tiu França" (Foto: Reprodução/Redes Sociais)

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    A pressa com que lideranças bolsonaristas se movimentaram para desmentir a conexão óbvia e pública entre Francisco Wanderley Luiz, o terrorista do recente atentado em Brasília, e o bolsonarismo é, no mínimo, digna de nota. Mal surgiram as primeiras notícias, e lá estavam figuras do movimento apressadas, tratando de esclarecer que aquele “ato isolado” em nada representa a essência de suas pautas. Reduzir episódios como esse a ações de um lobo solitário é ignorar um fator crucial: ninguém se radicaliza sozinho. Lobo solitário não sobrevive em alcateia, e no Brasil essa alcateia tem um nome e um líder simbólico: Jair Bolsonaro.

    A prisão de integrantes de um grupo de militares de Operações Especiais, conhecidos como kids pretos a partir da operação da Polícia Federal chamada Contragolpe, evidenciou como a radicalização política no Brasil transformou discursos de ódio em ameaças concretas à democracia. O grupo, desmantelado pela Polícia Federal, planejava atentados contra figuras de destaque, incluindo o presidente Lula, o vice-presidente Geraldo Alckmin e o ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Alexandre de Moraes, em um esforço claro para desestabilizar as instituições democráticas. A apreensão de documentos, mensagens e esquemas traçados pelos suspeitos confirmou que os planos iam além de retórica, envolvendo ações práticas que colocariam em risco a estabilidade nacional. Esses atos, chamados pelos próprios golpistas de "Punhal Verde e Amarelo", não podem cair na armadilha anedótica pelo aspecto ridículo e ser dissociados de um ecossistema político que incentivou a violência como ferramenta de ação.

    Os kids pretos são militares especializados em operações táticas e articuladores de estratégias de guerra híbrida, que combinam táticas militares e civis, como desinformação, sabotagem e ações psicológicas. Essa atuação não é uma teoria conspiratória ou uma atividade secreta: os próprios integrantes do grupo se gabam de suas ações em podcasts e eventos de entusiastas do militarismo, cuja romantização precisa ser examinada à luz de suas consequências no fortalecimento de ideologias autoritárias.

    Em entrevista ao podcast Fala, Glauber (2022), voltado para aspirantes a carreiras policiais, o General da reserva Ridauto Lúcio Fernandes, ex-diretor do Departamento de Logística do Ministério da Saúde no governo Bolsonaro, falou sobre estratégias de guerra e operações especiais, abordando o papel de forças irregulares em cenários de conflito. Ridauto está no centro das investigações da 18ª fase da Operação Lesa Pátria, suspeito de ser um dos idealizadores ou executores dos atos, embora afirma ter participado apenas como manifestante pacífico e deixado o local antes das depredações. O general, associado ao grupo de elite “kids pretos” das Forças Especiais do Exército, detalhou no podcast as técnicas utilizadas em operações especiais e o treinamento de forças irregulares: “O movimento irregular consiste em recrutar pessoas que não são militares ou que têm o mínimo de experiência militar [...] treinadas para se tornarem uma força disponível para combate, geralmente atuando por trás das linhas inimigas, no território do oponente. Nesse contexto, são recrutadas pessoas locais, muitas vezes dissidentes ou descontentes com o governo vigente.”

    Ridauto explicou que essas forças, compostas por civis treinados, são usadas para sabotagens, destruição de infraestrutura e combates diretos: “Nos anos 60 e 70, no Brasil, surgiram movimentos irregulares que foram combatidos de maneira mais eficaz quando as forças de operações especiais foram acionadas. [...] Por isso, nos cursos especiais, ensina-se tanto a criar quanto a desmontar movimentos irregulares.”

    O desmantelamento da alcateia bolsonarista ainda está longe de ser concluído. Há lobos cujas prisões são essenciais para desarticular completamente esse sistema, que opera com uma hierarquia bem definida. Na natureza as alcateias são organizadas de forma hierárquica, com líderes conhecidos como macho e fêmea alfa. Outros membros incluem subalternos e, às vezes, lobos subordinados ou juvenis. Esses animais se comunicam por meio de uivos, expressões corporais e até marcação de território com urina e fezes. Percebesse a semelhança? A operação Contragolpe mostrou que a alcateia bolsonarista possui uma estrutura hierárquica e uma coordenação sofisticada, que combina líderes operacionais, financiadores e disseminadores de narrativas em redes sociais e eventos públicos.

    A trama também inclui nomes de alto escalão que, até o momento, não foram formalmente acusados. Um exemplo é o general Walter Braga Netto, cuja casa foi apontada como local de reuniões em 2022 para planejar ações golpistas, incluindo atentados contra lideranças democráticas. Apesar de sua proximidade com os eventos, Braga Netto, uma espécie de lobo subalterno, permanece solto, mas deve estar com os pelos eriçados. Sua relação com os articuladores do plano reforça a necessidade de aprofundar investigações e responsabilizar todos os envolvidos, especialmente as lideranças que ocupavam posições estratégicas na hierarquia da alcateia.

    Enquanto o Brasil enfrenta ameaças como essa vivemos a necessidade de preservar a memória de quem, em outros tempos, resistiu ao autoritarismo. Mártires como Bergson Gurjão, que lutaram contra a ditadura militar, representam o oposto do extremismo que vemos hoje. Bergson, um jovem idealista que deu sua vida pela democracia, tornou-se símbolo da luta por liberdade e justiça. Em junho de 1972, aos 25 anos, ele foi morto no Araguaia, durante uma emboscada planejada pelas forças militares. Seu corpo foi pendurado numa árvore, de cabeça para baixo, enquanto solados chutavam sua cabeça e posteriormente enterrado de forma clandestina no cemitério de Xambioá, em uma tentativa do regime de apagar sua história. Por décadas, Bergson permaneceu desaparecido, até que, em 2009, seus restos mortais foram identificados e entregues à família, permitindo um sepultamento digno.

    Meus tios lutaram ao lado de Bergson na Guerrilha do Araguaia, compartilhando a mesma causa e os mesmos ideais. Em sua memória, meu primo, filho do casal, recebeu seu nome como uma homenagem à resistência. Assim como a ditadura tentou apagar a memória de Bergson Gurjão e de tantos outros que resistiram, hoje vemos novos esforços para manipular narrativas e deslegitimar figuras que simbolizam a luta pela democracia. Esses ataques, ainda que sutis, pavimentam o terreno para o fortalecimento do extremismo político. É o caminho que se abre para a marcha da alcateia.

    Em novembro deste ano, a Concha Acústica da Universidade Federal do Ceará (UFC), originalmente batizada com o nome de Martins Filho, em homenagem ao fundador e primeiro reitor da instituição, teria seu nome alterado para homenagear o ex-estudante assassinado pela Ditadura. A decisão gerou debates intensos e ressuscitou figuras como o ex-reitor interventor Cândido Albuquerque e o ex-prefeito Roberto Cláudio (PDT), ambos lobos em pele de cordeiro, que se apresentam como defensores da tradição, mas operam para deslegitimar a memória da resistência democrática. A solução da polêmica sobre a homenagem hoje, divulgada na mesma manhã da Operação Contragolpe, não encerra a discussão mais ampla sobre a preservação da memória de combatentes da democracia. Como destaca Roberto Maciel, em sua análise sobre a manipulação da memória histórica, a extrema direita busca deslegitimar movimentos de resistência democrática para glorificar o autoritarismo e justificar ações extremistas contemporâneas. Esse esforço deliberado para deformar o passado reflete a mesma lógica que tenta minimizar a gravidade de grupos como os kids pretos, ou o suicida-bomba de Brasília. Nos três casos há uma tentativa de transformar agressores em vítimas ou desconectá-los de uma estrutura maior: o bolsonarismo.

    A manipulação histórica serve a um propósito claro. Ao desmerecer símbolos de resistência como Bergson Gurjão, esses grupos não apenas tentam apagar o passado, mas também pavimentam o caminho para normalizar atos de violência política no presente. Essa estratégia cria uma narrativa que relativiza o extremismo, legitima ações autoritárias e desvaloriza a importância de figuras que deram suas vidas para garantir as liberdades que temos hoje.

    A radicalização de grupos extremistas, assim como o caso de Francisco Wanderley Luiz, ilustra a organização hierárquica de uma alcateia. Nesse contexto, Jair Bolsonaro desempenha o papel do líder alfa, cujo discurso e postura alimentaram a radicalização de seguidores. Durante anos, o ex-presidente usou a retórica do "nós contra eles", transformando adversários políticos e instituições democráticas em inimigos públicos.

    É necessário um esforço contínuo para desmantelar não apenas as estruturas materiais dessas alcateias, mas também o ambiente simbólico que as alimenta. Isso implica combater narrativas que romantizam o autoritarismo, fortalecer a educação para a cidadania e valorizar a memória daqueles que resistiram ao despotismo. Bergson afinal não deu seu nome à Concha Acústica, mas se tornou definitivamente mártir e símbolo de uma luta que persiste. Nossa sociedade tem mais uma oportunidade de reafirmar seu compromisso com a democracia e recusar qualquer retorno às sombras do autoritarismo, exigindo que toda a alcateia seja devidamente responsabilizada.

    * Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.

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