Cinema: Crônica de uma vitória popular
Estreou ontem (16/4) no Festival É Tudo Verdade o documentário "Favela do Papa", história exemplar da resistência a uma remoção no Rio de Janeiro
Um capítulo importante da história do Rio de Janeiro no século XX foi o movimento de resistência dos moradores da então chamada Favela do Vidigal contra a ordem de remoção emitida em 1977. Esse episódio foi determinante para o fim da política de remoção em grande escala posta em prática pelos governos estaduais na década de 1960. A conjunção de entidades e personalidades na defesa da permanência dos moradores deu margem a uma história que merecia mesmo ser levada ao cinema.
O compositor Sérgio Ricardo, dono de um barraco na comunidade e um dos ativistas mais engajados no movimento, realizou em 2018 uma reconstituição ficcional dos acontecimentos em Bandeira de Retalhos, seu último longa-metragem. Agora é a vez do documentário se ocupar do assunto em Favela do Papa, de Marco Antonio Pereira. Os dois projetos se cruzam na medida em que o documentário incorpora cenas dos bastidores da filmagem da ficção produzida pela Cavídeo.
Favela do Papa ganha sua força a partir de um extenso material de arquivo da época e da coleta de testemunhos de quem viveu tudo aquilo e ainda está aí para contar. São histórias de pressão para que abandonassem suas moradias de uma hora para outra e se mudassem para um conjunto habitacional da Cehab – Companhia Estadual de Habitação do Rio de Janeiro – no distante bairro de Santa Cruz. Histórias também de famílias desmembradas entre aquelas que chegaram a ser removidas antes que o movimento se tornasse vitorioso.
Grande parte das imagens provém dos registros feitos por Felicia Krumholz, então uma jovem arquiteta que se juntou à comunidade para filmar em Super 8 as ações de insurgência dos moradores. Vemos então os mutirões, as reuniões, as casas marcadas para demolição, os caminhões da Comlurb – Companhia Municipal de Limpeza Urbana – sendo carregados com móveis e utensílios enquanto seus donos embarcavam em ônibus que os levavam para a nova moradia. Os funcionários da Fundação Leão XIII, encarregados de proceder à remoção, cumpriam ordens do governo estadual sob a alegação de que cerca de 320 barracos corriam risco devido a possível deslocamento de pedras do alto do morro. A verdade, porém, é que um projeto previa a construção de edifícios de luxo no local. Por sinal, a maioria das remoções dos anos 1960 e 1970 era motivada pela especulação imobiliária sob o lema "Demolir para construir".
Ao contrário de remoções anteriores em favelas que não opuseram resistência, o Vidigal viria a se tornar um paradigma de luta. O filme de Marco Antonio Pereira faz a crônica de uma vitória popular vinda no curso de uma batalha judicial que levou meses. A rememoração da própria comunidade vai trazendo os personagens que colocaram sua influência a favor da causa. Além de Sérgio Ricardo, que mais tarde promoveria o show Tijolo por Tijolo com renda revertida para a reforma de casas do Morro do Vidigal, lá estavam o memorável jurista Heráclito Fontoura Sobral Pinto, o advogado Bento Rubião, o deputado Délio dos Santos, presidente da CPI das Favelas, o Cardeal Arcebispo Dom Eugênio Sales e as irmãs Ana Maria e Maria Cristina Noronha de Sá, agentes da Pastoral das Favelas.
A ação da Igreja Católica seria providencial para uma segunda vitória do pessoal do Vidigal, que aliás dá título ao documentário. Em 1980, a associação de moradores reivindicou e obteve a escolha daquela comunidade para ser visitada pelo Papa João Paulo II. A Capela de São Francisco de Assis foi construída especialmente para ser inaugurada pelo sumo pontífice, coroando assim uma cronologia de êxitos da coletividade.
O orgulho que o Morro do Vidigal deve guardar daquele momento histórico pode ser resumido numa das frases que ouvimos de um morador em Favela do Papa: "Objeto você remove. A pessoa vai se quiser".
O trailer:
* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.
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