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    Helena Iono

    Jornalista e produtora de TV, correspondente em Buenos Aires

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    Argentina: como nunca, “Nunca Mais”

    Multidão histórica ocupa ruas da Argentina em 24 de março e diz “Nunca Mais” a Milei, aos cortes de direitos e à destruição do Estado e da memória democrática

    Milei durante entrevista à TV argentina (Foto: Reprodução)

    Neste 24 de março, dia nacional da “Memória, Verdade e Justiça”, passados 49 anos, se recorda pontualmente o comprovado fato histórico do nefasto golpe de Estado cívico-militar e o governo de fato que durou de 1976 a 1983. Desde aí, o movimento das mães das e dos desaparecidos, e das avós de recém-nascidos sequestrados não pararam de realizar – todas as 5ª. feiras – o giro na praça de Maio pelas 30 mil vítimas desaparecidas. E anualmente, todo dia 24 de março, as praças de todo o país abundam com o protesto multitudinário de centenas de milhares.

    Hoje, surpreendentemente, foi uma das maiores manifestações jamais vistas nos últimos anos. Fala-se em meio milhão na capital e milhares em várias localidades da Argentina, de Rosário a Bariloche. Na balneária Mar Del Plata, ocuparam 15 quarteirões.

    Tudo isso, não obstante o negacionismo e os arrochos econômicos e antidemocráticos nestes 15 meses de governo de direita neoliberal de Milei, privatizante, desativador do Estado, às custas de cortes brutais de orçamento e de empregados, com as ferramentas anti-democráticas e as fake news, contra institutos dos direitos humanos, museus, símbolos e estátuas históricas, consolidando um quadro de crise institucional gravíssimo.

    Crise institucional onde no Parlamento o Executivo, sob mando da Liberdade Avança, apoiado por forças governistas (PRO), pseudo membros da União Cívica Radical, e alguns peronistas detratores, derrota a União pela Pátria e impõe um cheque em branco aprovando um decreto (DNU) a favor de um novo acordo com o FMI, sem explícito valor, prazos, juros, e nem condições. Enquanto se prorroga a Comissão de julgamento político do presidente Milei sobre o seu envolvimento na fraude com a cripto moeda $Libra. E não se realiza a votação para prorrogar a moratória previdenciária, um plano de pagamento complementar de pessoas com menos de 30 anos de contribuição para atingir o direito de aposentar-se na idade requerida (60 ou 65).

    Crise institucional, e de representatividade parlamentar, pois se vota à revelia do povo que não só se manifesta diante do Congresso, mas é reprimido brutalmente. Sob mando da ministra de segurança, Patricia Bullrich, os protestos semanais das velhas e idosos aposentados, apoiados por jovens e torcidas de futebol, viveram um cenário de guerra no dia 12 de março, com bombas letais de gás lacrimogênio ferindo gravemente o repórter fotográfico Pablo Grillo, hospitalizado em terapia intensiva. A notícia e as cenas com vários feridos como a anciã de 81 anos Beatriz Blanco tiveram repercussão mundial; uma juíza, Karina Andrade, ao libertar mais de 100 manifestantes detidos por falta de elementos constitucionais, sofreu perseguição por parte do poder Executivo. Esse foi o quadro de intimidação fora do Congresso, prévio à aprovação do acordo com o FMI dentro dele, na semana posterior.

    Porém, a tradição político-cultural argentina é inapagável. O povo não está anestesiado e diz: “ainda estou aqui!”. Os anos com Perón e Evita foram além de um projeto de soberania econômica nacional e social, uma escola político-cultural. Depois, a dor e o retrocesso dos anos 76/83, silenciaram, mas aprofundaram a consciência. O período kirchnerista de Nestor/Cristina, reavivou a memória, o passado e as energias do povo argentino. A enorme solidariedade espontânea da cidadania com as famílias, vítimas da trágica inundação de 7 de março na cidade de Bahia Blanca foi um comovente sinal de resistência coletiva. Foram trens inteiros, caminhões e carros transportando toneladas de alimentos, roupas, material de higiene e cama, recolhidos nos bairros e escolas de todo a Argentina. O governador, Axel Kicillof, acolheu os inundados anunciando medidas de Estado provincial, incluindo a retomada de obras públicas interrompidas pelo governo nacional, causantes de desastres estruturais.

    O maior impacto deste 24 de março não foi só o número multitudinário nas ruas. Foi o caráter espontâneo e auto convocado de muitos cidadãos, ditos “vizinhos” dos bairros, transbordando os metrôs com cânticos peronistas, famílias inteiras com crianças e avós. Tudo em paz, convicção, abraços e alegria de reencontros históricos na rua. Além das grandes agrupações sindicais e movimentos sociais e suas bandeiras, muitos cartazes individuais com variados dizeres contra Milei e a favor dos 30 mil desaparecidos. Muita criatividade, cantos e danças organizadas. Muitas crianças cujo futuro depende da luta dos e das avós, empunham cartazes solidários. Não faltaram bandeiras pela Palestina e contra o genocídio em Gaza. A solidariedade com Cuba não faltou. O núcleo dos jovens imigrantes brasileiros do PT, contra a anistia a Bolsonaro e os golpistas, presente!

    Tudo indica que a massividade deste 24 de março não foi só pela memória dos desaparecidos. Foi um alto lá por um “Nunca Mais!”, diante dos riscos atuais à democracia e à justiça social. Um freio único ao conjunto das medidas econômicas de sufoco do governo de Milei, sob restrições de direitos humanos impostos pelo mesmo poder financeiro concentrado da década 70/80 e do Plano Côndor. “Nunca mais”, vigente sobretudo agora, diante de um genocídio silencioso contra anciãos, trabalhadores pobres e da classe média golpeados pelo custo de vida; diante da destruição do Estado nacional e seu afogamento em Bahia Blanca. A manifestação de 24 de março é um alto lá e fator de desconcerto ao governo que, segundo recentes estatísticas da universidade de San Andres anunciadas em C5N, se encontra com 61% de insatisfeitos, dos quais 52% desaprovam Milei. A queda industrial do país é uma das maiores do mundo.

    Como disse Cristina Kirchner, “a escuridão mais profunda é antes do amanhecer”.... mas “falta reorganização”. Neste 24 de Março, o povo argentino não demonstra memória passiva. Está disposto a reorganizar-se na defesa dos seus direitos à vida e a uma pátria livre e soberana, sem o FMI. Há que ver como isso se viabiliza. A CGT se reativa seguindo o clima de agitação sindical das demais centrais e categorias e convoca a uma greve geral para 9 de abril. O debate para as próximas eleições para metade da Legislatura poderá ser uma das vias para a reorganização da oposição e do peronismo. A ex-presidenta Cristina, líder atual do Partido Justicialista, desce em campo e anuncia várias conferências públicas pelo país. Não é casual que o documento unitário assinado pelas Mães e Avós da Praça de Maio e por todos os movimentos dos direitos humanos, anunciado por Taty Almeida e Estela de Carlotto, acompanhadas por Perez Esquivel, é não só uma reivindicação pelos 30 mil, mas um amplo programa político opositor de transformações sociais. Leia.

    * Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.

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