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    Alfredo Attié

    Doutor em Filosofia da USP, Titular da Cadeira San Tiago Dantas e Presidente da Academia Paulista do Direito, autor de Brasil em Tempo Acelerado: Política e Direito

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    Autoritarismos Neoliberais: o Estado de Sítio – primeira parte (1/3)

    O neoliberalismo destrói a legitimidade do Estado e ativa um novo autoritarismo, baseado na antipolítica e no cerco econômico das oligarquias

    Representação de um Estado sitiado pelas forças do mercado (Foto: Gerada por IA/DALL-E)
    Pode ser um sinal de guerra; talvez, de coisa nenhuma; calor insuportável de Cádiz, vento forte e ensurdecedor. Feitiço que cai sobre a cidade.

    Introdução - Tolerado e respeitado, disciplinado pelo liberalismo, o Estado tornou-se, para o regime neoliberal, um mal desnecessário.

    No presente artigo, pretendo, brevemente, mostrar de que modo o neoliberalismo desfez a ordem institucional criada pelo liberalismo e buscou implantar estruturas de salvaguarda econômico-sociais no interior da esfera política, voltadas a impedir que o Estado pudesse funcionar. Solapar, sobretudo, os liames de representação política e a capacidade de o poder político garantir direitos, fazer cumprir deveres e desempenhar políticas públicas.

    Minha intenção é mostrar como se apresentam e funcionam essas estruturas, de que modo desconectam Estado – destruindo sua legitimidade – e sociedade – contestando sua existência e relevância. Legitimidade alcançada e relevância preservada, a duras penas, no curso do processo, de idas e vindas, permeado de obstáculos, de construção republicano-democrático-social. Entender, assim, a razão de a política estar mais uma vez em xeque, com o desmantelamento dos mecanismos e das instituições que os solidificaram, em sua capacidade de ativar valores e práticas, como a igualdade, a solidariedade e a liberdade, abrindo caminho para o recomposição de um regime oligárquico, corporativo e autoritário, que denomino de anticonstitucionalidade e antipolítica.

    Minha tese principal está em que essa ordem neoliberal, por meio dessas estruturas, fez reviver a ideia e a prática da guerra de sítio, reconfigurando o estado de sítio, seu sucedâneo jurídico, como instrumento voltado a não apenas impedir o funcionamento das estruturas políticas, cuja institucionalidade busca incessantemente destruir, mas, também, restabelecer a institucionalidade dos corpos intermediários. A revivescência, portanto, de instituições próprias ao Antigo Regime, no modo como sobreviveram e foram mesmo recuperadas e retrabalhadas no processo pós-revolucionário do constitucionalismo. Constitucionalismo que – cantado em prosa e verso pelas doutrinas tradicional e contemporânea do Direito Constitucional, como se fora uma resultante das revoluções inglesa, norte-americana e francesa, mas –, na forma como o interpreto e critico, efetivou-se num momento consecutivo e de reação a essas revoluções (v. ATTIÉ, Alfredo. Brasil em Tempo Acelerado: Política e Direito. São Paulo: Tirant, 2022; ATTIÉ, Alfredo. Direito Constitucional e Direitos Constitucionais Comparados. São Paulo: Tirant, 2023; ATTIÉ, Alfredo. “Anticonstitucionalidade e Antipolítica” in Democracia e Direitos Fundamentais, Porto Alegre: Instituto Novos Paradigmas, publicado em 04/08/2021, acessível em https://direitosfundamentais.org.br/anticonstitucionalidade-e-antipolitica/).

    Liberalismo, Soberania, Território, Constitucionalismo e Força - O sistema econômico liberal, a partir da contribuição e do impulso decisivo de Adam Smith, viu na estrutura estatal, então em construção – como, de resto, ainda está –, uma aliada, salientando as atribuições do “soberano” de guarda da ordem social e de instrumento para possibilitar o desenvolvimento da(s) liberdade(s) econômica(s). Esse desenvolvimento estava fundamentado nas ideias e nas práticas:

    a) da acumulação e concentração crescente do capital, mediante a expropriação e a exploração do trabalho;

    b) da divisão social do trabalho, mediante a construção de mecanismos de disciplina e de controle do trabalho, da cultura e do tempo social;

    c) da imposição do sistema de fábrica, basicamente um modo de disciplinar e controlar a transformação de coisas simples em produtos ou mercadorias, em valor para o comércio; modelo que vai se reproduzir em todos os modos de vida social, distribuindo funções, hierarquias e vigilância por todos os espaços e tempos de existência, marcando a saúde e a doença das pessoas a partir de seu processo de constituição de um corpo social que se compreende apenas diante das máquinas que o instrumentalizam, para fazer alguns lucrarem em troca da submissão disciplinar e salarial de todos; e

    d) da constituição da propriedade privada – em verdade a negação da ideia de propriedade –, pela desconexão entre o humano e a ordem das coisas, e pela personalização ou subjetivação da relação real (isto é, antes determinada pela impossibilidade física e jurídica de apropriação de todas as coisas), que torna a aquisição de domínio um processo de (de)marcação da realidade por poucos, em detrimento da imensa maioria.

    Muito bem, para assegurar essas funções, o liberalismo pensou e realizou estruturas e práticas e desenhou uma prática discursiva, voltada a configurar a ordem “jurídica” do Estado, como limitação ao poder, ou, mais apropriadamente, disciplina da força do soberano: especificar suas atribuições e ordenar seu modo de agir.

    Tomou como ponto de partida a ideia de que o soberano era – no início da caminhada da constituição histórico-teórica da tão propalada “esfera pública” (europeia e resultante de um pacto de elites) – uma personagem criada pelo conjunto das oligarquias, como forma de alienação da capacidade política que possuiriam (ou acreditavam poder reafirmar), levada a efeito para possibilitar a concentração da coerção (uso da força, não do poder) para impor o cumprimento de pactos sociais. Pactos e não contratos, é importante salientar, isto é, modos de imposição de decisões tomadas em relação hierárquica de capacidades. O soberano é a instituição da heteronomia, personalizada para possibilitar que o domínio de alguns sobre a vida ou a ordem privada se transmita à nova ordem pública, que surge concomitantemente à engenhosa invenção ou concepção de sua figura. O Estado, por figurar um modo de alienação de capacidade de decidir, em conjunto, o destino comum, é a negação da autonomia (política e jurídica).

    Se o soberano, ou melhor, a configuração do soberano foi o ponto de partida dessa ordem – que será chamada e tida como moderna –, seu ponto de chegada seria a abstração dessa figura, por meio de uma nova invenção: a soberania. A soberania desfigura o soberano e permite que as funções que foram imaginadas para que exercesse, com unidade e universalidade, sejam despedaçadas. Isso em decorrência da própria origem da soberania, que foi o sucedâneo da prática de suseranias, formas de relação e de submissão plural, descentralizada.

    A suserania, no Medievo, era uma relação de ordem territorial, assim embasada na noção de domínio. Entregava-se a terra, em troca de defesa e segurança. Essa transmissão era realizada na forma de um pacto entre o suserano e seu vassalo que, jurando fidelidade, passava a exercer os direitos relativos à propriedade, comprometendo-se a prestar defesa a seu suserano. A ideia de segurança é fundamental. Era, claro, uma relação de proteção mútua, mas a vassalagem figurava um dever específico de dar proteção.

    paA soberania, por sua vez, ao buscar findar com o sistema fragmentário medieval, insere-se como mecanismo igualmente de proteção, também com base no território. Ocorre que, na soberania, os que formulam o pacto abrem mão da capacidade de exercer a guerra, portanto, de prestar segurança, em favor do soberano que criam. A obrigação de prestar a defesa e a segurança passa a ser do soberano em relação aos súditos, no sentido inverso da relação suserana, em que o território se fragmentava para que o vassalo garantisse a segurança do suserano. Nos dois casos, aquele que se põe na condição inferior, numa relação heterônoma, hierárquica, posta por um pacto (Sobre a diferença entre pacto e contrato ver: ATTIÉ, Alfredo. Direito Constitucional e Direitos Constitucionais Comparados. São Paulo: Tirant, 2023.), jura fidelidade. Todavia, na suserania, ele deve a proteção, em troca da gestão territorial como domínio, enquanto, na soberania, ele perde a autonomia dessa gestão territorial, (sujeitando-se a uma disciplina do domínio, cujas regras serão estatuídas pelo soberano) em troca da proteção que passa a lhe dever o soberano. A soberania é a relação de suserania em seu sentido inverso.

    A fragmentação, porém, permanece, malgrado a afirmação da soberania de não reconhecer poder superior nem interno nem externo. Ela vai mesmo se acentuar, na medida em que essa nova entidade – que passa a ter o domínio sobre a plenitude de um território, e a exercer o domínio sobre a totalidade de seus habitantes –, permanece ligada aos sujeitos que a criaram e fundaram sua nova ordem, dependente da relação estabelecida pelo pacto soberano.

    No processo de institucionalização dessa ordem do Estado, seus constituintes vão tramar uma teia disciplinadora e controladora dos movimentos e da linguagem do soberano. Isso de modo a organizar ou administrar o uso da força que o caracterizaria. Essa disciplina se chamou legitimação ou legitimidade, ponto de partida, agora, para um novo percurso ou processo, que é o de construção específica daquilo que passaríamos a chamar de Estado.

    Duas ideias fundamentam o Estado, no sentido de servirem como substrato para a sua composição: território e monopólio do uso da força, que se transmuda, por causa da legitimidade, em poder. Isso significa que o poder passa a ser força e o Estado, a ativar mecanismos cada vez mais frequentes de segurança (interna) e de defesa (externa).

    É aqui que entra a grande subversão da ideia de política. Se essa estava vinculada, desde a Antiguidade, a um espaço-tempo de ocupação popular – política era sinônimo de presença do povo –, a modernidade fará deslocar esse espaço-tempo de cidadania ou de democracia, para, a partir desse desalojamento (desse paulatino desinteresse por essa atuação e interação pessoal coletiva), domesticar e territorializar o público e seu sentido. O público (Öffentlichkeit, public sphere, espace public.) passa a ser um espaço (concreto) ou órbita (abstrata) de normatização de um conjunto de estruturas e de operação de um feixe de funções, a existir independentemente das pessoas que nele habitam, por ele circulam, ali desempenham seus modos de existência. O povo torna-se mero sujeito – derivação de seu caráter inicial de súdito – contrapartida do soberano – e objeto da atividade pública (da soberania), que passa a ser chamada de política. Essa palavra é destituída de seu significado (qualidade da polis) e se torna um modo de agir de uma entidade abstrata, o Estado, cuja qualidade é a soberania. Os regimes da política passam a se referir ao Estado e não mais à cidadania: portanto, não mais importa a vinculação entre poder e presença.

    Passa a ser possível exercer o poder em nome de outrem, sendo instituída a representação. Torna-se possível pensar (e mesmo intencionalmente formular a ideia, e reiterar a prática e o discurso de) uma cidade sem cidadania, assim como uma polis sem política. A questão está, para essa ordem, em, de maneira cada vez mais complexa e, sobretudo, oblíqua e dissimulada, exercer a força interna e externamente, acentuando a expropriação ou alienação das capacidades.

    O Direito Constitucional, discurso e modo de estabilização (petrificação, estatização) do Constitucionalismo, subverterá a ideia, o discurso e a prática da Constituição (ATTIÉ, Alfredo. Direito Constitucional e Direitos Constitucionais Comparados. São Paulo: Tirant, 2023), vinda desde a Antiguidade, transmudando-a, cada vez mais, muito embora de maneira mais acentuada a partir do regime neoliberal, em Direito Administrativo (Para a diferença entre o constitucional e o administrativo, ver ATTIÉ, Alfredo. Brasil em Tempo Acelerado: Política e Direito. São Paulo: Tirant, 2021.).

    Assim, o liberalismo de raiz europeia assegurará sua hegemonia discursiva, expandindo suas práticas – muito embora de forma invertida, estabelecendo cada vez mais e maiores desigualdades – para todo o Mundo, por meio sobretudo do processo colonizador. O comércio e suas técnicas, depois, sua ciência – da natureza e das causas da riqueza (e pobreza) das nações, a economia política – sucederão e substituirão outras práticas e discursos, no caminho da dominação da humanidade e da natureza. Talvez pela primeira vez, o percurso desigual de integração mundial, de universalização das consciências e culturas, terá um vetor unificador, justificando, na teoria e na prática, o desenvolvimento de relações comerciais e de instituições pretensamente públicas, mas voltadas à instituição dessas relações, como modelo de relações humanas e do humano com a natureza.

    Neoliberalismo e Estado - Apesar do esquecimento, intencional ou não, dos discursos e práticas de resistência a esse processo, é evidente que ele não se fez prevalecer sem que houvesse outros discursos e práticas, no sentido inverso à constituição de sua aparente hegemonia. Um desses modos de contraposição deu-se mesmo na ordem internacional, que a comercialização das relações ajudou a construir.

    Na órbita internacional passou-se a constituir uma trama de direitos, deveres e garantias, por meio do direito internacional instituído a partir do fim dos conflitos mundiais do Século XX, por meio das declarações de direitos internacionais e regionais e a criação de instâncias de julgamento e de implementação de obrigações.

    Isso não se deu, contudo, apenas e exclusivamente no âmbito internacional. A trama de relações, textos e instituições jurídico-políticas de proteção foi sendo estabelecida em processo de integração constante entre aquele âmbito externo e o interno dos vários Estados, que se puseram como sujeitos do direito internacional, com pretensão de exclusividade – imposta, diga-se com ênfase, pela concepção de dominação europeia em expansão.

    Quer dizer que as Constituições dos vários Estados passaram a se comunicar com a ordem internacional, tornando interno o que era declarado como externo ou internacional.

    A Constituição brasileira de 1988 é um exemplo típico, vívido e extremamente relevante dessa integração. Ela estatuiu, desde o início, que a ordem internacional dos tratados e convenções sobre direitos humanos faria parte integrante do próprio texto constitucional. Uma Constituição dotada, como considero, de plasticidade, em sua capacidade de modificar-se e enriquecer-se a cada declaração de direitos internacional. De tal sorte que a Constituição posta nos sites oficiais de governo ou editada para aquisição em livrarias e bancas não corresponde ao verdadeiro texto desse documento essencial para a vida cidadã. E os manuais de Direito Constitucional, em sua pobreza doutrinária, não conseguem compreender e transmitir o alcance e a relevância dessa plasticidade (Veja-se, à guise de exemplo, o artigo ATTIÉ, Alfredo. “Revolução Constitucional Ignorada”, em Brasil 247, publicado em 13 de Agosto de 2023, disponível em https://www.brasil247.com/blog/revolucao-constitucional-ignorada. Pretendo, em breve, aprofundar essa análise, em livro que fará a crítica do Direito Constitucional, propondo e buscando realizar uma abordagem diferente e plástica das Constituições.).

    Entretanto, essa ordem jurídico-política, contraposta aos impulsos determinados pela chamada modernidade, terá como obstáculo a realidade do mundo contemporâneo, que negou, constantemente a eficácia dos direitos, seja na perpetuação do colonialismo, seja na configuração d(e um)a “guerra fria,” isto é, a competição por hegemonia por meio da extensão da competição entre as potências europeias, a um dualismo de potestades. Essa contraposição dual permitiu que os países hegemônicos estimulassem e impulsionassem a instauração de regimes ditatoriais, em suas órbitas de influência ou dominação, pondo em risco democracia e direitos.

    O fim aparente desse estado dual abriria espaço para instituição da ordem neoliberal. Nessa ordem estarão presentes as ideias, os discursos e as práticas do estado de sítio e dos corpos intermediários, que passo a explorar, e que são o objeto primordial deste artigo, porque explicam os atuais riscos à democracia e aos valores que representa, bem como constituem a maneira como os novos autoritarismos se vêm inscrevendo nos vários Países.

    Economia, Mestra do Mundo: Comercialização e Domesticação - O Neoliberalismo não significa apenas uma mudança fundamental na concepção liberal de existência. A ordem liberal, malgrado as questões que acabo de evidenciar, não deixou se ser permeável a contribuições pensadas, inicialmente, como antiliberais, ou, mais corretamente, iliberais, termo que se torna corrente, na literatura internacional. Quer dizer, o liberalismo soube conjugar-se a ideias de origem e cunho socialista, advindas dos movimentos de trabalhadores e trabalhadoras e do engajamento de intelectuais, que redigiram textos seminais para compreender as deficiências de fundamento e de prática, e os problemas originais da institucionalização da imaginação liberal.

    Em sua versão mais afeita à democracia, o liberalismo acabou por fazer inserir nos documentos jurídico-políticos e nas instituições estatais e, em alguma medida, privadas, assim como em sua própria teoria – modificando-a substancialmente – temas, conceitos, sugestões, institutos e mecanismos, transformando-as em New Deals socias, econômicos, culturais e políticos, que, ao serem postos em prática, foram decisivos não apenas para a organização da classe trabalhadora, para o acesso a, e a efetivação de direitos e garantias, como para a expressão cultural da diversidade, com a abertura de brechas nos processos de dominação econômica, política, cultural e social.

    O Neoliberalismo, ao contrário, será impermeável a qualquer tipo de influência de teorias e práticas diferentes, que considera, por definição, rivais e inimigas. Ele se funda em duas concepções que radicaliza, levando-as às últimas consequências, na medida da agressividade com que trata tudo o que seja diverso de utilidade e interesse individual, tudo o que não seja econômico por definição. Essas duas concepções são o nominalismo e o utilitarismo.

    Ele exacerbará o processo de comercialização e economialização-domesticação (οἶκος-domus) do Mundo. Tudo passa a ser privado, econômico, doméstico; todas as coisas, mercadorias; toda relação, negócio, no sentido meramente mercantil (business), e competição; toda paixão, todo interesse, toda razão são privados e individuais. A razão observa a sociedade e a descaracteriza como social. Há apenas indivíduos em permanente confronto, que competem por interesses sempre legítimos, não importando se mesquinhos ou não.

    Não há, nessa perspectiva, classes nem qualquer grupo social, instituição política, agremiação cultural, universidade. Tudo o que foi construído como coletivo é um equivoco que deve ser destruído, em nome da verdadeira realidade que o Neoliberalismo prega, o individualismo. Toda coletividade é um mal e, desnecessário. Em razão de sua nocividade, tem de ser removido. Não há propriamente direitos, apenas interesses. Não há deveres públicos, mas obrigações negociais. Não há trabalho como relação de dependência, que demanda proteção, mas empreendedorismo. A empresa não é senão um processo temporário, um projeto de atuação para a obtenção de lucro, jamais uma instituição econômica. Não há plurilateralidade, sequer contratos plurilaterais, constitutivos de sociedades, mesmo comerciais, apenas relações bilaterais, em que a troca tende a ser sempre desigual, porque cada parte almeja ganhar, à custa de uma perda unilateral.

    Nessa ordem, o Estado, nocivo à configuração de uma concepção de mundo nominalista – na qual desaparece qualquer vínculo dos seres humanos entre si e entre eles e o ambiente, seja natural ou cultural, e se nega a existência da sociedade político-jurídica – sua presença ou a simples menção a ele, passam a ser apenas uma barreira ideológica para a consecução das relações econômicas: cada ente tem sua existência, seu lugar perante os outros entes e seu contexto, estabelecidos como algo fugaz, fútil e frágil, tão-somente marcado por um interesse econômico utilitário, ou uma paixão de ordem material. Aqui, a cosmovisão utilitarista joga um papel decisivo.

    Em decorrência disso, o Estado deve, antes de tudo, ser isolado do povo. Povo que, segundo a velha teoria liberal, o Estado representaria. Estabelecidas barreiras em torno dele, cordas para sufoca-lo. Todo benefício que esteja associado a um pretenso papel do Estado deve ser extinto, para afastar qualquer conexão, e afeição do povo por ele. O prejuízo que o Estado possa causar, ou se afirme que possa causar, deve ser ressaltado, ao ponto de o Estado ser posto como inimigo do social – com a extinção plena das estruturas postas pelo Estado-Providência (Welfare State).

    Por outro lado, aparentemente de modo paradoxal, esse Estado – pensado como termo retórico e não como instituição, instrumento de satisfação de formas de expressão mesquinhas – remanesce como amigo de uma parcela da sociedade – que não se reconhece como classe nem como agrupamento estável ou permanente –, que se divide (segundo afinidades de interesses provisórios, que mudam ao sabor da previsão de ganhos econômicos) em oligarquias, clubes (espaços privados, de exclusividade) dos ricos e famosos. Para atender a interesses dessas oligarquias e seus clubes de interesses, faz-se ruir qualquer expressão distributiva, diminuindo impostos, desfazendo programas sociais e políticas públicas, extinguindo benefícios e garantias de toda ordem, sobretudo do trabalho, e combatendo símbolos de engajamento e cooperação social, como os vínculos culturais (artísticos, científicos, enfim, po(i)éticos, modos de fazer mundos comuns, compartilhados e passíveis de provocar novos desejos e desenhos).

    Assim que dele tomam posse – por meio de eleições pretensamente legítimas, mas maculadas por inúmeros vícios, entre os quais, por definição, o abuso típico do modo de ser oligárquico – as novas oligarquias (que estão sempre em competição, embora façam aparentar consensos), passam a fingir ser Estado, e a adotar um linguajar e um vocabulário forjados para incentivar a iniciativa privada, o empreendedorismo. Põem-se como gerentes, gestoras, administradoras de um espólio. Substituem suas instituições por agências que, entretanto, não atuam, não agem, mas concedem agência às oligarquias, aos agentes econômicos privilegiados.

    Dentro do Estado, no processo de corrosão institucional que sofre, os agentes econômicos se instalam. E agem na extensão de comprimento da corda que vai sufoca-lo. Simulando ocupar esse lugar no interior do Estado, em verdade, estabelecem a ocupação do território em torno dele, sitiam-no, para impedir que laços de comunicação verdadeiramente política se façam entre ele e o povo que pretenderia representar.

    O povo é mais uma concepção coletiva imaginária e nociva. Figura uma pretensa realidade, uma categoria negada por essa concepção de mundo. Constantemente ameaçado, atacado, observa, passivo, atônito e temeroso, esse processo. Teme, cada vez mais, expor-se e se aproximar das estruturas ou instituições que antes reconhecia. Essas instituições podem preservar nomes antigos, a velha roupagem, mas são outras. Tornam-se agressivas e repudiam qualquer achegamento que não seja dos agentes econômicos e seus serviçais.

    Ocorre, contudo que esse cerco, figurando o que denomino de estado de sítio, e essas oligarquias, que se constituem em novos corpos intermediários, por meio de estruturas que criam, em torno do Estado, passam a ativar uma configuração diferente da sociedade, muito embora pretendam desfazer-se dela. É uma configuração econômica e social, de certo, mas é antipolítica, por natureza.

    O Regime das Oligarquias - Não gostaria, porém, que esses processos que aponto fossem vistos como tendências inafastáveis, destinos de uma história tida como destino. Na verdade, são expressões pretendidas e postas em ação por uma parcela da sociedade: suas oligarquias e os grupos que, dentro e fora do Estado, das instituições públicas e privadas, acreditam poder impor uma nova ordem ao sabor de seus próprios interesses ou daquelas pessoas e dos grupos a que servem.

    Há visões de mundo diversas e plurais, assim como propostas de encaminhamento de mudanças em sentido diferente e contrário ao que compõem o conjunto de relações que denominamos de neoliberais.

    Talvez seja para fundamentar as críticas que essas concepções possam fazer ao Neoliberalismo, e as propostas que venham a apresentar, a partir de uma perspectiva interna e externa ao funcionamento propriamente dito de Estados, que escrevo a presente contribuição.

    Muito bem, é essa realidade que pretendo delinear no presente texto, empregando aquelas duas categorias, a do estado de sítio e a dos corpos intermediários. São categorias, acredito, que, de meu ponto de vista, explicam esse fenômeno e outros que se delineiam no entorno da transmutação da cosmovisão sobretudo política que vivenciamos.

    Como sempre, todavia, não vou me contentar em fazer um diagnóstico, mas tentarei visualizar prognósticos, sim, mas sobretudo meios de resistência a esse avanço do antipolítico, do anti-humano, demonstrando como o povo se metamorfoseia e busca impor sua condição de existência, presença e pensamento, puxando a corda em outras direções e em outros sentidos, num conflito para dar concreção a desejos e constituir sentidos à experiência que se faz, na maior parte da história, de sofrimento. Esse sofrimento constitui um conjunto de paixões que, empregadas a partir de uma reflexão conjunta, que se desencadeia no curso da observação de expressões culturais originais e dinâmicas, dão margem à criação de novos desenhos de mundo.

    Para mim, trata-se, mais do que um embate entre direita e esquerda (expressões forjadas a partir de uma experiência bem circunscrita no tempo e no espaço), do antigo embate entre oligarquia (e os regimes antijurídico-políticos que lhe são correlatos) e a democracia, o regime jurídico-político, constituinte e constitucional por excelência.

    Há várias maneiras de dizer esse embate, cuja consciência se inicia na própria Antiguidade de que é oriundo. Vai-se encontrar, contudo, em múltiplas sociedades, que vivem o drama de uma minoria querer dominar a maioria, concentrar bens materiais e imateriais em torno de si e exigir a submissão. Encontra-se, também, nas estruturas e mecanismos criados para preservar o poder das oligarquias, por um lado, e para controlar esse poder ou mesmo evitar que se instaure, por outro (Ver ATTIÉ, Alfredo. Direito Constitucional e Direitos Constitucionais Comparados. São Paulo: Tirant, 2023; ATTIÉ, Alfredo. Brasil em Tempo Acelerado: Política e Direito. São Paulo: Tirant, 2021; ATTIÉ, Alfredo. Towards International Law of Democracy. Valencia: Tirant, 2022; ATTIÉ Jr, Alfredo. A Reconstrução do Direito: Existência, Liberdade, Diversidade. Porto Alegre: Fabris, 2003.).

    No regime neoliberal, ele se apresenta nu e dotado de uma crueldade mais aguda, uma vez que o uso da linguagem, que, no regime ideológico criticado na teoria marxiana, por exemplo, ou nos discursos de registro religioso, mesmo jurídico-positivista, no vocabulário das sociologias e das várias doutrinas econômicas, vinha dissimulado, envolvido em vários modos de dizer circunloquiais. Dobras e desdobras, voltas e reviravoltas, cujo objetivo é invisibilizar o encontro dos diferentes e criar empecilho para que se perceba a desigualdade que guardam entre si.

    Mas o Neoliberalismo é direto, não deseja mais estruturas de intermediação linguística, das quais, aliás, desdenha. Ele propõe um discurso verdadeiro, uma absoluta veracidade, que é a sua própria versão do mundo, isto é, a versão que é tida pelas oligarquias como seu abrigo para conhecer, enfrentar e derrotar a massa do povo. As oligarquias moldam formas e fórmulas extremamente simplificadoras da complexidade do mundo, estipulam arbitrariamente dicotomias, tomam partido do que seria a única verdade, a sua versão.

    Para salvaguardar tais estruturas de comunicação simplistas é necessário, claro, um mecanismo de criação e difusão de mentiras, que serve para impedir que se analise e questione a versão imposta como verdadeira. Essas mentiras, então, voltam-se para desconstituir outras versões, certamente mais verossímeis, porque dotadas de capacidade de dúvida, de autoquestionamento, enfim, de conhecimento dos vários graus de incerteza de qualquer afirmação sobre o mundo; com certeza mais prováveis, uma vez que conscientes da necessidade de fazer acompanhar toda afirmação sobre o mundo de uma demonstração convincente.

    Em torno daquela pretensão de veracidade das versões oligárquicas, da falsidade dessa pretensão e das mentiras que as salvaguardam, formam-se agrupamentos, que se interpõem entre o mundo e o olhar das pessoas e das sociedades. Esses são os grupos que vão assumir o papel que cabia, no Antigo Regime, aos corpos intermediários. Obstáculos, marcas, linhas de demarcação de territórios reais e imaginários que se fixam na realidade do mundo, armadilhas para o percurso do olhar, simulações de realidades, simulacros, lugares proibidos, esotéricos, falsamente acessíveis apenas a iniciados, atribuídos a privilegiados detentores do saber transparente de todos os dados. São salvaguardas que criam ignorância e medo em torno das verdades postuladas, que dizem ocultar.

    O Neoliberalismo, enfim, é uma doutrina e uma prática econômica, que pretende tomar conta do discurso social e da sociedade, do discurso jurídico e das instituições e normas, do discurso público e do espaço/tempo da política.

    Por isso, fingindo adaptar ou modernizar a doutrina liberal, ele a subverte, ao falar em supressão (ou redução) da intervenção do Estado, retirada de regras das relações econômicas, “fim do Estado”, por meio da privatização dos serviços e dos bens públicos, por meio do “equilíbrio” das contas públicas, isto é, diminuição da capacidade de o Estado realizar políticas públicas e investir na diminuição das desigualdades, cerceamento da capacidade de decisão do Estado, por meio da criação de agências de gestão e “regulação” de mercados. O Estado deixa de ter poder para passar a exercer uma atividade meramente administrativa das decisões e dos recursos que permanecem na esfera privada, concentrados nas mãos de grandes empresas, grandes redes corporativas. O Estado passa a ser apenas o “legitimador” dos investimentos privados, em verdade o fiador dos vícios privados, travestidos de benefícios públicos.

    Essa aliança das oligarquias e a postulação de passarem, por suas empresas, a tomar conta dos espaços, dos serviços e dos bens públicos, mesmo aqueles considerados essenciais pela antiga visão liberal, abandonando a sociedade ao deus-dará, retirando proteções sociais, mesmo aquelas que importavam ao liberalismo, como as regras e garantias dos contratos de trabalho, além daquelas trazidas pelo Estado de Bem-Estar, como as vinculadas a direitos sociais, culturais e ambientais, vão tornando o Estado desnecessário, desfazendo os liames de sua representação política legítima.

    (continua)

    * Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.

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