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    Denise Assis

    Jornalista e mestra em Comunicação pela UFJF. Trabalhou nos principais veículos, tais como: O Globo; Jornal do Brasil; Veja; Isto É e o Dia. Ex-assessora da presidência do BNDES, pesquisadora da Comissão Nacional da Verdade e CEV-Rio, autora de "Propaganda e cinema a serviço do golpe - 1962/1964" , "Imaculada" e "Claudio Guerra: Matar e Queimar".

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    Conduzindo Chico Buarque do Brasil

    "Eu só consegui dizer: 'Chico, esse povo te ama'. Você não é de Holanda. Você é Chico Buarque do Brasil", escreve a colunista Denise Assis

    Chico Buarque com outras lideranças (Foto: Renan Brandão (Assessoria/Wadih Damous))

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    Eram 16h36 do dia 31 de março (em 2016), quando liguei para o André. “Vamos?”.

    E ele: “O cara confirmou?”

    Há 52 anos, eu era apenas uma garotinha e vi desfilar, em um 31 de março, à minha frente, no interior de Minas, o comboio do general Mourão rumo ao golpe. Espichei o meu pescoço até onde a vista alcançou e quando esta história sinistra sumiu na curva do final da avenida principal, e depois na curva do tempo, eu tinha decidido que iria atrás dela, mesmo que ela estivesse bem longe, no Rio de Janeiro.

    Sim, o cenário era o Rio. Chico Buarque de Holanda tinha dúvidas se iria ao Largo da Carioca, estar diante do seu público, olhos nos olhos daquela gente, para repetir o que já vinha dizendo: “Não, de novo não, não vai ter golpe”.

    Talvez pela força da minha vontade de que tudo desse certo, de que Chico estivesse à frente do “nosso exército” injetando ânimo na tropa, André, o motorista, não discutiu. Não ponderou. De um salto, aprontou o carro cedido pelo deputado/fã de Chico, Wadih Damous (PT-RJ) e se pôs a caminho. No banco da frente eu seguia com o celular nas mãos, na esperança de que um tilintar se transformasse na concretude dos meus planos e eu lesse na tela: “Sim. Eu vou”.

    Ultrapassamos o bairro da Glória, a solidez do Pão de Açúcar de frente para o Morro da Viúva, a placidez das águas turvas da Baía da Guanabara, e eu com aquele objeto mudo nas mãos. André, já totalmente condutor e passageiro da minha vontade, perguntava: “nada?”

    Entrando em Copacabana eu me decidi e lancei na telinha: “Chico, estou por Ipanema, você quer que eu te pegue? Caso tenha resolvido, passe o endereço que em minutos estarei na sua porta”.

    Impertinência? Dúvida. Espera.

    Plim. “Denise, estou terminando uma consulta, saio antes das seis. É só o tempo de tomar um banho e fazer a barba. Você pode me pegar às sete?”

    Às sete, às nove, às oito... Epa, mas havia uma multidão que, sem saber o que estava por vir, podia debandar. “Pode ser seis e meia? Temo que com este trânsito a gente não consiga chegar a tempo de pegar o ato cheio”, arrisquei. A esta altura, já falando ao vivo, pelo celular e ele:

    “Vamos negociar. Seis e quarenta, então. Sou pontual”.

    Eu também. “Estarei na sua porta. Fique tranquilo”.

    E agora? Como harmonizar todos os lados? Como pedir para que a multidão se arredasse, para deixar passar não a banda, mas o dono da banda?

    Com a autoridade de quem vai levar a esperança nos olhos, que já nasceram assim, desta cor, ele pediu que sua presença não fosse anunciada. Só isto? Não. Queria entrar e sair rápido, para que todos entendessem que quem mandava o recado para o outro lado não era o artista, não era o político, mas Chico Buarque de Holanda, o cidadão.

    Ao pé do seu prédio, no alto Leblon, aguardamos, eu e o André, ainda incrédulos com o sim, e travando intensas negociações com a organização do ato para que tudo saísse como Chico queria.

    Não! Como nós queríamos, pois éramos nós que queríamos Chico! Ou melhor, era aquela multidão, espremida no Largo da Carioca, que sem nem imaginar, também queria Chico.

    Ele desceu. Pontual. Minutos para uma selfie, que tietagem é para todos, em se tratando dele. E quem seria besta de ficar sem uma foto para provar que não mentiu, que não cartou?

    Saltei para o banco de trás do carro, para fazer sala para o nosso convidado ilustre. André botou a máquina em movimento. Lá fora seguia o meu coração, aos pulos, buscando vento à frente do carro, para aliviar a tensão do momento.

    A meu lado, amável, divertido, ia um amigo de longa data (é esta a sensação que ele passa, a de que você é seu amigo de infância) a puxar assunto, a responder perguntas as mais variadas, e a rir, contando histórias. Não sem demonstrar uma ponta de ansiedade, pontuando a conversa com perguntas tais como:

    “Será que nesse vai ter pouca gente?” (a boataria do meio de semana apontava que sim). “Não estamos indo muito cedo?”

    Não Chico. Era agora ou nunca. As negociações com a organização do ato prosseguiam, a cargo do nosso André, totalmente dentro da causa e ciente de sua responsabilidade. Lá fora a noite se iluminava e a paisagem passava por meus olhos.

    Chico pediu pausa. André assentiu. Paramos no posto no início do Aterro para “um xixi preventivo”, como ele descreveu.

    Uma taxista que estacionava o reconheceu e gritava como louca: “Chico!!!! Meus olhos verdes!!!”. “Bate no meu carro!!!”, bradava.

    Ele perseguiu como flecha o seu objetivo e voltou rindo à solta, da situação.

    À medida que o carro engolia o asfalto eu imaginava como seria o desembarque, conduzindo o mito. Com extrema competência André calculou o trajeto, os minutos, a chegada.

    O carro parou. Olhei para fora e a massa compacta a princípio me aliviou e me impactou. Mas agora era resolver rápido: como vencer os 100 metros até o palco?

    Homens decididos e sarados formaram um pequeno corredor de proteção. Não eram muitos, mas eram rápidos.

    Um rapazinho de barbicha fez cara de quem tinha visto a luz. Com ar de espanto e deslumbramento gritou: “é o Chico”. Como uma hola, o bordão foi sendo repetido alto, gritado, berrado, enquanto o nosso grupo, tal como um comboio se desenvolvia numa corrida que mais se assemelhava a um grupo de maratonistas.

    Não se enxergava mais nada a não ser braços, bocas, olhos, cabelos. O som foi preenchido por gritos que de tão forte provocavam um zumbido. Era como se até aquele momento, nas gargantas, estivesse comprimido um grito de gol. Chico galgou o palco com a rapidez de um atacante. Um braço atravessado à minha frente me disse: “A senhora não!”.

    Como??? Alguém podia falar para aquele jovenzinho que eu trouxera aquele homem para pregar no sopé daquela montanha???

    Não. Ninguém me salvaria. Com a ferocidade de uma leoa gritei: “eu estou com ele!!!”. Nada. Um mar de gente pulava à minha frente como peixes na piracema, roubando o pouco espaço que o meu corpo exige. Agarrei o rapazinho pelas bochechas coradas e devolvi: “se não fosse por mim, ele não vinha, entendeu???”

    Não havia tempo para dramas. A cena levou segundos, mas consumiu uma eternidade. Rompi o cerco.

    Já no palco, Chico estava à vontade, sendo empurrado, fotografado, apertado. Alguém lhe entregou uma rosa. “Tu vens, tu vens / Eu já escuto o teu sinal”, teve tempo de cantarolar com o intérprete Daniel Guerra, de Nova Iguaçu, que um dia vai contar aos netos: “eu cantei com Chico Buarque.”

    A plateia não ouvia mais nada. Aquele grito – que parecia me levantar do chão, tamanha a força e a energia – foi se transformando: “Chico, guerreiro, do povo brasileiro”.

    O mestre de cerimônias pediu silêncio. Agora só se ouvia a voz do Chico. Os olhos da multidão faiscavam como as telas dos celulares. No cantinho do palco constatei que o seu público o vê "como se você fosse assim, uma espécie de santo", graças às suas convicções, a sua dignidade.

    A princípio se dirigiu à “gente que votou no PT, gente que não gosta do PT, gente que foi do PT e se desfiliou do partido, gente que votou na Dilma, gente que votou na Dilma e está decepcionada com esse governo. Mas, sobretudo, gente que não pode pôr em dúvida a integridade da presidente Dilma Rousseff. Portanto, é claro que estamos todos aqui unidos pelo apreço à democracia e em defesa intransigente da democracia", falou, com a voz firme, mas com a tranquilidade de sempre.

    E lembrou de 31 de março de 1964 para defender a permanência da presidente. "Eu vejo gente aqui no palanque, na praça, gente da minha geração que viveu 31 de março de 1964. Mas vejo, sobretudo, uma imensa juventude que não era então nem nascida, mas conhece a história do Brasil. Então, estou aqui para agradecer a vocês que me animam a acreditar que não, de novo, não. Não vai ter golpe", finalizou.

    Sob o mesmo atropelo voltamos ao carro. Os olhos de Chico eram duas esmeraldas faiscantes. Seu aspecto era o de alguém que havia saído de uma acirrada partida no Politheama. Tinha um olhar líquido.

    Naquele momento eu só consegui dizer: “Chico, esse povo te ama”. Você não é de Holanda. Você é Chico Buarque do Brasil.

    * Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.

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