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    Danilo Molina

    Jornalista, foi assessor do Ministério da Educação e do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep) durante o governo Dilma Rousseff e servidor do Ministério durante o governo Lula

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    Alto lá, ministra!

    São estarrecedores os vídeos que circulam na internet e nas redes sociais, nos quais a futura ministra dos Diretos Humanos utiliza o ensino da cultura afro-brasileira para atacar de forma gratuita as religiões de matrizes africana

    Alto lá, ministra! (Foto: Valter Campanato/Agência Brasil)

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    A inclusão de conteúdos da história e da cultura afro-brasileira e indígenas nos currículos e nas ações educacionais de nossas escolas é uma conquista social do povo brasileiro. O tema é de tamanha relevância que está assegurado pelo Plano Nacional de Educação, aprovado por unanimidade pelo Congresso Nacional e sancionado sem vetos pela então presidenta Dilma Rousseff em 2014, sempre esteve presente nas diversas discussões sobre a Base Nacional Curricular Comum (BNCC) e é garantido por duas leis federais.

    Isso posto, são estarrecedores os vídeos que circulam na internet e nas redes sociais, nos quais a futura ministra dos Diretos Humanos utiliza o ensino da cultura afro-brasileira para atacar de forma gratuita as religiões de matrizes africanas. Em um dos vídeos, a futura ministra se diz preocupada "com a questão do satanismo e do ensino afro em sala de escolas". "Estão confundindo nossas crianças na sexualidade e na religiosidade", prossegue.

    Em outro, a futura ministra acusa professores de burlarem a lei e de não estarem ensinando cultura afro, mas de estarem ensinando religião afro nas escolas, "desrespeitando a fé das crianças cristãs e de forma obrigatória". Para justificar sua tese absurda, a futura ministra diz que o livro "Eleguá", obra sobre mitologia africana que apresenta para crianças e para adolescentes a visão do povo iorubá sobre a formação do mundo, estaria sendo utilizado nas escolas para gerar "confusão espiritual".

    O show de abusos e de agressões prossegue e a futura ministra apresenta uma série de outros livros, que não possuem qualquer relação com o ensino da cultura africana, como "Evocação", "Manual Prático de Bruxaria" e "A máquina de brincar", e os coloca no mesmo patamar de "Eleguá" ao afirmar que os mesmos também geraram "confusão espiritual". Tudo disso, precedido do simpático verniz de respeito à diversidade, com frases como "as escolas têm que ensinar realmente sobre a cultura indígena e a cultura afro, a contribuição que os africanos trouxeram para o Brasil", "com todo respeito às religiões de matriz africana" e "nós estamos respeitando".

    Não parece adequado, nem respeitoso e tão pouco contribui para uma cultura de paz, um discurso que confunde a opinião pública e que associa as religiões de matrizes africanas, historicamente vítimas de casos de agressões e de ataques em nosso país, ao satanismo, à bruxaria ou à questão da sexualidade das crianças. Tão pouco é intelectualmente honesto a utilização de um livro de mitologia africana como argumento de que as religiões de matrizes africanas estão sendo impostas nas escolas brasileiras.

    Primeiro, porque não se trata de um livro sagrado das religiões de matrizes africanas, como a bíblia é para os cristãos, o corão é para os muçulmanos ou a torá é para os judeus, por exemplo. Portanto, é desigual que se tente justificar a volta da bíblia para as escolas, em razão de um livro de mitologia. Segundo, porque a visão de mundo e os valores de grande parte dos povos africanos são culturalmente baseados na oralidade e transmitidos essencialmente por meio de mitos, lendas e histórias. E, ao que consta, a futura ministra não parece preocupada com o ensino de lendas e mitologias que constituíram a base do pensamento e da cultura branca ocidental, como a greco-romana com seus deuses Zeus, Afrodite, Plutão, Marte, entre outros, nas escolas.

    Em um país que carrega um forte e histórico ranço de preconceito, tendo sido o último do ocidente a acabar com a barbárie da escravidão, é fundamental o exercício cotidiano e diário do respeito integral aos direitos humanos, pasta que a futura ministra irá comandar. No tocante ao respeito à liberdade religiosa, a futura ministra deveria se debruçar sobre os dados da pasta que irá comandar, que apontam o aumento em 7,5% nas denúncias de discriminações contra os adeptos das religiões de matrizes africanas no primeiro semestre de 2018, enquanto as denúncias por discriminação contra todas as religiões caíram de em 17%.

    Afinal, para além do discurso de ódio e de preconceito, nos vídeos em que a futura ministra aparece agredindo deliberadamente as religiões de matrizes africanas, quais são as propostas do futuro governo para avançar no combate à intolerância religiosa e no respeito constitucional de liberdade de culto e dos direitos das chamadas minorias? A política de cotas, que aumentou em 286% a presença de estudantes negros na universidade brasileira, por exemplo, será mantida?

    Antes de sair atropelando conquistas sociais históricas do povo brasileiro e das minorias, o governo eleito precisa lembrar que, apesar de ter ganhado as eleições de outubro, não conta com o apoio da maioria do povo brasileiro. O futuro presidente fez 57,7 milhões de votos no 2º turno. Fernando Haddad fez 47 milhões, os nulos foram 8,6 milhões, os brancos foram 2,4 milhões e as abstenções representaram 31,3 milhões de pessoas. Foram 89,3 milhões de brasileiros e de brasileiras que disseram não ao projeto de Bolsonaro e ao que ele representa.

    Por isso, alto lá! O futuro governo não terá carta branca para implementar as barbaridades que vem sendo propondo, como a "imposição da vontade da maioria sobre as minorias". Nunca é demais lembrar que a defesa integral dos direitos humanos transpassa qualquer posicionamento político, religioso ou ideológico. A defesa de uma cultura de paz é uma questão civilizatória vital para os direitos humanos e deve ser prioridade de toda a sociedade brasileira.

    A futura ministra pode aproveitar o simbolismo desta segunda-feira, dia em que celebramos os 70 anos da Declaração Universal dos Direitos Humanos, e dar uma sinalização clara para a sociedade brasileira de que respeita a diversidade do povo brasileiro, independentemente de condição social, gênero, religião, orientação sexual e raça. Pastora evangélica que é, a futura ministra pode muito bem se juntar a Frente Inter-religiosa Dom Paulo Evaristo Arns por Justiça e Paz, integrada por líderes católicos, budistas, evangélicos, indígenas, judeus, muçulmanos, kardecistas e religiões de matriz africana, e participar do ato inter-religioso, logo mais, às 15h, na Catedral da Sé, em comemoração desta data essencial para os direitos humanos.

    * Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.

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