Biden e a hipocrisia democrática
O modelo de democracia que os Estados Unidos querem exportar para todo o mundo, no que diz respeito a direitos de cidadania, não passa de uma fraude
Em seu primeiro discurso na Assembleia Geral da ONU, após sua posse na Casa Branca em janeiro de 2021 e a retirada dos Estados Unidos do Afeganistão, Joe Biden fez um pronunciamento magistral para o mundo e para o futuro da Humanidade, reconhecendo implicitamente a derrota na Ásia e anunciando uma era de paz para o Planeta. Em seus termos, era o fim das guerras e o começo da “era da diplomacia”.
Fiquei tão entusiasmado que escrevi um livro, “A Era da Certeza”, para fazer um contraponto com o livro do excepcional economista e pensador John Kenneth Galbraith, “A Era da Incerteza”, escrito no fim dos anos 1980 num momento de grande intranquilidade política e social no mundo. A validade de meu livro durou um mês. Biden o fulminou, assim como ao mundo, com uma virada de 180 graus no discurso e na ação.
De fato, poucas semanas depois de seu pronunciamento animador para os pacifistas, ele convocou uma reunião virtual com cerca de dirigentes de mais de 100 países a partir da Casa Branca a fim de iniciar uma cruzada universal pela democracia. Com isso, daria um passo decisivo para a restauração da Guerra Fria, com uma provocação inequívoca a países como China e Rússia, que excluiu do encontro.
Era evidente que a lição do Afeganistão não foi bem absorvida pelo Deep State de Washington. Os falcões voltaram à baila. Daí em diante, foi uma escalada de provocações contra países de sistemas políticos tradicionais, fora dos padrões que os americanos querem impor como a melhor forma de governo para as sociedades.
O discurso da democracia tornou-se samba de uma nota só no ocidente. Todo mundo começou a falar em defesa da democracia, inclusive, com muita insistência, Lula. Foi pouco questionado. Sociedades tradicionais da África e da Ásia, e algumas experiências socialistas da América Latina, passaram a sofrer pressões crescentes de Washington para mudar seus sistemas de governo. Em alguns casos, com bloqueios e embargos.
Entretanto, gostaria de perguntar, a qual democracia os Estados Unidos se referem? À sua? A que permite que um candidato derrotado numa eleição presidencial comande um assalto de uma massa de mais de mil vândalos ao Congresso (Capitólio), onde foram mortas seis pessoas, na tentativa de impedir a posse de um candidato legitimamente eleito? É muito imperfeita.
A democracia dos Estados Unidos baseia-se numa dupla oligarquia partidária, num sistema jurídico dominado por partidos políticos (a Suprema Corte vota segundo a filiação partidária de seus integrantes), num sistema eleitoral corrompido pelo dinheiro, num sistema político distorcido pela ignorância de um eleitorado que se põe de costas para o mundo, em relações pessoais governadas pela posse de armas de fogo por civis.
Talvez convém ir às raízes semânticas da palavra democracia para entender seu conteúdo atual nos Estados Unidos e em vários outros países, como o Brasil. A origem da palavra democracia não é, como muitos pensam, poder (kratos) do povo (demo). Demo, na Grécia pré-clássica – portanto, antes de Sócrates, Platão e Aristóteles -, não significava povo. Significava gleba, ou fazenda. Portanto, democracia era o poder das oligarquias rurais.
Isto está muito mais próximo do significado da democracia hoje do que a ideia de poder do povo. Na verdade, as democracias modernas têm características importantes como respeito à liberdade e aos direitos humanos. Porém, de forma alguma, é um modelo do poder da cidadania. Esta é um objeto de manipulação pelos ricos através da grande mídia. Nos Estados Unidos, isso é inequívoco. No Brasil, democracia é o poder das oligarquias econômicas urbanas e rurais, destacadamente do agronegócio.
O modelo de democracia que os Estados Unidos querem exportar para todo o mundo, no que diz respeito a direitos de cidadania, não passa de uma fraude. O exemplo que dão de direitos de cidadania é de uma pessoa que, pela força do dinheiro, contorna múltiplas investigações e denúncias por crimes pessoais expostos a toda a sociedade e consegue escapar da Justiça, candidatar-se e ganhar a Presidência da República!
E quem é essa pessoa? Um defensor dos direitos humanos? Não estaria entre esses direitos o respeito à vida, à conservação do meio ambiente e à sobrevivência da Humanidade, numa época de desastres climáticos extremos? Ou o grande avatar norte-americano é o que ignora a defesa ambiental, promete ampliar a produção de petróleo no território do País para tornar-se autossuficiente, retira os Estados Unidos do acordo climático de Paris e evita qualquer compromisso com o futuro da Humanidade?
Desculpem-me, não dá para engolir essa democracia. Creio que há, no norte da Europa, pequenos países como Noruega e Dinamarca que são monarquias constitucionais simbólicas que têm características de democracias. Porém, têm pouca influência no mundo e não são dominadas pelo poder do dinheiro. São também países de alta cultura, que escapam das armadilhas da ignorância orgânica do eleitorado, como ocorre nos Estados Unidos e no Brasil.
Sinceramente, a esse tipo de democracia americana, prefiro um sistema autoritário que concilie respeito aos direitos humanos, direito à vida e direito ambiental. Isso é possível e preferível a direitos políticos hipócritas, inclusive eleitorais, principalmente quando acobertam o controle político de sociedades ignorantes e incapazes de reconhecer seus direitos aos bens materiais básicos e ao desenvolvimento econômico sustentável.
* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.
❗ Se você tem algum posicionamento a acrescentar nesta matéria ou alguma correção a fazer, entre em contato com redacao@brasil247.com.br.
✅ Receba as notícias do Brasil 247 e da TV 247 no Telegram do 247 e no canal do 247 no WhatsApp.
iBest: 247 é o melhor canal de política do Brasil no voto popular
Assine o 247, apoie por Pix, inscreva-se na TV 247, no canal Cortes 247 e assista: