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    Eric Nepomuceno

    Eric Nepomuceno é jornalista e escritor

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    Anotações sobre o meu Rubem Fonseca particular

    "Durante longos anos convivi com Zé Rubem. E sou testemunha de vários aspectos de sua personalidade (...) era solidário e generoso, principalmente com gerações muito mais novas", diz o colunista Eric Nepomuceno ao lembrar do escritor Rubem Fonseca, que morreu nesta quarta-feira, aos 94 anos

    Rubem Fonseca (Foto: Reprodução)

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    Por Eric Nepomuceno, do Jornalistas pela Democracia

    1.

    Em 1980 eu continuava fora do Brasil, no México, mas por opção própria. E volta e meia vinha para cá.

    Numa dessas vindas, em 1981 ou comecinho de 1982, uma amiga me contou que tinha conhecido Rubem Fonseca. 

    E foi das poucas, pouquíssimas vezes na vida, em que pedi o contato de alguém luminoso. Não era para uma entrevista, não era nada: eu só queria conhecer alguém cuja obra admirava fervorosamente.

    Na ousadia dos meus 33 anos, liguei. E para minha surpresa, fui atendido. E nos conhecemos.

    Minha única proximidade, até então, era ter me atrevido a verter para o castelhano um conto (curtíssimo, claro) dele para a prestigiosa e prestigiada revista “Nexus”. Foi a primeira vez em que Rubem Fonseca foi publicado no México. Mas ele não sabia disso.

    Poucos meses depois saiu lá o primeiro livro dele. E depois outro, e outro, e em um par de anos Rubem Fonseca tornou-se uma influência de peso em gerações e gerações de toda a América Hispânica.

    2.

    No final de julho de 1983 retornei de vez ao Brasil, depois de dez anos e meio fora, dos quais quatro porque quis. E tornei a procurar já não o Rubem Fonseca, mas o Zé Rubem.

    Eu sabia, por certo, da atuação dele no golpe de 1964. E ele sabia que eu sabia. E, talvez por isso, nunca tocamos no assunto.

    Porque ele mudou, e é um dos raríssimos casos de quem vem do campo da direita extrema para o progressismo. 

    Só de pensar em quem fez o caminho contrário, de um notório Carlos Lacerda até jornalistas e gente do meio artístico e cultural, vendilhões da alma e da decência, a comparação se faz inevitável.

    Pensando assim a esmo, lembro, por exemplo, de um ser humano exemplar chamado dom Helder Câmara. E também de, para ficarmos em termos eclesiásticos, no símbolo da resistência de El Salvador, dom Oscar Romero, assassinado por um esquadrão da morte. Quem não souber do que estou falando, sugiro uma visita ao dr. Google.

    3.

    Em 2014, tive a alegria e a honra de ser convidado pela Casa de las Américas, de Cuba, para proferir o discurso de abertura do prêmio de literatura, e assim presidir o júri.

    Para glória minha, fui precedido por quatro brasileiros: Antonio Candido, em 1981; Thiago de Mello, em 1985; Fernando Morais, em 1987; e por Rubem Fonseca em 1995.

    Que busquem no dr. Google o que ele falou em seu discurso. E que vejam que as pessoas mudam, e nem sempre, nem sempre para pior.

    4.

    Durante longos anos convivi com Zé Rubem. E sou testemunha de vários aspectos de sua personalidade.

    Primeiro: era solidário e generoso, principalmente com gerações muito mais novas. 

    Foi solidário e generoso não só comigo, mas com minha família, com muitos de meus amigos. E não me refiro apenas à solidariedade literária: não, não, solidário e generoso de vida.

    Segundo: era divertidíssimo. Isso de dizer que se escondia para não ter de responder sobre seu longínquo passado não corresponde, nem de longe, à verdade. Ele tinha horror da fama. Dizia que tinha pena (e horror) do que vivia Chico Buarque, seu amigo: não poder andar na rua sem ser seguido, fotografado, assediado.

    Fora do Brasil, porém, tornava a ser o que era. Em 1996, por exemplo, passou um mês inteiro como escritor residente na universidade de Stanford, uma das mais prestigiadas do mundo.

    Ouvi e li depoimentos de alunos, brasileiros e brasileiras inclusive, dizendo de como ele era, além de divertido, generoso e atento, principalmente com candidatos a escritor.

    5.

       Eu me divertia vendo Zé Rubem encontrando amigos na loja de conveniência de um posto de gasolina ali na praça Antero de Quental, no Leblon. Ou num botequim de quinta na mesma praça, ao lado do Correio. Volta e meia marcávamos lá, ele de boné e óculos escuros.

    Se escondendo de um passado remoto? Qual o quê. 

    Se escondendo da fama. E torno a sugerir uma olhada na trajetória pessoal e política dele a partir do AI-5, uma lida em seu discurso em Cuba.

    6.

    Faz tempo, e muito, que não nos víamos. A vida tem dessas voltas. Não nos víamos por nada, por nenhuma razão. 

    Eu sabia que ele estava lá, ele sabia que eu estava aqui.

    Nós sabíamos que estávamos.

    E agora, eu sei que já não estaremos mais. 

    7.

    Repito: acho de uma injustiça tremenda calcar e recalcar um passado remoto que ele mesmo fez questão de enterrar. 

    Não por covardia ou para se livrar de pesadelos: pelos atos e posições que assumiu depois.

    Condenar Zé Rubem por 1964, por 1972, é condenar dom Helder por ter aderido ao integralismo. Ou monsenhor Romero pelo seu passado.

    * Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.

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