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    Henrique Pizzolato

    Ex-sindicalista bancário; ex-presidente da CUT Paraná; ex-diretor da Previ e do Banco do Brasil; militante de Direitos Humanos e membro da Rede Lawfare Nunca Mais

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    Anistia é instrumento de pacificação, não um escudo para a impunidade

    Dizer não à anistia dos que atacaram a democracia é reafirmar que há limites

    Ato pró-anistia aos golpistas do 8 de Janeiro em Copacabana, Rio de Janeiro-RJ - 17/03/2025 (Foto: Reuters)

    A anistia ressurge no centro da vida política brasileira como uma palavra densa, carregada de ruídos, disputas e silêncios. Há quem a evoque como gesto necessário para reatar laços partidos pelo conflito. Mas há também quem a utilize como véu para esconder delitos, como truque para driblar a verdade. Neste cenário, torna-se vital distinguir a reconciliação verdadeira da manobra oportunista, separar o que busca curar daquilo que apenas encobre. Como democratas, inquieta-nos o risco de vermos um instrumento de paz transformado em escudo para os que atentaram contra a República. A anistia, como ideia e prática, não pode ser descolada de seu contexto histórico, tampouco esvaziada de seu conteúdo ético. Seu significado depende, em cada momento, do modo como é invocada e dos objetivos que serve.

    A anistia, em sua origem, nasce da necessidade de reconciliação. Não apaga a história, mas oferece a chance de superá-la. Surge quando um país ferido precisa costurar seus próprios retalhos. Não se trata de esquecer, mas de escolher um caminho comum, sustentado por um acordo honesto entre forças antes em confronto. É um pacto. Um silêncio consentido entre vozes que reconhecem seus erros e assumem a tarefa de recomeçar. Como na parábola do filho pródigo, o retorno só se realiza quando há perdão, mas também quando há reconhecimento. Só há reconciliação onde há verdade. E só há verdade onde há disposição para ouvir, acolher e transformar.

    O espírito da anistia exige coragem de todas as partes envolvidas. Exige que os que foram feridos estendam a mão, e que os que feriram reconheçam a dor que causaram. Quando isso ocorre, a sociedade avança. Mas quando o perdão é pedido por quem nega os próprios atos, e oferecido por conveniência política, o gesto perde sua força. A anistia deixa de ser ponte e vira atalho. Um atalho perigoso, que ignora a estrada longa e difícil da responsabilização. Um atalho que favorece os mais poderosos, os mais bem articulados, os que ocupam os palcos do poder para mascarar intenções.

    Esse pacto se desfaz quando a anistia é invocada por quem recusa o erro, por quem transforma o perdão em trincheira. Não há justiça quando a anistia nasce do medo de responder por atos que feriram a Constituição, incendiaram instituições, vilipendiaram a convivência. O perdão imposto por quem empunhou a violência não une — agride. O que se pede agora, sob o manto da anistia, não é reconciliação, mas absolvição. Clamam por ela não em nome do país, mas de si mesmos. Buscam escapar da verdade, não acolhê-la. Tentam reviver o velho truque de disfarçar o crime com o pano da clemência. Essa prática contamina a política, empobrece o debate público e fragiliza os fundamentos da democracia.

    O Brasil já conhece o custo desse truque. Em 1979, sob domínio militar, o país foi convencido a aceitar uma anistia que salvou vítimas, mas também poupou algozes. A barganha preservou torturadores e apagou arquivos. A ferida aberta pela ditadura não cicatrizou — foi coberta. E agora sangra outra vez, em discursos que celebram a barbárie como se fosse bravura. O silêncio da Justiça diante de crimes imprescritíveis prolonga o sofrimento de famílias inteiras. Como apontou Marcelo Rubens Paiva, a omissão do Judiciário aprofunda a dor de quem ainda espera por verdade e reparação. A persistência em não rever essa lei revela uma escolha institucional: manter o pacto de silêncio em nome de uma estabilidade frágil, que se constrói às custas da memória das vítimas e do sofrimento dos seus familiares.

    Essa mesma lógica se repete agora, com novas faces, novas estratégias. Nos últimos meses, Bolsonaro, acuado, reuniu aliados e evocou a anistia como escudo. Pediu o Congresso aos seus seguidores. Disse que, com metade da Câmara e do Senado, salvaria os seus. Apresentou o perdão como estratégia de conveniência política, não como reconciliação. Declarou que uma eleição sem ele seria ilegítima, revelando o que sempre sustentou seu discurso: não a vontade de participar, mas de controlar. Seu fracasso em consolidar-se como líder absoluto da direita expôs fissuras, mas não dissolveu o risco. O projeto permanece. Muda o tom, mas conserva o intento. E é por isso que não se pode ceder ao cansaço.

    O gesto de reunir milhares em Copacabana, de discursar como vítima, de clamar por clemência para aqueles que atentaram contra a ordem constitucional, não é um pedido de reconciliação nacional. É uma encenação. É uma tentativa de reposicionar a narrativa e recuperar capital político. Os que pedem anistia hoje o fazem para fugir da justiça, e não para construir pontes. Querem apagar o 8 de janeiro da memória nacional como se fosse um episódio menor. Mas aquele dia foi um trauma. Foi uma tentativa clara de ruptura institucional. Anistiá-lo seria o mesmo que normalizá-lo.

    A anistia, quando brota do diálogo, pode ser ponte. Mas quando imposta, torna-se atalho perigoso. Construída na sombra, entre os escombros de um golpe, ela não cura — apenas adia o colapso. A democracia exige mais que gestos simbólicos. Precisa de verdade, justiça e responsabilidade. Perdoar não é esquecer. É lembrar com grandeza. É transformar a dor em aprendizado. A esquerda brasileira, fiel à sua história, não endossa anistias. Valorizar a democracia é proteger a memória, punir os culpados e afirmar, sem hesitação, que a paz jamais será alcançada às custas da verdade.

    Dizer não à anistia dos que atacaram a democracia é reafirmar que há limites. É dizer que há princípios que não se negociam. A República não pode ser rendida por conveniências que, aliás, ferem de morte o Estado Democrático de Direito.  

    * Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.

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