Big Brother Brasil celebra o circo da degradação e desumanização alheia
Convivemos em uma sociedade carente de valores humanos. Precisamos reencontrar urgentemente a humanidade perdida.
Há mais de duas décadas, o Big Brother Brasil (BBB), exibido pela TV Globo, domina a televisão brasileira, ocupando três meses por ano — cerca de 25% do calendário — com um formato que transforma confinamento, conflitos e consumo em entretenimento. Entre 2001 e 2012, escrevi colunas semanais para o Observatório da Imprensa, sob a direção do saudoso Alberto Dines, denunciando os danos que esse reality show causa à saúde mental de jovens e adolescentes.
Sociólogos e educadores ecoam essa crítica, apontando como a invasão de privacidade, as competições que inflamam rivalidades, o apelo consumista e até a banalização da espiritualidade corroem a dignidade humana e moldam valores distorcidos em uma audiência vulnerável.
O BBB é o programa mais lucrativo da TV brasileira, vendendo anualmente seis ou sete cotas milionárias para gigantes como Mercado Livre, Claro, McDonald’s, Nestlé, MRV e Seara. O prêmio principal, ajustado em 2025 para R$ 2.635.000, vem acompanhado de R$ 150.000 para o segundo lugar e R$ 50.000 para o terceiro, além de 11 apartamentos de R$ 260.000 cada, distribuídos pela MRV.
Esse sucesso comercial reflete seu poder de atração, mas a que custo humano?
Vigilância, Erotização e o Espetáculo Global
Inspirado em 1984 de George Orwell, o BBB faz da vigilância constante seu alicerce. Participantes renunciam à privacidade sob câmeras 24 horas, um modelo replicado na Itália (Grande Fratello), Espanha (Gran Hermano) e México (Big Brother México).
A erotização é um chamariz universal: na Itália, provas destacam corpos expostos; na Espanha, romances e tensões sexuais impulsionam narrativas; no México, a edição de 2002 exibiu cenas explícitas para alavancar audiência.
No Brasil, banhos televisionados e flertes estratégicos atraem olhares, transformando desejo em moeda para patrocinadores.
O sociólogo Eugênio Bucci, meu amigo de longa data sempre certeiro chama o BBB de “circo do sequestro”, onde a fama justifica a humilhação. Em minhas colunas, alertei que essa lógica ensina aos jovens que expor-se é sinônimo de sucesso, minando a privacidade como valor.
Conflitos, Preconceitos e a Banalização da Fé
As dinâmicas do BBB, como o “Jogo da Discórdia” depois chamadas de “Sincerão”, incitam ofensas e xingamentos, glorificando a agressividade verbal. A norma dessas dinâmicas é expor os desafetos de uns e de outros as cenas vexatórias como mergulho em piscina de geleia, lufadas de fumaças coloridas, bandanas com rótulos depreciativos afixados na cabeça e por aí segue ladeira abaixo.No Observatório, argumentei que isso normalizava o bullying, afetando adolescentes que assimilam tais padrões. A divisão entre “VIP”, com comida farta, e “Xepa”, com dieta escassa, reforça preconceitos de classe social, sugerindo que privilégios definem valor humano. Existe também a divisão entre os famosos (camarotes) e os plebeus (pipocas).
Versões internacionais seguem o mesmo roteiro: na Itália, tarefas testam a paciência; na Espanha, rivalidades regionais emergem; no México, provocações culturais geram polêmica.
Até a espiritualidade é banalizada. Participantes repetem frases como “Confio em Deus para vencer essa prova”, “Pedi a Deus para derrubar aquele colega” ou “Estar aqui é tudo que pedi a Deus”. É o Deus do consumo e do narcisismo que reina, com declarações como “Sou muito afortunado por estar aqui porque Deus sempre sabe o que faz” ou “a prosperidade da minha família depende da minha performance e das oracis minhas e deles para chegar à final”. Aqui vemos uma grande inversão de valores: não há referência ao Deus que nos criou e sim escravo travestido de fé ao Deus que nós criamos
Em minhas análises, notei que essa fé instrumental transforma a espiritualidade em ferramenta de autopromoção, refletindo o deslumbramento de quem vê o BBB como o “maior sonho”.
Consumo e a Ilusão Material
O BBB é uma vitrine de consumismo. Prêmios em dinheiro, apartamentos e propagandas de marcas dominam o programa, enquanto participantes viram produtos de entretenimento. Theodor Adorno, em Dialética do Esclarecimento, alertava que a indústria cultural anula o indivíduo, reduzindo-o a consumidor passivo. Escrevi que isso seduz adolescentes, que passam a associar felicidade a posses, desprezando esforço e empatia.
Na Itália, luxos são troféus; na Espanha, patrocinadores integram provas; no México, recompensas extravagantes celebram o consumo. No Brasil, as cotas milionárias das empresas que patrocinam o circo de horrores elevam essa lógica ao extremo.
Um Espelho Distorcido
O impacto na saúde mental é grave. No Observatório, destaquei que o BBB fomenta a cultura do cancelamento e a intolerância, ensinando jovens a julgar em vez de dialogar. A erotização e os conflitos criam um ambiente tóxico, especialmente para crianças sem filtros emocionais, gerando ansiedade e visões distorcidas das relações humanas.O BBB reflete uma sociedade que aplaude o sofrimento alheio, como escrevi há anos. Bucci o define como o “mais deseducativo” da TV brasileira. Jürgen Habermas complementa, apontando que substitui o diálogo público por degradação. Proteger os jovens exige reflexão crítica sobre o que consumimos.
Se o apelo ao lucro e à ganância continuar em ascensão na Globo, que pelo menos 50% do programa foquem em jogos cooperativos, não competitivos.
Provas poderiam premiar trabalho em equipe, harmonia e solidariedade, incorporando conhecimentos culturais como os males do racismo, os 30 artigos da Declaração Universal dos Direitos Humanos. Festas poderiam celebrar a cultura popular brasileira, valorizando os vulneráveis e o multilateralismo. Tudo isso é possível — é apenas uma questão de escolher o país que queremos construir. Convivemos em uma sociedade carente de valores humanos. Precisamos reencontrar urgentemente a humanidade perdida. Usar os recursos tecnológicos das plataformas de comunicação em massa pode ser um bom começo.
* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.

