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    Robson Sávio Reis Souza

    Doutor em Ciências Sociais e pós-doutor em Direitos Humanos

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    Breves notas sobre os resultados das eleições de 2024

    "Para além da disputa pelo poder político, eleições costumam sinalizar importantes alterações sociopolíticas", diz Robson Sávio

    urna eleitoral (Foto: Cristiano Lima)

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    Nesses últimos dias, muitas análises sobre o resultado das eleições municipais estão nos ajudando a compreender o complexo momento sociopolítico que vivemos no Brasil. Para além da disputa pelo poder político, eleições costumam sinalizar importantes alterações sociopolíticas. Ou seja, os resultados das urnas também apontam para movimentos e tendências em disputa na sociedade. E, como ocorre noutros países, eleições têm relação e impacto nas múltiplas crises de sentido do mundo contemporâneo. 

    Parte significativa das análises do resultado do pleito chega a duas conclusões: (1) apontam para o crescimento substantivo não somente dos setores à direita, mas também da extrema-direita no cenário político brasileiro; (2) “culpam” as esquerdas, e principalmente o PT, pelo crescimento dos espectros políticos reacionários. Um parêntesis inicial: os resultados do segundo turno mostram, claramente, que a extrema-direita tem limites e enfrentou derrotas vigorosas em boa parte das disputas. Ainda... 

    Mas, não nos iludamos. Há que se analisar os erros cometidos pelos setores progressistas nos últimos tempos. Não se assumir como campo para as mudanças efetivas nas sociedades marcadas pelo neoliberalismo excludente é um desses desacertos. E, no caso brasileiro, especificamente, a estratégia utilizada pelos governos do PT de coalizões com setores conservadores (à direita) e o abandono a pautas importantes que, historicamente, caracterizam o campo das esquerdas podem justificar algumas das frustrações de parte do eleitorado com os setores progressistas.  

    As táticas de costura de “pactos conservadores” para a garantia da chamada “governabilidade” e o incentivo de governos petistas ao consumismo e ao individualismo, em detrimento da politização social, têm se mostrado insuficientes aos desejos populares de reformas substantivas que alterem de fato e permanentemente as condições de vida da maioria das pessoas. 

    Essa dubiedade dos setores progressistas quando no governo, a tentativa de agradar gregos e troianos, a “Faria Lima” e as periferias, favoreceu, em boa medida, a politização à direita da sociedade brasileira nos últimos 15 anos. Claro que outros fenômenos, como a criminalização da política pela mídia empresarial e absurdos draconianos do sistema de justiça, como a Operação Lava-Jato, devem se somar nesta análise.  Mas, o fato, ao mesmo tempo real e simbólico, é que há um orgulho difuso, nos últimos tempos, em se associar a “valores” de direita e quase uma vergonha de se assumir como de esquerda. É sintomático que candidatos de partidos ditos de esquerda não quiseram se posicionar como tal na disputa deste ano. O caso mais emblemático desta situação nestas eleições é a tentativa de Guilherme Boulos, em São Paulo, que utilizou várias estratégias marqueteiras para se pousar como um candidato conciliador, de centro, e se desassociar da sua militância à esquerda.

     Ademais, paradoxalmente, num contexto de ataques à democracia representativa pela extrema-direita, os governos do PT se notabilizaram pela defesa do establishment, justamente num contexto de erosão da democracia liberal-burguesa. Trata-se de uma estratégia de sobrevivência eleitoral, com perdas profundas à sobrevivência política. Vive-se uma “onda” de discursos antissistemas e essa tática de defesa “da ordem” é demasiadamente onerosa. Acrescente-se, aqui, essa nossa cultura judaico-cristã que sempre procura um “bode expiatório” para purgar as responsabilidades coletivas. Portanto, culpar o PT, o presidente e as esquerdas é uma solução simplista, mas altamente utilizada pelos setores conservadores e pela mídia empresarial com repercussões efetivas nas classes populares. Em relação ao crescimento da extrema-direita, é preciso analisar com certa cautela esse fenômeno, que não é restrito ao contexto nacional. Qualquer análise, mesmo do processo eleitoral, deve considerar para além daquilo que é aparente e conjuntural. 

    Percebemos em várias partes do mundo múltiplas crises que desembocam num crescente sentimento de frustração, desesperança, medo e insegurança de parte significativa dos cidadãos. Há uma crise do capitalismo, que em sua fase rentista e especulativa atual não oferece à maioria das pessoas oportunidades reais de melhoria de vida, apesar dos sonhos idílicos do empreendedorismo ou da meritocracia, e até mesmo da Teologia da Prosperidade, que são vendidos por parte das igrejas cristãs como soluções milagrosas aos problemas reais da população.   

    Além da crise democrática, vivenciamos um profundo colapso ambiental e climático, num planeta que não suporta mais o nível de exploração desenfreada. Há crises de governança, de descrédito nos governos eleitos e nas soluções democráticas, sendo que a democracia capitalista e representativa não responde mais a expectativas de inclusão e igualdade, como dito anteriormente.  

    Não esqueçamos da crise das instituições referenciais do Ocidente, como as igrejas, a ciência e a família. A relação religiosa, aos poucos, se transforma numa relação comercial que apresenta a religião como magia ou num produto que satisfaz a gostos customizados. O que vale é uma betologia (religião como “bet” – aposta mágica), num mundo do vale-tudo: o indivíduo é potente, não pode ser constrangido e, apostando (num político salvador, nas bets, no empreendedorismo, na religião comoditizada) ele vencerá...

    Por fim, e não menos importante, há uma crise ética. Num mundo marcado pela competição desenfreada e pelo hiper individualismo, os valores morais e éticos são relativizados. Um exemplo: se alguém se autointitula um “grande cristão” é aconselhável procurar entender bem o que isso significa de fato. Num mundo marcado por medos, sentimentos de ódio e insegurança quanto ao futuro, a ideia da salvação pelos próprios méritos e as saídas milagrosas, como prometem os messianismos, unem mentes e corações e fazem renascer crenças salvacionistas, autoritárias e imediatistas como possibilidade de resolução dos problemas reais das pessoas. Candidatos que sabem utilizar o medo, o ódio, a insegurança e a desesperança acabam fidelizando eleitores através desses sentimentos. As pessoas nem sempre fazem um cálculo racional para as suas decisões políticas. Estão profundamente marcadas pela subjetividade, nos seguintes termos: “se nada me salva, vale a pena apostar naquilo que pode me dar uma solução rápida, definitiva e salvadora”.  

    Portanto, num contexto de degradação ética e sem referências institucionais sólidas; de religiosidades alienantes com respostas messiânicas milagrosas e infantilizadas; de segmentos sociais com mentalidade reacionária e fascista -- que não aceitam uma sociedade justa; com discursos e promessas salvacionistas disfarçados de empreendedorismo e meritocracia; com campanhas eleitorais patrocinadas pelo crime organizado e pelo orçamento secreto das emendas orçamentárias, a eleição transforma-se numa luta do bem contra o mal. Ainda mais quando os setores ditos progressistas abandonaram, amedrontados, os discursos reformistas e começaram a defender o establishment. E, assim, as respostas de ruptura radical propostas pela extrema-direita encontram muito mais eco nas mentes e corações de populações amedrontadas e sem expectativa. 

    São os discursos distópicos de oportunistas que conseguem manipular as subjetividades e se beneficiam desses múltiplos sentimentos de desesperança que caracterizam o momento histórico no Ocidente. Vivemos imersos num mundo marcado pela desilusão com o Estado, as políticas públicas, os governos, o regime democrático, as igrejas e o futuro.  

    Some-se, aqui, a manipulação das e nas redes digitais, seja pelas big techs ou pelos espertalhões que sabem operar esse mundo virtual. Emoções e afetos, se manipulados, resultam na fidelização de milhões de pessoas àqueles discursos que prometem salvação, imposição da “verdade” segura, uma religião mágica que soluciona problemas num passe de mágica e a restituição “dos valores cristãos e da família tradicional” como se isso, nalgum momento, tenha existido, concretamente. É preciso reconhecer esse processo histórico mais profundo e mais complexo que vivemos na contemporaneidade para além dos resultados eleitorais do momento. 

    Como dito, num mundo marcado por medos e inseguranças, as promessas salvacionistas e imediatistas encontram terreno fértil. E a extrema-direita é a principal beneficiária nesse contexto.  

    Por fim, é muito sintomático que no mesmo dia em que discutimos o avanço a extrema-direita no segundo turno das eleições municipais no Brasil, em Nova York (a meca do capitalismo) Donald Trump, num comício, usa de uma estética nazista como recurso eleitoral. Recordemos: em fevereiro de 1939, poucos meses antes de Hitler invadir a Polônia e começar a Segunda Guerra Mundial, no Madison Square Garden, um dos palcos mais célebres dos EUA houve uma reunião do movimento nazista americano. Na ocasião, os organizadores ergueram uma foto de George Washington e iniciaram o ato com um apelo para que os "o governo dos EUA seja devolvido ao povo americano”. Não por acaso, neste domingo, no mesmo local e com o mesmo tema, o evento organizado por Trump se associa à iniciativa nazista de outrora. Lembremos que durante o governo Bolsonaro houve vasta utilização da estética nazista por membros do governo. Coincidência? 

    Mas, não é só isso. Miremos o passado e voltemos ao presente: em São Paulo, para implantar o medo e o horror no dia das eleições, o governador do mais populoso estado brasileiro, sem provas, acusa Boulos de ser beneficiado pelo PCC. Em Belo Horizonte, Bruno Engler (em parceria com Nicolas Ferreira) usa da estratégia da censura a um livro de ficção (de Fuad Noman, seu adversário - que trata do drama do estupro de crianças) para saquear “votos moralistas” na reta final da campanha. O vale-tudo eleitoral da extrema-direita não tem limite. Até agora, depois de tudo o que aconteceu no Brasil sob Bolsonaro, somente lambaris foram condenados. A extrema-direita não está somente nos partidos. Ela está nos tribunais, nas famílias, nas empresas, nas igrejas. Por isso, tem terreno fértil... 

    Esses poucos e contundentes exemplos sinalizam que o crescimento da extrema-direita no Brasil e no mundo pode ser somente a ponta do iceberg da decadência de um modelo de sociedade.  

    O tempo nos dirá... 

    * Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.

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