CAPÍTULO 1: O NOVO FIM DA PRISÃO
Primeiro capítulo do livro 'Sistema Prisional: O Labirinto da Punição'
A prisão, consequentemente, em vez de devolver à liberdade indivíduos corrigidos, espalha na população delinquentes perigosos.
Michel Foucault
Introdução
O Capítulo 2 (“Ilegalidade e Delinquência”) da Quarta Parte (“Prisão”) do Vigiar e Punir de Michel Foucault – de onde foi extraída a epígrafe acima – procurava indicar, quando da sua publicação em 1975, que o nascimento da prisão já veio acompanhado de uma série de críticas acerca de sua eficácia, na primeira metade do século XIX, quando a prática do suplício já havia se tornado completamente ultrapassada.
Voltarei à questão da ineficácia precoce (e, também, duradoura até o início do último quartel do século XX) da prisão na terceira seção do presente capítulo, junto ao próprio questionamento sobre se tal ineficácia, na atualidade, não teria sofrido uma “virada de eficácia” junto ao avanço de uma “nova ação racional com respeito a fins” de cariz punitivista, concomitantemente à ofensiva necropolítica que vem assolando o mundo com potência cada vez mais crescente desde a crise do capitalismo dos anos 1970 e, de maneira mais aguda ainda, em decorrência do avanço político global da extrema-direita neofascista, no século XXI.
Se a hipótese aqui defendida estiver correta, foi exatamente dentro desse contexto que o “mito fundador” do pensamento liberal sobre a “eficácia ressocializadora de delinquentes socialmente desviantes do sistema prisional” cada vez mais foi se revelando uma retórica vazia com intuito de encobrir uma realidade – a da “eficácia armazenadora de dejetos sociais produzidos pelo capitalismo pós-fordista do sistema prisional” –, que chegou ao seu paroxismo no curso dos últimos cinquenta anos, quando da entrada em cena da “onda punitivista” que propulsionou a “era do encarceramento em massa” através da edificação de um Estado Penal, tema a ser abordado na primeira seção desse capítulo.
Encarceramento em massa umbilicalmente vinculado ao desemprego igualmente em massa, de caráter estrutural, do período pós-fordista e à transformação da força de trabalho excedente em um agregado de dejetos humanos a serem descartados pelo modo de produção capitalista na sua atual fase neoliberal, por meio do encarceramento (assunto central da passagem da primeira para a terceira seção do capítulo ora apresentado), mas também de chacinas, no atacado e no varejo, levados a cabo por mecanismos estatais e/ou paraestatais, tema que foge aos objetivos aqui propostos e que, por conseguinte, não será tratado.
Quanto ao seu título, cabe esclarecer que, inobstante o fato de me alinhar em termos gerais “às vozes antipunitivistas” e às diversas perspectivas do “campo abolicionista penal” (PIRES, 2020), não se faz referência aqui ao “fim da prisão” como sua “abolição” ou “extinção”, mas sim enquanto “finalidade”, um thelos assumido junto à afirmação e hegemonia do Estado Penal Neoliberal, na passagem dos anos 1970 aos anos 1980, ou seja, como o novo propósito corporificado na explosão do número de pessoas encarceradas no mundo, pessoas que, na experiência social brasileira abordada nas considerações finais, possuem marcadores sociais bastante precisos quanto à cor, classe, gênero, faixa etária e local de moradia – isto é: negros, trabalhadores, homens, jovens e favelados.
Estado penal e encarceramento em massa
Cabe ao sociólogo francês Loïc Wacquant o mérito de ter identificado a formação de um novo senso comum penal direcionado à criminalização da miséria no último quartel do século XX.
Oriundo dos Estados Unidos da América e disseminado por todos os cantos do planeta após a travessia do Atlântico Norte e ancoragem no continente europeu, a nova forma de administrar a miséria por intermédio da sua criminalização acabou por gerar uma “onda punitivista” responsável por recolocar a prisão no centro das preocupações relativas à reprodução do modo de produção capitalista, à medida em que as suas grades foram convocadas a solucionar o problema estrutural da normatização do trabalho assalariado precário.
Para que isso se tornasse possível, o Estado capitalista foi obrigado a regredir da condição emergida no pós-Segunda Guerra Mundial, seja nos países de capitalismo avançado, com o Estado de Bem-estar Social, seja nos países de capitalismo dependente, com o Estado Assistencial, ainda que em níveis de regressão e com impactos sociais diferenciados em função dos patamares de direitos e garantias sociais alcançados nos dois tipos de Estado capitalista, no centro e na periferia do sistema.
Tal regressão tem nome e sobrenome e passou a caracterizar a forma pela qual o modo de produção capitalista reconfigurou as dimensões do seu Estado, desde a virada dos anos 1970 aos anos 1980, até os dias de hoje, de maneira praticamente ininterrupta: “Supressão do Estado econômico, enfraquecimento do Estado social, fortalecimento e glorificação do Estado penal” (WACQUANT, 2001, p. 18).
Um Estado Penal Neoliberal – um Estado-Centauro (WACQUANT, 2012, p. 36-8), na alegoria criada pelo discípulo de Pierre Bourdieu –, que, para as classes sociais de baixa e baixíssima renda, mostra a sua perversa e assustadora face da coação legal, da coerção física e, no seu limite de altruísmo, das políticas assistencialistas focalizadas, em substituição às políticas sociais públicas de caráter universal, e que, para as classes médias e altas, oferece o simpático rosto da preservação dos seus bens e riquezas materiais, por meio de políticas econômicas monetaristas e de políticas de segurança pública que colocam atrás das grades do sistema carcerário uma multidão de seres humanos descartados pela lógica violentamente excludente do capitalismo pós-Welfare State.
Em poucas palavras, sob a justificativa da urgente necessidade de combater a crescente insegurança criminal, propagandeada pelos meios de comunicação de massa e políticos de direita, o Estado capitalista robusteceu o seu “braço direito”, responsável pela coerção, na exata proporção em que fazia minguar o seu “braço esquerdo”, dedicado à efetivação de direitos e garantias sociais por intermédio de políticas sociais públicas.
Porém, como o próprio Loïc Wacquant afirmou acerca da sua obra seminal:
Em Onda Punitiva, mostro que o retorno da prisão à linha de frente institucional das sociedades avançadas nos últimos 25 anos é uma resposta política não à ascensão da insegurança criminal, mas à difusa insegurança social moldada pela fragmentação do trabalho assalariado e pela reestruturação da hierarquia étnica (...) A marca punitiva das mudanças recentes tanto nas políticas assistenciais quanto nas políticas judiciais aponta para uma reconstrução mais ampla do Estado, agrupando o trabalho social restritivo e o regime prisional expansivo sob uma filosofia do behaviorismo moral. A penalização paternalista da pobreza almeja conter as desordens urbanas alimentadas pela desregulamentação econômica e disciplinar as frações precarizadas da classe trabalhadora pós-industrial (...) (WACQUANT, 2012, P. 12-3).
Ou seja, antes de mais nada, a relação causal estabelecida entre a necessidade de elevação dos níveis de coerção (leia-se, encarceramento) e o crescimento dos índices de criminalidade não passa de uma invenção construída com o intuito de legitimar a “onda punitivista”, desviando a atenção da sociedade do objetivo central a ser alcançado com o recurso à ideia de combate à criminalidade – a gestão penalizadora da pobreza.
De fato, a hiperinflação carcerária gestada nos Estados Unidos da América, que acabou acarretando a criação de uma superpopulação de prisioneiros, teve seu início num período em que as taxas de criminalidade se encontravam estagnadas, o que leva à formulação da pergunta sobre quais teriam sido os mecanismos utilizados a fim de que isso acontecesse num intervalo de tempo de apenas duas décadas.
Eis a resposta apresentada por Loïc Wacquant no seu Punir os pobres, no capítulo intitulado significativamente “O ‘grande confinamento’ do final do século”:
A quadruplicação, em 20 anos, da população carcerária dos Estados Unidos explica-se não pela escalada da criminalidade violenta, mas sim pela extensão do recurso ao aprisionamento de uma gama de delitos e crimes de rua que, até então, não acarretava, como condenação, a privação da liberdade, notadamente as infrações menores à legislação relativa aos entorpecentes e os comportamentos qualificados de atentado à ordem pública, e também pelo contínuo aumento das penas atribuídas. A partir de meados da década de 1970, e mais ainda após 1983, ano em que o governo federal declarou a “guerra às drogas”, o encarceramento foi aplicado com uma frequência e uma severidade cada vez maiores ao conjunto dos contraventores, quer fossem eles criminosos profissionais ou infratores de ocasião, grandes bandidos ou pequenos ladrões, violentos ou não-violentos (...) (WAQUANT, 2019, p. 222-3).
Com a perseguição aos “pequenos delinquentes de direito comum”, inaugurou-se nos Estados Unidos da América uma lógica de aprisionamento direcionada às “camadas inferiores do proletariado”, particularmente negros e hispânicos – uma classe social extremamente precarizada que passa a ser encarada pelo Estado e pelas classes médias e altas como classes perigosas a serem reprimidas.
Dessa maneira, a gestão da pobreza e da miséria, a partir da experiência pioneira da “maior democracia do mundo” (sic), passa a se dar por intermédio do aprisionamento das massas, deixando no passado as iniciativas inauguradas pelo New Deal rooseveltiano, no pós-1929, e ampliadas com o encerramento vitorioso da Segunda Guerra Mundial para amplas camadas das classes trabalhadoras.
Com isso, tendo na sua proa a política de Guerra às Drogas, criada pelos republicanos e continuada pelos democratas sem nenhuma espécie de questionamento, a embarcação carcerária estadunidense vem navegando a “onda punitivista”, com o escopo de solucionar o duplo problema étnico-racial e de classe que aflige os Estados Unidos da América com um Estado Penal complementar às políticas econômicas neoliberais.
No entanto, ao fazer isso, a própria função inicial do sistema prisional inventado pelo modo de produção capitalista – nos Estados Unidos da América, diga-se de passagem – sofre uma modificação drástica, que será analisada a seguir.
Do paradigma carcerário disciplinar-correcional ao modelo de prisão como espaço de contenção da população sobrante do pós-fordismo
Desde a publicação de Punição e Estrutura Social – de autoria dos pesquisadores do Instituto de Pesquisas Sociais de Frankfurt, Georg Rusche e Otto Kirchheimer, no ano de 1939 –, tem-se conhecimento vigorosamente fundamentado de que a tese defendida pelos penalistas liberais de que o propósito da pena seria a proteção da sociedade não passa de uma ideologia voltada ao encobrimento da realidade construída pelo modo de produção capitalista, em que, de fato, “o objetivo de cada pena é a defesa daqueles valores que o grupo social dominante de um Estado vê como bons para a ‘sociedade’” (RUSCHE e KIRCHHEIMER, 2004, p. 8).
Seguindo o caminho aberto por Marx e Engels na Ideologia Alemã, o que os dois pesquisadores da Escola de Frankfurt quiseram demonstrar, ao criticarem os penalistas liberais, é que “o caráter das penas (...) está intimamente associado aos e dependente dos valores culturais do Estado que as emprega” (Ibid.).
No caso em questão da forma burguesa de punição nos marcos do capitalismo – isto é, a pena de prisão –, Rusche e Kirchheimer identificaram a sua estreita relação com a situação do mercado de trabalho, pois “todo sistema de produção tende a descobrir formas punitivas que correspondem às suas relações de produção” (Ibid., p. 20).
Quarenta e dois anos após a publicação de Punição e Estrutura Social, os italianos Dario Melossi e Massimo Pavarini retomariam as trilhas inauguradas por Rusche e Kirchheimer (bem como as reflexões de Foucault no então recém-lançado Vigiar e punir, de 1975) naquilo que já pode ser considerado como o campo teórico da criminologia crítica.
Em Cárcere e Fábrica, Melossi e Pavarini procuram realizar uma análise marxista do cárcere ao “estabelecer uma conexão entre o surgimento do modo de produção capitalista e a origem da instituição carcerária moderna”, apontando que, desde as suas protoformas com as casas de correção ou casas de trabalho, o seu objetivo central consistia na “imposição da disciplina do trabalho” aos “ociosos e vagabundos” que chegavam às cidades expulsos dos campos pela política estatal inglesa do cercamento dos campos.
Então, era de fundamental importância forçar os trabalhadores expulsos dos campos a se submeterem à disciplina do novo mundo da fábrica e da máquina.
Em poucas palavras:
(...) O trabalho forçado nas houses of correction ou workhouses era direcionado, portanto, para dobrar a resistência da força de trabalho e fazê-la aceitar as condições que permitissem o máximo grau de extração de mais-valia (MELOSSI e PAVARINI, 2017, p. 38).
Da sua protoforma inglesa, no século XVII, ao nascimento da penitenciária nos Estados Unidos da América – que acabara de conquistar a sua independência da própria Inglaterra –, na passagem do século XVIII ao século XIX, a prisão manteve o seu objetivo central inalterado: impor a disciplina fabril aos trabalhadores insubmissos.
Seja pelo “solitary confinement” do modelo da Filadélfia ou pelo “silent system” do modelo de Auburn, a penitenciária tornou-se uma “fábrica de proletários” – um espaço integralmente dedicado à educação para a disciplina do trabalho assalariado:
(...) O cárcere – em sua dimensão de instrumento coercitivo – tem um objetivo muito preciso: a reafirmação da ordem social burguesa (a distinção nítida entre o universo dos proprietários e o universo dos não-proprietários) deve educar (ou reeducar) o criminoso (não-proprietário) a ser proletário socialmente não perigoso, isto é, ser não-proprietário sem ameaçar a propriedade (Ibid. p. 216).
Via de regra, o sistema penitenciário inventado como tal nos Estados Unidos da América permaneceria seguindo o mesmo objetivo central de impor a disciplina fabril aos trabalhadores em todas as partes do planeta até o momento em que, em meados dos anos 1970, a dupla crise do modelo fordista de produção e do Estado de Bem-estar Social traz novas exigências ao modo de produção capitalista, as quais, como vimos na seção anterior, resultaram na edificação do Estado Penal Neoliberal, com sua “onda punitivista” e a política de “encarceramento em massa”.
Diante de uma tal conjuntura, a prisão teve que se readequar a fim de preservar a sua funcionalidade orgânica à reprodução do modo de produção capitalista, isto é, uma nova finalidade deveria ser estabelecida para a prisão nos novos tempos do pós-fordismo.
O sociólogo polonês Zygmunt Bauman captou o deslocamento ocorrido na forma como “os estranhos da era do consumo” passaram a ser tratados pelo Estado no curso da explosão dos índices de desemprego que acompanhou a crise do modelo fordista de produção nos Estados Unidos da América e na Europa.
Fazendo uma analogia entre mercado e cassino, no contexto histórico em questão, Bauman identifica um conjunto de jogadores incapazes, que devem ser mantidos fora do jogo na condição de refugo – seres humanos nada mais que descartáveis:
Dada a natureza do jogo agora disputado, as agruras e tormentos dos que dele são excluídos, outrora encarados como um malogro coletivamente causado e que precisava ser tratado com meios coletivos, só podem ser redefinidos como um crime individual. As “classes perigosas” são assim redefinidas como classe de criminosos. E, desse modo, as prisões agora, completa e verdadeiramente, fazem as vezes das definhantes instituições de bem-estar (BAUMAN, 1998, p. 57).
E no cassino/mercado da sociedade de consumo pós-fordista, “cada vez mais, ser pobre é encarado como um crime; empobrecer, como o produto de predisposições ou intenções criminosas – abuso de álcool, jogos de azar, drogas, vadiagem e vagabundagem” (Ibid., p. 59).
Em A Miséria Governada Através do Sistema Penal, o jurista italiano Alessandro De Giorgi buscou apontar a inflexão ocorrida na própria finalidade do sistema prisional quando do início do período pós-fordista da produção capitalista.
De acordo com a leitura de De Giorgi, o Vigiar e Punir de Michel Foucault tem a sua importância vinculada à revelação do início do “primeiro grande internamento” ocorrido nos séculos XVII e XVIII, quando, ao invés de aniquilar os pobres e mendigos, o sistema capitalista optou pela sua disciplinarização, a fim de transformá-los em força de trabalho apta a servir como mão-de-obra disponível ao universo fabril.
Então, tinha início um processo de gestão racional das forças produtivas (o nascimento da “biopolítica”, na terminologia foucaultiana), em que a expansão da sociedade urbana-industrial dar-se-á concomitantemente à adoção de um modelo de controle social disciplinar – o “paradigma do cárcere correcional” (DE GIORGI, 2017, p. 28-9).
No “segundo grande internamento”, não vivido pelo filósofo francês, que se seguiu à crise do fordismo, o projeto disciplinar da modernidade capitalista é abandonado, passando o cárcere a assumir a tarefa de separar as “classes perigosas” das “classes laboriosas” e não mais a de corrigi-las nos termos da utopia disciplinar.
Assim, segundo o jurista italiano, desde o último quartel do século XX até o primeiro quartel do século XXI – isto é, há exatamente meio século –, o sistema prisional foi se transformado aceleradamente em “espaço de contenção” (Ibid., p. 29-30).
Com a crise do fordismo e a substituição do Welfare State pelo Estado Neoliberal, a população excedente decorrente da disparada das taxas desemprego precisou ser contida e as prisões passaram a desempenhar um papel fundamental no seu “estocamento”.
Dito de outra maneira, o fim do pleno emprego que marcou os trinta anos dourados do capitalismo, no pós-Segunda Guerra Mundial, precisou ser absorvido pelo recém-criado Estado Penal por meio do aprisionamento da população sobrante, do encarceramento em massa da força de trabalho excedente do pós-fordismo.
Segundo De Giorgi, as reflexões foucaultianas acerca do caráter disciplinar da prisão teriam a sua validade circunscrita à existência da sociedade industrial fordista, tendo elas sofrido um deslocamento na sua capacidade de compreensão do real concomitantemente ao esgotamento do fordismo, conforme explicitação abaixo:
(...) Termos como “sociedade de controle” e “sociedade da vigilância” parecem indicar o epílogo e a superação do regime disciplinar, uma transição que se consumiria a partir do esgotamento da estrutura produtiva fordista (Ibid., p. 32).
Fazendo uso do controverso conceito de “multidão” cunhado pelos filósofos italiano Antonio Negri e estadunidense Michael Hardt, Alessandro De Giorgi formula a hipótese de que estaria em vias de implementação “a construção de um modelo de governo do excesso expressa pela multidão produtiva pós-fordista (a qual) torna-se uma das prioridades das atuais estratégias de controle” (Ibid., p. 33).
Nas palavras de Dario Melossi, De Giorgi teria inaugurado a tentativa de a “economia política da pena” analisar a fase em que o modo de produção capitalista entra “numa situação de expulsão permanente e estrutural da força de trabalho do processo produtivo” – o “desemprego estrutural” resultante dos processos de “reestruturação produtiva”. Em tal fase, as instituições de controle social, a exemplo da prisão, não teriam mais nenhum “ensinamento disciplinar” a oferecer, mas apenas e tão somente servir como espaço de “armazenamento” e “neutralização” “de sujeitos que não são mais úteis” (MELOSSI, 2017, p. 17-18).
Frente a tal mudança de caráter estrutural, em que termos deve ser feita, pois, a discussão acerca da eficácia, ou não, do sistema prisional? É o que veremos na sequência desse capítulo.
Eficácia do sistema prisional e necropolítica
Quando da publicação de Vigiar e Punir, em 1975, como foi indicado logo na introdução desse capítulo, Michel Foucault já assinalava que, desde muito cedo, ainda na primeira metade do século XIX, pairava uma sucessão de críticas acerca da ineficácia da prisão, críticas essas, citadas a seguir, que se fariam presentes no momento mesmo da elaboração do livro do filósofo francês sobre o nascimento da prisão, na primeira metade da década de 1970:
As prisões não diminuem as taxas de criminalidade: pode-se aumentá-las, multiplicá-las ou transformá-las, a quantidade de crimes e de criminosos permanece estável, ou, ainda pior, aumenta.
(...)
A detenção provoca a reincidência; depois de sair da prisão, têm-se mais chance que antes de voltar para ela, os condenados são, em proporção considerável, antigos detentos.
(...)
A prisão não pode deixar de fabricar delinquentes. Fabrica-os pelo tipo de existência que faz os detentos levarem: que fiquem isolados nas celas, ou que lhes seja imposto um trabalho inútil, para o qual não encontrarão utilidade, é de qualquer maneira não “pensar no homem em sociedade; é criar uma existência contra a natureza inútil e perigosa”.
(...)
A prisão torna possível, ou melhor, favorece a organização de um meio de delinquentes, solidários entre si, hierarquizados, prontos para todas as cumplicidades futuras.
(...)
As condições dadas aos detentos libertados nos condenam fatalmente à reincidência: porque estão sob a vigilância da polícia; porque têm designação de domicílio, ou proibição de permanência.
(...)
Enfim, a prisão fabrica indiretamente delinquentes, ao fazer cair na miséria a família do detento. (FOUCAULT, 2014, p.259-63).
A tais críticas, os defensores das prisões responderiam da mesma maneira. Os problemas relativos à ineficácia das prisões seriam resolvidos com mais prisões:
(...) Há um século e meio que a prisão vem sempre sendo dada como seu próprio remédio; a reativação das técnicas penitenciárias como a única maneira de reparar seu fracasso permanente; a realização do projeto corretivo como o único método para superar a impossibilidade de torná-lo realidade (FOUCAULT, 2014, p, 264).
Se partíssemos do princípio de que o escopo da prisão é fazer o bem à sociedade como um todo, à medida em que retiraria do convívio social criminosos e delinquentes que, após o cumprimento de suas penas em regime fechado, sairiam socialmente reajustados – isto é, se compartilhássemos da visão de que, realmente, a prisão exerce uma função de ressocialização ou de reeducação – tal parâmetro de eficácia ainda se prestaria ao debate de um ponto de vista crítico.
Porém, como a ideia de ressocialização demonstrou-se nada mais que um mito no curso da história do sistema prisional, mito esse que se revelou na sua inteireza no pós-fordismo, quando a prisão se transformou num espaço de contenção voltado ao estocamento de grupos sociais descartados pelo capitalismo em sua fase neoliberal, faz mais sentido se perguntar qual racionalidade política estaria por detrás desse projeto prisional mais assemelhado a campos de concentração.
Há sim uma “nova racionalidade com respeito a fins”, um novo thelos inscrito na forma como o sistema prisional se tornou um espaço de contenção de massas das frações precarizadas das classes subalternas, no último meio século de história do modo de produção capitalista.
Nesse sentido, a prisão se tornou eficaz, pois vem conseguindo alcançar os seus propósitos, ainda que o seja de maneira não declarada em Estados governados pela direita liberal moderada.
No entanto, com o avanço mundial da extrema-direita, sentimentos como timidez e vergonha já não se fazem mais necessários para o encobrimento do abjeto desejo de “armazenamento” (e extermínio) de populações que se tornaram excedentes.
Fato é que – implícita ou explicitamente, disfarçada ou abertamente – o “encarceramento em massa” é guiado for uma força soberana que tem “a capacidade de definir quem importa e quem não importa, quem é ‘descartável’ e quem não é” (MBEMBE, 2021, p. 41) – uma força soberana chamada política que tem o poder e a capacidade “de ditar quem pode viver e quem deve morrer” (Ibid., p. 5) – a “necropolítica”.
Assim, muito resumidamente, a prisão hodierna tem o seu parâmetro de eficácia localizado não na capacidade de ressocialização, mas sim no fato de possuir como fim a realização da necropolítica.
A facilitar a legitimação do novo fim da prisão, no sentido que estamos a desenvolver desde o início do capítulo, encontra-se a naturalização da instituição carcerária, “como se a prisão fosse um fato inevitável da vida, como o nascimento e a morte” – naturalização envolvida por uma ideologia que “nos livra da responsabilidade de nos envolver seriamente com os problemas de nossa sociedade, especialmente com aqueles produzidos pelo racismo e, cada vez mais, pelo capitalismo global”, tendo a prisão se tornado “um buraco negro no qual são depositados os detritos do capitalismo contemporâneo” (DAVIS, 2021, p. 16-7).
Dessa forma, nas palavras da Professora Emérita da Universidade da Califórina, Angela Davis:
(...) as prisões tornaram-se uma maneira de dar sumiço nas pessoas com a falsa esperança de dar sumiço nos problemas sociais latentes que elas representam (DAVIS, 2019, p. 39).
À guisa de conclusão, dedicaremos algumas poucas linhas do presente capítulo à condição do “encarceramento em massa” na realidade brasileira, no primeiro quartel do século XXI, que está próximo de se encerrar com um cenário nada promissor.
Considerações finais
O século XXI assinala a entrada do Brasil na “era do encarceramento em massa” e os números oficiais sobre o crescimento exponencial de pessoas presas no país não deixam margem a qualquer espécie de dúvida quanto a isso. No intervalo de duas décadas, a população carcerária nacional saltou de 232.755 (no ano de 2000) para 832.295 (no ano de 2022), ou seja, um crescimento de mais de 350%.
O fato de termos tido à frente do Poder Executivo Federal, nesse intervalo de tempo de quase um quarto de século, governantes das mais diversas colorações político-ideológicas e agremiações partidárias – Fernando Henrique Cardoso (PSDB), no centro; Luiz Inácio Lula da Silva (PT) e Dilma Rousseff (PT), no centro-esquerda; Michel Temer (MDB), na direita; Jair Messias Bolsonaro (PL), na extrema-direita – parece demonstrar que a “onda punitivista” que se abateu sobre a Nação traz em si elementos de determinação que, a fim de serem devidamente compreendidos, necessitam ir além de conjunturas políticas específicas.
O nosso Estado Penal Neoliberal – que engole, governo após governo, em meio a múltiplas tensões, o Estado Democrático de Direito saído da Constituição Federal de 1988 – segue uma tendência global originada dos Estados Unidos da América, mas finca suas raízes num terreno profundo e receptivo aos seus ideais e práticas: o terreno das estruturas sociais econômicas de um país que formou o seu capitalismo dependente e periférico a partir da violência do escravismo colonial e de uma modalidade de desenvolvimento desigual.
Circunscrevendo-se, no entanto, à conjuntura vivida no primeiro quartel do século XXI, o que se constata é que a gigantesca inflação carcerária brasileira é fruto de uma realidade resultante do perverso encontro entre a política proibicionista de “guerra às drogas” e a detenção permanente de presos sem condenação definitiva – o que acaba fazendo com que a prisão provisória deixe de ser um recurso excepcional, passando a se constituir mais enquanto uma regra.
Tornado um fenômeno massivo, o encarceramento não apenas agrava as condições desumanas do sistema prisional, em função da superlotação, como também contribui sobremaneira para a naturalização do fato de que a prisão é um espaço de imposição do sofrimento a indivíduos e grupos de indivíduos selecionados pelo Estado, pois que:
(...) Sofrimento e danos são inerentes a qualquer prisão. A produção da dor é inseparável da atuação do poder do Estado de punir. A própria ideia de pena é a ideia de sofrimento. O poder dado ao Estado de punir é, em última análise, o poder de infligir sofrimento (KARAM, 2020, p. 35).
Assim, a hiperinflação carcerária imposta pelo Estado Penal Neoliberal potencializa aquilo que caracteriza a prisão desde a sua gênese histórica, em virtude do fato de que:
“Além de produzir sofrimento e violência, o poder do Estado de punir promove estigmatização, marginalização, desigualdade e discriminações, tendo como alvo primordial grupos já em desvantagem social (Ibid., p. 37).
Dessa forma, defendida como um dos instrumentos mais importantes para o combate à criminalidade que estaria assolando o país desde a sua redemocratização nos anos 1980, as prisões brasileiras tornaram-se um ingrediente – poderoso, diga-se de passagem – a mais na construção de uma sociedade que vive o medo de viver sob a democracia, tendo optado pelo “desejo de vida segura em espaços isolados, segregados da desordem social e diferenciados em relação aos perigos de contágio com os desiguais” (ADORNO & LAMIN, p.164).
Na condição de limite extremo de afastamento dos “perigos de contágio com os desiguais”, as superlotadas prisões brasileiras da “era do encarceramento em massa” representam não apenas um problema a ser solucionado no campo do Direito Penal, mas, também e principalmente, uma questão a ser enfrentada, por intermédio da sua retração, para que a democracia brasileira sobreviva e seja democratizada com a integração dos/das que padecem, dentro e fora das suas grades, devido à cor da sua pele e à sua classe social.
Referências
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MONDAINI, Marco. “‘Equilíbrio de antagonismos’ versus ‘desenvolvimento desigual’: o lugar do Nordeste na formação social brasileira” in MOTA, Ana Elizabete; VIEIRA, Ana Cristina; AMARAL, Angela (orgs.). Serviço Social no Nordeste. Das origens à renovação. São Paulo: Cortez, 2021, p. 48-60.
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