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    Fernando Lionel Quiroga

    É professor da Universidade Estadual de Goiás (UEG), na área de Fundamentos da Educação. Doutor em Ciências pela Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP)

    38 artigos

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    "Anatomia de uma queda", remake de "O iluminado" ou a corrosão da vida sob o espírito do neoliberalismo

    A frustração consagra-se como a principal marca do neoliberalismo

    Cartaz de “Anatomia de uma queda” (Foto: Divulgação)

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    No intervalo de 1980 a 2024, diversas mudanças ocorreram nas formas de vida da população mundial. Do assassinato de Salvador Allende e a ditadura de Augusto Pinochet, ao sionismo neoliberal praticado por Benjamin Netanyahu, esse hiato temporal constitui a massa espiritual do neoliberalismo que invade, diariamente, as nossas casas. É no dia-a-dia onde o espírito de um tempo mais se manifesta. Como aprendemos na antropologia, um só gesto pode explicar uma estrutura inteira. 

    Acompanhemos a seguinte estrutura:

    1. Uma família moderna, composta de pai, mãe e apenas um filho: a típica família do contexto individualista neoliberal. Além das nuances, é óbvio, da perspectiva de gênero que marca o intervalo de mais de quatro décadas entre os filmes. 
    2. Em “O iluminado (1980)” de Stanley Kubrick, a mulher dedica-se aos cuidados da casa e da família - seguindo aos padrões típicos da época;
    3. Na versão de Justine Triet, em “Anatomia de uma Queda”, a mulher não apenas trabalha; seu trabalho é a própria realização da atividade que, em sentido oposto, representa o fracasso de seu marido. Ela é escritora. Não uma escritora qualquer, mas uma escritora conhecida no meio literário. Com fama e reconhecimento. 
    4. Nas duas versões as famílias se isolam em uma região montanhosa coberta de neve. Em “Anatomia”, nos Alpes franceses; em  “O Iluminado”, nas geladas montanhas do Colorado. 
    5. Em “O iluminado”, o filho do casal possui “visões” que antecipam o terror que ele e sua mãe estão prestes a passar.
    6. Em “Anatomia”, o filho do casal, é quase cego em razão de um acidente sofrido aos 4 anos. O ponto em comum é que, em ambos, a visão ocular pouco importa. Assim como em Édipo Rei, os olhos perdem a batalha diante da força do destino, por isso Édipo os perfura. 
    7. Nos dois filmes, os dois homens, Samuel (Samuel Theis) e Jack (Jack Nicholson) são ex-professores que aspiram ser escritores. O sentimento de fracasso leva-os à morte. Ambos morrem na neve. Jack, com o rosto congelado, eterniza a expressão de sua loucura. Samuel cai do sótão e é encontrado morto com uma lesão fatal na cabeça.
    8. Nos dois filmes, os filhos são o pivô da culpa dos pais. Em “O iluminado”, isso se deve ao fato de Jack ter deslocado o ombro do menino em um dia em que havia bebido demais. Em “Anatomia”, a culpa recai sobre Samuel em razão do acidente que Daniel teria sofrido aos 4 anos e que teria produzido uma lesão permanente no nervo ótico. No acordo estipulado pelo casal, aquele seria o dia de Samuel buscar o filho na escola. Entretanto, para não ter de largar a escrita, ele terceiriza a função contratando uma babá que chega ao local atrasada quando, então, o menino é atropelado por uma moto. 

    Tal é a anatomia de uma comparação à qual nos interessam alguns pontos que devem ser ligados ao espírito do neoliberalismo. São eles:

    i) Frustração

    A frustração é o eixo central de ambos os filmes. Neles, ninguém da família se vê realizado. Em ambos, a ideia de uma casa isolada rompe, de cara, com a mínima sugestão de uma maior proximidade familiar. O isolamento distancia-os ainda mais. Jack (“O Iluminado”) se isola no salão para preencher centenas de páginas com a frase:

    “All work and no play makes jack a dull boy”

    Quando sua esposa, Wendy (Shelley Duvall) percebe que o conteúdo é sempre a mesma frase, mudando apenas a forma, seu espanto não é pelo incompreensível, mas pelo constatável. Wendy percebe que o imanente se impõe sobre o contingente.  O sonho romântico de se retirar em família por uma temporada em um hotel, desmancha-se imediatamente diante de seus olhos.  

    Assim, a frustração consagra-se como a principal marca do neoliberalismo justamente porque a utopia do indivíduo absoluto (o homem como consumidor e mercadoria) não encontra ponto de contato possível com quem quer que esteja ao seu lado. Cada vez que alguém dá de cara com o rosto tenebroso da época, os limites da vida tornam-se impossíveis e a morte, inevitável. Por isso, no fundo, pouco importa o motivo da morte de Jack e de Samuel. No neoliberalismo, como mito contemporâneo, o que importa é a morte como última resposta a uma vida que já não apresenta solução. Após a morte de um, o que importa é que sua estrutura enrijecida continue a atuar no mundo dos outros. 

    Triet parece ter notado o neoliberalismo encarnado na figura de Jack - cujo projeto de vida é irrealizável e cujo sentimento de culpa é permanente em razão de estar em uma permanente dívida. 

    ii) A apatia das novas gerações

    O segundo traço do neoliberalismo é a morte da alegria e o império da apatia das novas gerações. Danny (Danny Lloyd), filho de Jack (Jack Nicholson) e Wendy (Shelley Duvall); e Daniel (Milo Machado Graner), filho de Sandra (Sandra Hüller) e Samuel (Samuel Theis) expressam a apatia contemporânea que vem se desenvolvendo, especialmente a partir do espírito do neoliberalismo, ao longo das últimas décadas. Neles não se vê qualquer indício de uma noção de “alegria” que seria inerente às fases iniciais da vida de uma família convencional. O que vemos é um estado de completa apatia, distanciamento, melancolia. O que Danny faz ao andar velozmente com seu triciclo pelos corredores do hotel não parece ser uma brincadeira, mas uma forma de encontrar alívio em um contexto de opressão. O passeio em círculo de Daniel com Snoop (seu cão guia) possui o mesmo significado, já que o mesmo resolve sair de casa em um contexto que tinha todos os ingredientes do desagravável: sua mãe recebendo uma visita e o som alto que vinha do sótão, preenchendo os espaços da casa de um modo bastante irritante. 

    A apatia do neoliberalismo se expressa na suprema individualidade que desde os anos 1980, parece ter nos pego de surpresa. Daí porque a palavra “empatia” ter-se tornado tão popular. Dela o que os sujeitos neoliberais sabem é nada mais que seu significado formal. A apatia não é apenas um estado psicológico que neutraliza as emoções. Ela é o estado mental onde a massa cerebral foi mexida e remexida por meio de bombardeios ininterruptos de desinformação e de histórias falaciosas. A apatia é, por assim dizer, o estado da consciência que o neoliberalismo necessita para forjar um tipo de consciência conformada aos interesses do capital.

    iii) Cada um por si

    O neoliberalismo marca o fim da fronteira entre o espaço público e privado. Como o único que interessa é o indivíduo, tanto faz os espaços coletivos, sejam eles privados ou públicos. Assim, a família - qualquer família - perde total sentido. Cada indivíduo é um mundo a ser satisfeito. O cidadão comum, cuja tendência foi vista por Walter Benjamin, não se contenta em ser leitor. Quer ser também escritor. A criança se insurge contra a ideia de infância à medida em que passa a tomar as próprias decisões, a fazer as próprias escolhas. Que infância, que nada! Nos dois filmes as crianças são o estopim da solução ao problema. Em “O iluminado”, Danny serve-se do clássico expediente de guerra para levar seu pai a persegui-lo no labirinto já conhecido por ele. Em determinado ponto da fuga, Danny salta ao lado de suas pegadas e apaga o rastro, deixando Jack sem referência.  Despistado, Jack não resiste ao frio e morre, de olhos abertos, condenado pela neve. Em um dos últimos depoimentos antes do julgamento de Sandra, em “Anatomia”, Daniel conta uma história que pode tanto ser fruto da imaginação quanto da memória e que, apesar da ausência de materialidade jurídica, pode ter influenciado na decisão do julgamento, que termina absolvendo Sandra. 

    O ponto é que, em ambos os filmes, cabe aos filhos a busca por recursos para “salvar” a si próprios. Os pais já não representam qualquer proteção. Ideologicamente, a mensagem clara nos dois filmes é a lição de que para que as novas gerações possam assegurar a própria sobrevivência, é imprescindível o emprego de estratégias mesmo que elas possam prejudicar alguém bem próximo, como o pai ou mãe. A lição é: nada está garantido. Não há estabilidade alguma. Sequer há uma casa: as famílias se recolhem em um hotel vazio, de um lado; em um chalé retirado nos Alpes franceses que Samuel pretende reformar para alugar pela Airbnb, de outro. Distanciam-se da essência de segurança que a casa proporciona, submetendo-se a um não lugar. Em um espaço sem apoio, sem superfície. Há apenas indivíduos com suas verdades incomunicáveis. Soltos. Apartados de si e dos outros. A solução torna-se impossível, já que a solução de uma situação coletiva torna-se absurda no espírito do neoliberalismo, em que cada corpo é uma propriedade privada e uma fonte de extração de mais valor. 

    iv) Exaustão e violência

    O neoliberalismo alimenta-se da violência por duas razões. Primeiro, ela é necessária, especialmente, pela produção e reprodução do medo. Mais, ela é necessária para que se implante um estado de apatia como pré-condição para a modelagem ideológica à serviço do poder econômico. Segundo, em geral, a violência nunca é absoluta. Ela é consequência de níveis altíssimos de estresse. Ela é o efeito imediato da exaustão. Como em “Clube da Luta” (1999) de David Fincher, a violência é a melhor resposta à depressão e à insônia. 

    A violência se manifesta sob diversas formas. Não é necessário fazer alguém sangrar para que ela se configure. Basta que vejamos a lista de adjetivos que a acompanham: psicológica, simbólica, institucional, estatal etc. Mas, o ponto a ser destacado é a correlação entre a exaustão e a violência. Uma correlação que, se bem amparada pela estatística, nos permitiria compreender melhor a íntima relação entre a exploração do trabalho e o aumento nos índices de violência. Daqui, é importante salientar os vínculos entre a exploração do trabalho e a alienação do homem, cujo resultado implica na degradação da própria existência. No neoliberalismo pós-pandemia, a violência manifesta-se de modo mais enfático em escala individual. A violência expressa-se com força total no novo campo da patologia moderna: depressão; automutilação; síndrome da indiferença e da resignação; hikikomori etc. Assim, o estereótipo da violência encarnada por um homem como Jack, tem mais a ver com o sentimento de reação a um paradigma de gestão da vida sob uma lógica de controle totalitário, resultando em um forte ressentimento e culpa, do que um tipo de violência que abandona o corpo para tomar posse do meio. Se, em “O iluminado”, Jack é aquele que encarna a violência, a quem cabe esse papel em “Anatomia”? Jack representa a neurose do homem neoliberal em seu estágio embrionário. Samuel é o sujeito neoliberal quarenta anos depois. Esse é o ponto. Como a violência não mais se localiza fisicamente, como ela escapa dos estereótipos, todos são igualmente suspeitos, todos são potencialmente inimigos. “Anatomia de uma queda” é a anatomia do neoliberalismo avançado de nosso tempo. 

    * Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.

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