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    Pedro Simonard

    Antropólogo, documentarista, professor universitário e pesquisador

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    Com o discurso na ONU, Bolsonaro afagou seu próprio QAnon

    QAnon é um movimento de extrema direita que apoia Donald Trump de maneira incondicional, não importa o que ele faça ou diga

    Jair Bolsonaro (Foto: Isac Nóbrega - PR)

    QAnon é um movimento de extrema direita que apoia Donald Trump de maneira incondicional, não importa o que ele faça ou diga. Seu nome vem da conjunção do codinome do líder deste movimento, “Q”, com a palavra anônimo, referência a seus seguidores. Reúne fragmentos diversos para formar uma grande teoria da conspiração que utiliza-se do imaginário comum, do senso comum político para acusar os inimigos de Trump de satanismo, pedofilia, tráfico sexual, antissemitismo, entre outras coisas. Sempre temas que povoam e assustam os conservadores.

    Trump teria sido escolhido pelos militares estadunidenses para concorrer à presidência dos EUA e travar uma batalha heróica contra o deep state e contra as três famílias multimilionárias que controlam o mundo: George Soros, os Rothschilds e a Casa de Saud, família real da Arábia Saudita. Este movimento começou em outubro de 2017 quando “Q”, a persona online que lidera este movimento, começou a postar denúncias em código em fóruns anônimos da internet. Supostamente, seu nome viria de codinomes de agentes secretos (o personagem que inventa as armas e utensílios de 007 e sua superiora hierárquica chamam-se “Q” e “M”, respectivamente). Ele se define como um patriota. “Q” afirma ocupar um alto cargo no governo de Donald Trump e obteria informações privilegiadas. 

    Os seguidores do QAnon são os “anons”. Já somam milhões de membros em fóruns e comunidades em redes sociais. O Twitter bloqueou suas contas e eles migraram para o Facebook e o Instagram. Organizam encontros presenciais sempre que alguma ameaça paira sobre Trump. Seu lema é “para onde vai um, vão todos”. 

    As postagens de “Q” misturam elementos de antigas teorias da conspiração e de teorias mais recentes, como a do “vírus chinês”. Seus inimigos são chamados de Alice, Coelho Branco (personagens do livro Alice no país das Maravilhas, de Lewis Carrol), Branca de Neve, sempre alusões a personagens de histórias populares. Segundo “Q”, todos os inimigos de Trump já estariam identificados e usando tornozeleiras eletrônicas. Para comprovar esta tese, as comunidades QAnon postam fotografias de inimigos políticos utilizando botas ortopédicas que, segundo os “anons”, esconderiam as tornozeleiras. Trump, por sua vez, estaria esperando o momento certo para prendê-los em uma ação chamada “tempestade”. Trump incentiva e manipula as teorias e princípios que sustentam as ações do QAnon

    Os inimigos seriam os democratas, as três famílias multimilionárias, líderes mundiais e personalidades de Hollywood que fariam parte de uma rede internacional de pedofilia, satanismo, tráfico de mulheres, cuja sede seria o subsolo de uma pizzaria de propriedade de um cidadão declaradamente eleitor dos democratas. Um homem foi preso por ter invadido esta pizzaria para acabar com a sede desta rede internacional. Este episódio ficou conhecido como Pizzagate.

    Em uma analogia com a história de João e Maria, “Q” alimenta seus seguidores com “migalhas” - informações desconexas - espalhadas para que estes possam segui-las e serem conduzidos para fora da floresta das notícias falsas. Os “anons” chamam-se a si mesmos “padeiros”. A soma das notícias desconexas que seriam pistas a serem seguidas, é chamada de “massa”. “Q” elabora gincanas nas redes sociais onde “migalhas” diversas devem ser relacionadas umas às outras para que juntas formem um significado maior. A isso os “anons” chamam “viga”. 

    O objetivo maior de toda esta quantidade de informações desconexas e, muitas vezes, falsas é proteger e apoiar Donald Trump por meio da manipulação dos eleitores de direita e extrema-direita. Esta manipulação busca criar um inimigo comum, uma ameaça fictícia que este inimigo pode desencadear. Desta maneira, QAnon controla as pessoas por meio da utilização do medo. Amedrontadas, elas passam a acreditar nas histórias e teorias mais absurdas e disseminam forte discurso de ódio contra todos aqueles que não pensam como eles.

    O FBI já identificou o QAnon como uma comunidade terrorista que pode transformar-se em milícia paramilitar favorável a Donald Trump.

    Já existem comunidades QAnon no Instagram e no Facebook que reúnem centenas de milhares de brasileiros. Estas comunidades defendem Jair Bolsonaro de maneira cega e fiel, tal como acontece com Trump. As informações que nelas circulam reproduzem e alimentam elementos de discursos e falas de Damares Alves, Eduardo Bolsonaro e Olavo de Carvalho. Entre os temas discutidos nestas comunidades estão o terraplanismo, o ódio às ONGs, a defesa do direito de possuir armas, a “tese” de que a fórmula da Pepsi contém fetos abortados, o elo entre “esquerdistas” e pedofilia e/ou satanismo, a cristofobia, a “defesa” da família, discurso contra o aborto, a afirmação de que as queimadas dos biomas brasileiros resultam das ações de indígenas e camponeses, o ódio à China e à Venezuela, a desqualificação da pandemia da Covid-19, a rejeição à vacinação, a desqualificação do aquecimento global e todo o caldo de desinformação e manipulação divulgada diariamente por Jair Bolsonaro e seus apoiadores.

    Existem muitos elementos em comuns entre o QAnon pró Trump e sua versão pró Bolsonaro, mas a versão tupiniquim mobiliza e agrega temas que incomodam e ameaçam Bolsonaro e seus apoiadores. 

    Parece ser um discurso desconexo, uma tolice, mas surte efeito e alcança seus objetivos. A oposição procurou desqualificar e caracterizar o conteúdo do discurso de Bolsonaro na abertura da Assembleia Geral da ONU como falacioso e mentiroso. Nas comunidades de “anons” bolsonaristas no Facebook e no Instagram este mesmo discurso foi qualificado como corajoso e Bolsonaro saudado como um grande líder que teve a coragem de expor-se diante o mundo, de colocar sua vida em risco para denunciar a cristofobia, defender o Brasil contra o comunismo, explicar de maneira clara a origem dos incêndios nos biomas brasileiros, bem como mostrar a eficácia da ação do governo no combate à Covid-19 e na defesa da família. Bolsonaro também conseguira mostrar ao mundo que tudo que é denunciado contra ele é mentira e resultado de um grande complô mundial contra seu governo organizado pelas ONGs em conluio com os comunistas.

    O discurso de Bolsonaro na ONU mostrou ao mundo e a seus seguidores internos que ele consegue comunicar-se com os “anons” brasileiros e com seus eleitores, mesmo utilizando-se de notícias falsas. Fica um alerta para a oposição. Joseph Goebbels já mostrou claramente que o conteúdo da comunicação é menos importante do que a forma como ele é difundido. 

    A estratégia utilizada por Bolsonaro e os “anons” brasileiros chega ao Brasil testada, atualizada e repaginada pela atuação do QAnon nos EUA, na Grã-Bretanha e na Alemanha. Ela só precisa ganhar um conteúdo nacional próprio que fale diretamente aos corações e mentes dos bolsonaristas. Bolsonaro e seus apoiadores sabem como selecionar e apropriar-se deste conteúdo e torná-lo palatável para seus eleitores. O discurso na ONU, como já foi amplamente analisado e discutido no Brasil, foi endereçado ao público interno. Por mais que a comunidade internacional tenha tecido críticas profundas e pertinentes contra este pronunciamento, as comunidades de “anons” brasileiros mostraram que seu conteúdo atingiu os objetivos desejados. Assim como nos EUA, o QAnon tem potencial de comunidade terrorista que pode transformar-se em milícia paramilitar favorável a Jair Bolsonaro.

    O grande erro das esquerdas com relação a Benito Mussolini e a Adolf Hitler foi ridicularizá-los e menosprezá-los. Quando abriram seus olhos já era tarde. 

    É preciso levar o QAnon a sério. Ele já está presente no Brasil, preparando-se para atuar nas eleições de 2020.

    * Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.

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