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    Ricardo Queiroz Pinheiro

    Bibliotecário e pesquisador, militante do livro e leitura, doutorando em Ciências Humanas e Sociais (UFABC)

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    Anistia para quem?

    "De 1964 até hoje, as Forças Armadas jamais abandonaram seu DNA golpista"

    Militares e os atos golpistas (Foto: Agência Brasil (Joedson Alves / Elza Fiúza))

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    Sabe como os próprios militares tramaram sua anistia no final da ditadura? Foi mais um trapaceiro truculento, travestido em jogada de mestre, dos olivas. Enquanto o país se agitava com greves, protestos e uma abertura política cuidadosamente controlada, os generais estavam mais preocupados com a própria pele do que com o futuro da democracia. Em 1979, empurraram a Lei da Anistia goela abaixo do Congresso, criando uma cortina de fumaça que prometia reconciliação, mas escondia um pacto sujo. Quem resistiu à ditadura ganhou uma meia liberdade; quem torturou, matou e sumiu com corpos recebeu perdão integral.

    Não pararam por aí. Consolidaram também um pacote de privilégios que assegurou aposentadorias especiais, promoções automáticas, pensões vitalícias para filhas solteiras e toda uma estrutura de benefícios que se manteve por décadas sob pressão silenciosa, mas eficaz, da caserna. Esses privilégios foram sendo empilhados em uma estrutura quase intocável, que atravessou governos civis enquanto reforçava a blindagem institucional dos quartéis.

    Os militares não saíram de cena. Alimentaram durante 40 anos o fantasma do "inimigo interno", justificando tanto os crimes passados quanto as novas investidas autoritárias. A doutrina da Segurança Nacional, importada em pleno calor da Guerra Fria, continuou sendo a cartilha. O anticomunismo virou religião de quartel, enquanto o livro Orvil, o manual secreto que transformava torturadores em heróis, foi tratado como sagrada escritura.

    A tortura, os desaparecimentos, o DOI-CODI e a censura foram revestidos de "necessidade histórica". O exílio de milhares virou dano colateral pela "ordem". E quando a Guerra Fria se dissolveu, restou a guerra cultural, impulsionada por Olavo de Carvalho, que reciclou teorias conspiratórias em um coquetel de marxismo imaginário, globalismo e paranoia contra "inimigos invisíveis". Esse discurso serviu de esteio para manter viva a ideia de que o Brasil estaria em constante ameaça, justificando intervenções sempre que necessário.

    Tudo isso foi cuidadosamente embalado em um pacote pedagógico que moldou corações e mentes de recrutas, estruturando desde cedo uma visão distorcida do papel das Forças Armadas na sociedade. Essa doutrinação não apenas glorifica o passado autoritário, mas também reforça uma lógica de combate a inimigos imaginários e de obediência cega às hierarquias. Essa mentalidade, alimentada por manuais deliberadamente desatualizados, referências históricas enviesadas e um anticomunismo fora de contexto, segue sendo o alicerce na formação das novas gerações de militares, garantindo a reprodução de valores ultrapassados que mantêm vivo o sonho de uma tutela militar sobre o país.

    Nos anos Collor, FHC, Lula e Temer, os militares aparentavam hibernar, mas isso era apenas uma estratégia. Quando Dilma instaurou a Comissão da Verdade, o silêncio estratégico deu lugar a reações agressivas. A Comissão escancarou os porões que eles lutaram tanto para manter fechados, reativando velhas tensões. Daí em diante, os sinais de insubordinação se tornaram cada vez mais explícitos.

    Em 2018, o general Villas Bôas publicou seu famoso tweet pressionando o STF às vésperas do julgamento de Lula, deixando claro que não estavam apenas observando. Estavam no jogo. A eleição de Bolsonaro foi o clímax de uma aliança entre direita liberal, lavajatismo e militares. O discurso bolsonarista reforçou o mito do "inimigo interno" ao promover uma mistura de anticomunismo, negacionismo histórico e ressentimento antipolítico.

    Foi em 2022 que a estratégia militar se tornou ainda mais evidente. Enquanto o presidente semeava desconfiança nas urnas, militares próximos a Bolsonaro articularam planos para fraudar a eleição e deslegitimar o resultado. O objetivo era claro: criar um clima de caos que justificasse uma intervenção. O bolsonarismo radicalizou o uso do termo “narrativa” – uma palavra que virou obsessão na extrema direita, usada de forma ridícula e sem qualquer rigor, como se descrever fatos comprovados fosse um exercício de invenção. A “narrativa” das urnas fraudadas, repetida à exaustão, não passava de um pretexto para um golpe anunciado.

    De 1964 até hoje, as Forças Armadas jamais abandonaram seu DNA golpista. O verniz democrático que vestiram ao longo de algumas décadas foi apenas isso: verniz. A estrutura de privilégios que construíram e os fantasmas que alimentaram garantiram sua permanência como força política. O sonho de tornar o Brasil um grande quartel é alimentado há décadas por uma ideologia que emula os ecos da Doutrina Monroe, o primeiro documento farol do imperialismo, que perpetou  máxima estadunidense do século XIX que transformava as Américas em quintal dos EUA, com um verniz de proteção contra ameaças externas, mas que na prática consolidava o controle interno e externo. No caso brasileiro, a lógica é semelhante: tudo em nome de uma segurança fictícia que justifique o poder absoluto. Afinal, no fundo, eles nunca deixaram de acreditar que este país é um quartel, e nós, a tropa de otários que ainda sonham em comandar.

    * Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.

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