Baby do Brasil
A injustiça é banalizada e naturalizada. E é perturbador quando uma mulher não se irmana ao sofrimento das mulheres e meninas abusadas e estupradas
Não acompanho a produção de Baby do Brasil. Lembro dela muito vagamente nos anos 80 cantando junto com Pepeu Gomes. Portanto, não tenho conhecimento, nem admiração, nem curiosidade, nem preconceitos. Também estou fora do desejo de julgar uma pessoa por um gesto, acho importante salvaguardar a complexidade de um ser humano. Digo isso porque não me interessa falar dela, mas da questão que sua fala no tom de um clamor colocou em cena no culto da boate The Edge. Eu prefiro um mundo laico, embora respeite a fé dos outros. Também tenho as minhas. Já as igrejas que administram a fé e vendem Deus ou deuses, obrigam à análise e à crítica. Entendo quando Cioran diz que Bach inventou Deus, mas o rock - com o qual a Baby tem algum nexo - seria uma libertação das caretices que vieram na esteira de Deus ou dos deuses manipulados pelos “Homens”.
Acontece que a oração, o clamor implorando que quem sofreu abuso perdoe o abusador quando esse abusador é da família produz um efeito socialmente deletério. Vou falar assim, pois creio que dizer que a fala da cantora causa raiva ou nojo, não explica o todo do problema que uma fala como essa cria. Há poucos dias eu relia Primo Levi dizendo que a questão do perdão em relação aos algozes nazistas contra os judeus torturados e mortos nos campos de concentração era absurda, pois nunca se tratou de perdoar ou não perdoar. De fato, pedir a uma vítima que perdoe seu algoz pode ser um desrespeito para com a vítima. Por outro lado, pode também suscitar uma posição de vantagem para o algoz. Contudo, a questão de Primo Levi aponta para o absurdo de se colocar o tema do perdão tendo em vista a desumanidade em jogo e, por outro lado, a questão da justiça. De fato, não faz sentido comparar sofrimentos, e não estou buscando isso. O que me toca é a retórica do perdão que faz perto do judaico-cristianismo. Sem dúvida há algo de digno e belo no perdão quando ele resulta de um processo de elaboração. Aquele que perdoa pode desejar perdoar para superar seu sofrimento. Mas ninguém pode ser obrigado a perdoar. Lembro do Papa Paulo II que, no gesto de perdoar o homem que tentou matá-lo, mostrou que era um cristão como se deve ser, mas como sumo pontífice, fez seu papel de líder de uma instituição para a qual o perdão é essencial. A igreja precisa defender o perdão, como qualquer instituição que comete muita violência. Em numa sociedade laica não precisaríamos do perdão. Talvez outros parâmetros como a justiça nos ajudassem mais. Haveria justiça antes e depois, ou seja, ela seria um princípio ético - ou seja, uma base subjetiva - e não apenas jurídico ou político. Justiça poderia incluir compaixão e respeito à dignidade, coisa que as igrejas nunca tiveram para com as mulheres, vítimas da histórica misoginia subjetiva e institucional. As mulheres merecem reparação diante da igreja que as massacrou com a Inquisição na passagem do feudalismo para o capitalismo. O mesmo vale para as igrejas e os grupos religiosos e fundamentalistas que seguem oprimindo mulheres.
É muito triste quando alguém não tem compaixão de mulheres e meninas abusadas e estupradas e invoca o perdão para os agentes desses crimes como se isso fosse algo simples. A injustiça é banalizada e naturalizada. E é perturbador quando uma mulher não se irmana ao sofrimento das mulheres e meninas abusadas e estupradas. Se nem os iguais são capazes de reconhecimento quanto ao sofrimento, o que esperar os algozes, dos criminosos, dos opressores sobretudo quando continuam ocupando o lugar de privilegiados que merecem perdão?
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