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    Pepe Escobar

    Pepe Escobar é jornalista e correspondente de várias publicações internacionais

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    Anarquia no Levante: seu sonho futuro é um esquema de caos

    Michael Hudson é categórico: “Anarquia é o plano dos Estados Unidos”

    Soldados israelenses se reúnem perto da linha de cessar-fogo entre a Síria e as Colinas de Golã ocupadas por Israel, 9 de dezembro de 2024 (Foto: REUTERS/Ammar Awad)

    A Síria, tal como a conhecíamos, está sendo eviscerada em tempo real – em termos geográficos, culturais, econômicos e militares – por uma pavorosa confluência de bandos de mercenários jihadis-de-aluguel e genocidas psicopatológicos orando no altar de Eretz Israel.

    E tudo isso com o total apoio das hienas hidrófobas do OTANistão – mestres do controle da narrativa – e intimamente entrelaçadas com a erradicação da Palestina. 

    Por toda a abertamente decepcionada Maioria Global, paira o sentimento de que o momentaneamente exaurido Eixo da Resistência terá que entrar em modo turbo-Sísifo para reorganizar, reabastecer e recalibrar a defesa da Palestina.

    Como seria de se prever, em lugar algum do OTANistão se ouve um pio sobre os bombardeios selvagens e indiscriminados e a usurpação de território sírio. O que representa uma ilustração evidente da “ordem internacional baseada em regras” em ação.  

    A Thinktanklândia do Ocidente Coletivo está em êxtase. A Chatham House prega uma reconstrução síria neste “momento divisor de águas”, liderada pelos Estados Unidos, União Europeia, Catar, Arábia Saudita e Turquia, capaz de “forjar um consenso relativo à Síria” que poderia servir de base para uma nova ordem regional”.  

    O furiosamente anti-BRICS Centro para uma Nova Segurança Americana (CNAS) exige a “expulsão da presença militar da Rússia” na Síria e o “fechamento do país como meio de projeção do poder iraniano”. 

    O Eixo da Resistência vem sendo pranteado por todo o espectro. Calma lá. O significado mais profundo do “cessar-fogo entre Israel e o Hezbollah é que os psicopatológicos, para todos os fins práticos, foram derrotados, mesmo tendo causado um horrendo caos no sul do Líbano e nos subúrbios de Beirute. 

    A mudança da narrativa – e do foco – para a ofensiva no Grande Idlibistão permitiu uma reconhecidamente maciça vitória tática, não apenas para os capangas do Eretz Israel, mas também para todo o combo OTANistão/Turquia. Mas o verdadeiro xis da questão começa agora, mesmo a partição da Síria  já estando em vigor. 

    Os bandos de jihadis-de-aluguel, que em tese são controlados pelo aspirante a Califa de Al-Sham, o saudita al-Jolani, cujo nome real é  Ahmad Ibrahim al-Sha’a, mais cedo ou mais tarde  poderá se voltar contra o projeto de Eretz Israel, levando em conta que eles mantêm boas relações com o Hamas de Gaza.

    Pelo menos por enquanto, tudo vai muito bem para o plano de Oded Yinon e/ou Bernard Lewis, de subjugar o Oeste Asiático por meio do Dividir para Dominar testado pelo tempo. O que remete não apenas ao Sykes-Picot de 1917, mais a tempos ainda anteriores, a 1906, quando o primeiro-ministro britânico  Henry Campbell-Bannerman afirmou que:

    “Há povos [os árabes] que controlam vastos territórios repletos de recursos, manifestos e ocultos. Eles dominam as intersecções das rotas mundiais. Suas terras foram o berço das civilizações e religiões humanas”.  

    Portanto, se esses “povos” se unissem, eles tomariam em suas mãos o destino do mundo e separariam a Europa do resto do mundo”.  

    Daí a necessidade de um “corpo estranho” [mais tarde representado por Israel] ser “plantado no coração dessa nação para evitar a convergência de suas asas, de modo a exaurir seus poderes em guerras intermináveis. Ele também poderia servir como trampolim para o Ocidente alcançar os objetivos que almeja”.  

    Os piratas do Levante

    A alucinação do Eretz Israel não combina bem com o sonho neo-otomano do Sultão Erdogan, embora ambos coincidam em sua intenção mais ampla de redesenhar o mapa do Leste do Mediterrâneo e do Oeste Asiático. 

    Quanto aos Excepcionalistas, eles mal acreditam em sua sorte. De um só golpe, eles devoraram o principal nó estratégico de uma ideia hoje enterrada: o arabismo, ou o anti-imperialismo do Levante.

    Desde que Barack Obama, em inícios da década de 2010, declarou guerra à Síria por ordem de Tel Aviv, o Império do Caos vem despejando sobre Damasco tudo o que se possa imaginar, há pelo menos treze anos: a mais longa e mais cara campanha de mudança de regime da história dos Estados Unidos, incluindo sanções tóxicas de inanição forçada – até que, de repente, a sorte grande caiu no seu colo. 

    O prêmio envolve – em tese – esmagar um aliado dos três principais BRICS, Rússia, Irã e China, com o bônus adicional de transformá-lo em um buraco negro geoeconômico, ao mesmo tempo em que é urdida a falsa narrativa de vender “o fim do ditador” para a Maioria Global como a precondição para o surgimento de uma nova Dubai.  

    Ainda não sabemos como será o que irá sobrar da Síria  – e nem ao menos por quanto tempo ela será governada por um bando de salafi-jihadistas neoliberais, de barbas aparadas e ternos prêt-à-porter baratos.

    O fato é que o Hegêmona já vem controlando pelo menos um terço do território sírio há pelo menos uma década – e continuar a roubar petróleo e trigo sírios com total impunidade: piratas do Levante paramentados da cabeça aos pés.   

    Desempenhando o papel de assistente, a M-16 do Reino Unido continuará a se esmerar em fornecer operações de relações públicas, lobbies de todos os tipos e oportunidades de contrabando de armas para os crédulos bandos de mercenários salafi-jihadistas. 

    No que se refere a Tel Aviv, eles vêm destruindo a maior das oposições militares a Eretz Israel, roubando e anexando terras ininterruptamente e sonhando com total dominação aérea e naval, caso a Rússia venha a perder suas bases em Tartus e Hmeimim (possibilidade muito incerta). Fora o fato de que eles, de modo indireto, controlam o novo Califa, que gentilmente pediu-lhes para, por favor, não conquistar terras sírias demais. 

    A partição ocorrerá ao longo de três outros vetores principais. 

    1. Terras e bases militares controladas pelo Hegêmona – que podem ser usadas para atacar o Iraque. E pode esquecer de a falsamente soberana Síria vir a recuperar seus campos de petróleo. 
    2. Terras anexadas pela Turquia, o que, inevitavelmente, irá levar à total anexação de Alepo (já proclamada oficialmente pelo Sultão). 
    3. Damasco governada por uma ramificação do ISIS diretamente manipulada pela inteligência turca.  

    Tudo o que foi dito acima poderia levar, já no primeiro trimestre de 2025, a uma espécie de  acerto de sionização salafi-jihadista com um único objetivo: amenizar as sanções dos Estados Unidos e da União Europeia. 

    Quanto a al-Jolani, cujo verdadeiro nome é Ahmad Ibrahim al-Sha’a, apesar de toda a sua repaginação politicamente correta, ele foi o tenente de Al-Zarkawi e Emir de Nineveh durante a agitação da Mesopotâmia provocada pelo al-Qaeda no Iraque (AQI, mais tarde reconvertido a ISIS). Não há a menor possibilidade de Bagdá manter relações diplomáticas com um salafi-jihadista que consta da lista iraquiana dos mais procurados.

    Uma outra dor de cabeça são as condições colocadas pela União Europeia para a normalização da Síria, tal como formuladas pelo estoniano doido de pedra não eleito responsável por sua política externa (e representando quase 500 milhões de cidadãos europeus):  Bruxelas só levantará as sanções se não restar qualquer base russa ou “influência russa no Califado de al-Sham.

    Enquanto isso, o Império do Caos dará prosseguimento a seu saque – juntamente com Israel. O petróleo sírio roubado pelos americanos é vendido pelos curdos a Israel em Erbil, com grandes descontos.  Afinal, esse petróleo é “gratuito” – ou seja, roubado. Ao menos 40% do petróleo de Israel vem da máfia de Erbil.

    E fica ainda pior.

    Israel anexou a represa de Al-Wahda na bacia do rio Yarmouk, próxima à cidade de Al-Qusayr, no governorado  de Dara, e próxima à fronteira da Jordânia.  Essa represa fornece pelo menos 30% da água da Síria e 40% da água da Jordânia. 

    Tudo é tão previsível: o que o combo OTANistão/Israel realmente quer é uma Síria amputada, desagregada e vulnerável. 

    O Império do Caos entra em Anarquia Total

    Mas a equação tóxica está longe de terminar. O aspirante a Califa Jolani talvez se sinta tentado a permitir que a Rússia mantenha suas bases – e retire do país seus sistemas de armas intactos. Ele está em estreito contato com Moscou, e o HTS está de fato protegendo os ativos russos. 

    Paralelamente, o Hezbollah sinalizou que está disposto a “cooperar” com o HTS, que por sinal vem protegendo também a embaixada iraniana em Damasco. ​​

    Não há o menor indício de que a invasão do Grande Idlibistão tenha sido um cavalo de Troia, acordado na mesa de negociações pelo – finado  – “processo de Astana”, mesmo antes do fatídico encontro de Doha, em 7 de janeiro.  

    O que é certo é que as análises de Moscou e Pequim privilegiam o Grande Quadro de Longo Prazo. Os chineses, até agora, vêm, pelo menos publicamente, se mostrando muito circunspectos sobre todo o drama sírio, além de se declararem “prontos a desempenhar um papel construtivo”. Pequim e Moscou veem a Síria como um revés temporário infligido aos BRICS por um Império no Beco da Desolação, acompanhado de seu aliado Eretz Israel, igualmente desesperado, e de um Sultão com um olho maior que a barriga.   

    O pato manco Biden não faz a menor ideia sobre o surgimento de um – possível – vetor hegemônico israelo-turco em um importantíssimo nó do Oeste Asiático. A única coisa que importa para os neocons straussianos e seus broders psico-apocalípticos de Tel Aviv, quando se trata da desintegração da Síria, é a janela de oportunidade para Israel atacar o Irã. 

    O The Times de Israel está em êxtase: “Enquanto, antes, a Força Aérea de Israel não voava diretamente sobre Damasco ao realizar ataques a alvos ligados ao Irã na capital, isso agora é possível”. 

    A chave para decifrar essa charada talvez esteja, mais uma vez, com Jolani. Tudo, no Oeste Asiático, está sempre em fluxo perpétuo. Poucos dias após a queda de Damasco, o Sultão Erdogan, e também a OTAN, se recusaram a ajudar Jolani a se opor ao violento ataque de Israel contra a Síria.   

    E por falar na “soberania” do aspirante a Califado. 

    Então, para onde Jolani poderia se voltar na busca por possíveis aliados? E em quem ele pode confiar para impor alguma ordem em uma Síria totalmente desagregada – incluindo o poderio aéreo para lutar contra bolsões do ISIS espalhados por todo o deserto? 

    Entram em cena Teerã e Moscou. Daí, os bastidores funcionando a todo o vapor. Eles não hesitariam por um segundo em “cooperar” com  o recém-nascido Califado – contando que seus interesses nacionais não sejam ameaçados. 

    O Império do Caos continua inigualável em termos de controle da narrativa, de piruetas de relações públicas, do monopólio das esferas das mídias sociais e da guerra psicológica contínua.  

    O Império foi miseravelmente derrotado, tanto no Afeganistão quanto no Iraque. E continua a ser humilhado pelo houthis no Mar Vermelho. Washington não tem a menor vantagem sobre a Rússia na esfera militar – exceto na guerra eletrônica, pelo menos no cenário Oeste-Asiático, e em  ISR (inteligência, vigilância e reconhecimento), área em que a Rússia vem avançando rapidamente, o que instantaneamente se traduz em infligir cada vez mais terror. 

    Quanto ao Irã, o país está longe de estar mais fraco agora do que antes da queda de Damasco. Essa é a narrativa mentirosa do Império, inerente ao mecanismo autocomplacente do excepcionalismo. O Aiatolá Khamenei, um ótimo estrategista, não desperdiça palavras. Teerã acabará por desenvolver uma cadeia de fornecimento alternativa para o Hezbollah e a Cisjordânia.  

    Além disso, sigam o dinheiro. O Ministério das Relações Exteriores iraniano já observou que “o novo governo sírio assumirá todas as obrigações financeiras sírias junto ao Irã. Isso é muito dinheiro – que Jolani não tem.

    Michael Hudson é categórico: “Anarquia é o plano dos Estados Unidos”. Em se tratando do Oeste Asiático, onde a facada pelas costas é uma arte, haverá retaliação. Teerã e Moscou não nutrem ilusões – e vem se preparando da forma compatível. A guerra contra os BRICS está apenas começando.

    Tradução de Patricia Zimbres

    * Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.

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