Apesar de vocês, Chico Buarque segue cantando
O que Chico Buarque fez foi desnudar um certo exagero em algumas cobranças do politicamente correto. E o fez sem ofender o que é correto social e politicamente
Em 1973 Chico Buarque teve os microfones desligados quando, ao lado de Gilberto Gil, cantarolou a proibida "Cálice" em um show em São Paulo. O 'Cale-se' não era de vinho tinto de sangue e sim de uma mordaça vil. Foi o ápice de uma queda de braços em que o compositor, ao longo dos anos e com a maestria de um craque, driblava censores botinudos que o marcavam dia após dia, cancão após canção. Tal qual Garrincha, ele brincava com as palavras e seus versos eram bolas imaginárias passando no meio das pernas de censores e balançando as redes de generais que os comandavam.
Em 1976 Chico Buarque chacoalhou o Brasil com uma canção ("O Que Será") com três letras diferentes que se completavam como um quebra cabeças musical. O enigma proposto pelo autor vai sendo revelado num ritmo alucinante até chegar numa explosão final de anseios por liberdade e sensualidade. Num tempo em que a repressão política se acasalava com a repressão sexual, Chico lançou um brado em defesa da autonomia da arte em qualquer tempo ou lugar: "o que não tem censura, nem nunca terá..."
Em 2022, depois de mais de cinco centenas de músicas compostas e uma dúzia de livros publicados, incluídos os textos para o teatro, ele surge em um documentário e revela para o país que jamais voltará a cantar uma música feita por encomenda em 1967 pela amiga Nara Leão; 'Com Açúcar e Com Afeto'. Pressões de feministas o fizeram admitir que a música reforça a opressão sobre as mulheres e é claramente machista.
Estaria Chico se submetendo a uma outra forma de censura de nova roupagem, ele que não se submeteu nem no tempo dos coturnos e das baionetas? O próximo passo seria jogar flores na Geni? Fazer a moça não se arrastar pelo tapete atrás da porta se humilhando depois de abandonada? Ou arrumar um emprego para a musa de "Folhetim"' que então deixará de ser "daquelas mulheres que só dizem sim, por uma pedra falsa, por um sonho de valsa ou um corte de cetim?"
Desde que a declaração tornou-se pública, um acalorado debate tem ocupado as redes sociais e os sites de cultura (Ufa! Existe vida além do BBB). Muita gente lamentando, muita gente estranhando e muita gente reclamando da postura do compositor. As buscas pela música cresceram e a 'renegada' canção voltou a encantar corações e mentes com versos que seguramente passam pelo crivo intelectual de uma Marta Suplicy ou da Deputada Maria do Rosário, notórias feministas que sabem distinguir o mundo da arte do mundo real. A música é tão sensível que até a insensível Ministra Damares, por motivos opostos, se ouví-la, é capaz de seguir o roteiro ao pé da letra e fazer um açucarado doce de goiaba para algum maluco que lhe tenha algum afeto.
Chico é um fingidor. É uma 'pessoa' que "finge tão completamente que chega a fingir que é dor, a dor que deveras sente'. Ele abre uma polêmica afirmando que não vai mais cantar uma música que ele apenas cantou ao vivo em 1975, na célebre temporada com Maria Bethânia. Ela não entrou no roteiro de outros shows simplesmente porque ele tinha outras 400 ou 500 para escolher. Está apenas anunciando que não vai fazer uma coisa que já não fazia. Quem quiser pesquisar irá se surpreender ao constatar que a cada temporada ele muda o roteiro dos shows em mais de 80 por cento. Tem um acervo inigualável pra isso.
O que Chico Buarque fez foi desnudar um certo exagero em algumas cobranças do politicamente correto. E o fez sem ofender o que é correto social e politicamente. Invertida a expressão ela ganha novos sentidos. Quando ele afirma que não cantará mais por pressão de feministas, está muito mais fazendo um alerta sobre o cerceamento de uma obra de arte do que 'apenas' se submetendo a esta censura.
Ou alguém duvida de que quando ele cantou a submissão das "Mulheres de Atenas" estava desnudando uma época para dizer para as mulheres fazerem o contrário? A propósito, esta música foi feita para uma peça de teatro chamada 'Lisa, a mulher libertadora!' de Augusto Boal, baseada em 'Lisístrada' de Aristófanes, que trata de uma greve de sexo organizada pela protagonista para exigir de seus maridos, bravos guerreiros, o fim dos conflitos entre Esparta e Atenas.
Nos seus dois últimos álbuns Chico apanhou por motivos diversos. Na canção 'Querido Diario' (2011) sofreu uma chuva de pedras por 'amar uma mulher sem orifício'. No auge de sua fase jumento, o colunista Reinaldo Azevedo desferiu potentes coices em Chico. Tivesse prestado atenção saberia que o artista não quebra "porque sou macio'. Tá lá, na mesma letra.
Em "Tua Cantiga" (2017) ele apanhou por narrar a saga de um homem, alucinadamente apaixonado, que revela à amada que "quando o seu coração suplicar ou quando o seu capricho exigir, deixo mulher e filhos e de joelhos vou te seguir". Chico foi acusado de machista do mesmo jeito! Embora a temática seja oposta a da canção feita em1967.
Chico Buarque nasceu e viveu seus anos de formação escolar e maturidade intelectual no ápice da guerra fria. A cultura não ficou alheia a esse debate. Ao contrário, foi arma de guerra. Enquanto os americanos viam toda forma de arte como negócio e entretenimento, do outro lado do muro vicejava a proposta que engessava a cultura em um chamado 'realismo socialista'. Toda obra de arte deveria estar voltada para a "conscientização do proletariado" e para a "emancipação dos trabalhadores". Do contrário seria taxada de alienada e alienante.
Hoje, em alguns setores, vivemos um novo "realismo identitário". Seguido ele ao pé da letra, discos seriam quebrados, livros seriam queimados e bocas seriam caladas em nome de sabe se lá o que. Chico não se rende. Pisando em plumas ele colocou o dedo na ferida. Abriu um debate. Vamos travá-lo? Com Açúcar e Com Afeto!
* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.
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