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    Liana Cirne Lins

    Professora da Faculdade de Direito da UFPE, doutora em Direito Público, mestra em Instituições Jurídico-Políticas e vereadora em Recife (PT-PE)

    17 artigos

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    Crime e castigo: considerações sobre o aborto como pecado e como crime de gênero, por uma católica praticante

    Num país em que 800 mil abortos ocorrem todo ano, é necessário que Padres e Pastores preocupem-se menos em legislar, e mais em evangelizar

    Manifestação de protesto contra o PL 1904/24 (Foto: Fernando Frazão/Agência Brasil)

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    Aborto. Tema que o movimento feminista vem pautando há anos, com o slogan "nem presas, nem mortas: aborto legal, seguro e gratuito".

    Assunto desprezado pela mídia, ele finalmente entrou na agenda dos meios de comunicação. Pelas mãos de um homem conservador. 

    Antecipo, para todos os fins, aquilo que dita minha consciência moral e religiosa: na opinião desta autora, católica praticante, o aborto é uma gravíssima violação moral e um pecado, pois como evangeliza o Livro de Jeremias, “Antes mesmo de te formar no ventre materno, eu te conheci; antes que saísses do seio, eu te consagrei” (Jr 1, 5). A vida é divina e manifestação da vontade e do poder de Deus desde a concepção.

    Essa é a minha fé. Ela a mim se aplica, e àquelas e àqueles que professam a mesma fé.

    Entretanto, apenas em um ESTADO LAICO a democracia verdadeiramente existe. Vale dizer: ninguém pode ser obrigado a seguir preceitos religiosos que não professe, pois isso seria uma violência contra a dignidade humana e contra a própria liberdade de credo. Estado e religião precisam ocupar esferas distintas.

     Assim, afirmar que um ato é pecado perante Deus não implica a consequência de que ele deve ser crime perante a lei.

    E é a separação entre as esferas da religião e da lei que o projeto de lei nº 1.904, de 2024, pretende abolir. O PL 1904/2024 equipara o aborto ao crime de homicídio simples e suprime as hipóteses de aborto legal (aquelas previstas no Código Penal desde 1940, quais sejam, aborto em caso de estupro, risco de morte para a gestante ou de inviabillidade para o feto) a partir da 22ª semana de gestação.

    O autor não esconde ter sido movido pelo objetivo de testar Lula, para verificar se Lula vai ou não vetar o projeto de lei ¹. As contradições inerentes ao projeto não envergonham seus apoiadores. Pela proposta, o crime de aborto terá uma pena máxima duas vezes maior do que a do crime de estupro, mesmo quando a gestação foi consequência da violência sexual. 

    A vítima de estupro pode ter uma pena duas vezes maior do que a do estuprador.

    Defensores do projeto afirmam que a pena somente será imposta quando o aborto for praticado após a 22ª semana da gestação. Entretanto, ignoram (propositalmente?) que em caso de estupro de crianças - hipótese infelizmente muito comum no Brasil - as crianças não fazem ideia de que estão grávidas e muitas vezes a família só descobre a violência e a gestação resultante do crime de estupro depois de 22 semanas.

    Doze mil meninas foram mães após terem sido estupradas, apenas em 2023 ².

    A cada 30 minutos, uma criança vira mãe no Brasil 3 .

    Violência contra crianças e adolescentes cresceu 23% em 2024.

    Tudo no PL 1904/2024 é revoltante. Ele pune mais a vítima de estupro do que o estuprador. Ele acaba com o aborto legal previsto no Código Penal. 

    Esse não é um projeto de lei para ser vetado pelo Presidente Lula. ESSE É UM PROJETO DE LEI PARA SER DERRUBADO NO CONGRESSO NACIONAL, que teve a pachorra de aprovar sua tramitação em regime de urgência em apenas 24 segundos. O momento é de ir às ruas e às redes para dizer NÃO ao PL 1904/2024! Mas não é só.

    Está mais do que na hora do Brasil DESCRIMINALIZAR COMPLETAMENTE O ABORTO. Dizer não ao PL 1904/2024 é pouco! É necessário REVOGAR os artigos 124 e 126 do Código Penal brasileiro, que punem como crime o aborto.

    Há várias razões jurídicas - e humanitárias - para a abolição do crime de aborto em nossa legislação. Aliás, há decisão do STF  reconhecendo que o núcleo do art. 124 CP fere princípios jurídicos de maior estatura e que, portanto, considera haver inexistência de crime e ausência de materialidade. Destacamos algumas das razões que conduziram a essa decisão:

    1. A criminalização do aborto fere o princípio da proporcionalidade ao imputar à interrupção voluntária da gestação pena de detenção de até três anos.

    ATENÇÃO: O PL 1904/2024 aumenta radicalmente esta pena, que passaria a ser, caso aprovado - não será! -, de até vinte anos de reclusão!

    2.   A criminalização do aborto não foi recepcionada pela Constituição de 1988, pois é incompatível com os direitos fundamentais sexuais e reprodutivos da mulher, que não pode ser obrigada pelo Estado a manter uma gestação indesejada; integridade física e psíquica da gestante, que é quem sofre, no seu corpo e no seu psiquismo, os efeitos da gravidez; e a igualdade da mulher, já que homens não engravidam e, portanto, a equiparação plena de gênero depende de se respeitar a vontade da mulher nessa matéria.

    Sobre a igualdade entre homens e mulheres, inscrita no artigo 5º da Constituição, é preciso ser dito que criminalizar o aborto corresponde a um CRIME DE GÊNERO, pois os homens não respondem em nenhuma hipótese por esse crime, já que o aborto exigido pelo pai à filha que engravidou sem ter casado é considerado como voluntário, mesmo ante à ameaça de expulsão de casa! O pai que arrasta a filha pelo braço para realizar um aborto para não macular a imagem da família não é punido pelo art. 124 do Código Penal, ou pelo art. 125, ou pelo art. 126. O marido ou companheiro que arrasta a esposa pelo braço para que ela aborte seu filho, ameaçando deixar o lar e abandoná-la sozinha para cuidar dos outros filhos do casal não é punido pela lei! O homem casado com outra mulher que arrasta a amante pelo braço para preservar a família tradicional não é punido pela lei! Nos termos da lei - inconstitucional por violar o princípio da igualdade entre homens e mulheres - apenas as mulheres são punidas pela prática do aborto, mesmo quando ele é exigido pelos homens, como condição para a filha permanecer sob o teto dos pais ou como condição para permanência ou aparência do casamento.

    3.  A criminalização do aborto penaliza ainda mais as mulheres pobres, que recorrem à automutilação, lesões graves e óbitos, em razão da falta de acesso às clínicas privadas clandestinas.

    4.  A criminalização não impede a realização do aborto. Os números são assustadores: No Brasil, cerca de 800 mil mulheres praticam abortos todos os anos e esse número pode chegar a 1 milhão, de acordo com a Organização Mundial de Saúde. Dessas, 200 mil recorrem ao SUS para tratar as sequelas de procedimentos malfeitos. Todo ano.

    Defender a criminalização do aborto evidentemente não impede ou reduz os números do aborto. Poderíamos mesmo afirmar que a criminalização do aborto INCENTIVA sua prática. Afinal, não há política pública mais burra (ou hipócrita) para evitar o aborto do que afastar a mulher do Estado num momento de vulnerabilidade, em que está prestes a praticar uma violência contra o próprio corpo (sobremodo por meio de automutilação ou de uma clínica clandestina), muitas vezes por exigência do pai, do marido, companheiro ou amante.

    Este deveria ser o momento em que o Estado poderia proporcionar à mulher assistência social e psicológica, oferecer a possibilidade de doação ou mesmo facilitar a prestação de assistência religiosa para aquelas mulheres que desejassem. Afinal, a Pesquisa Nacional do Aborto, de 2016, mostra que, das mulheres que abortam no Brasil, 25% são evangélicas e 56% são católicas.

    Recado final, especialmente para nossos Padres e Pastores.

    Nós somos também a Igreja de Deus. Já pecamos e pecaremos. Mas aquelas que eventualmente realizaram o aborto e se arrependeram com sinceridade e pediram perdão aos pés de Cristo, receberam o milagre da remissão dos pecados e assumiram o compromisso de não voltar a pecar.

    Essas filhas de Deus correspondem, como dissemos acima, a 81% das mulheres que realizam aborto no Brasil. Uma realidade muito diferente daquela que habita o imaginário dos homens sobre mulheres que abortam. Um número expressivo demais para ignorar. Sobretudo, UM NÚMERO EXPRESSIVO DEMAIS PARA ENCARCERAR. As mulheres são, como Padres e Pastores sabem, aquelas que mantêm viva a chama de Cristo em seus lares, aquelas que mantêm em suas casas a tradição de frequentar a Igreja.Mulheres que abortam são também mães! 

    Encarcerá-las significa privar seus filhos vivos do convívio com sua mãe. Significa privar um lar cristão daquela que exerce a liderança religiosa na família. Pela Confissão, vocês as conhecem. Conhecem seus nomes, seus filhos, suas famílias. 

    São essas mulheres, por Deus perdoadas, que vocês pretendem encarcerar por até vinte anos? É isso que o apoio ao PL 1904/2024 significa.

    Num Estado Laico, a Bíblia e a Constituição convivem em harmonia. 

    Num país em que 800 mil abortos ocorrem todo ano, é necessário que Padres e Pastores preocupem-se menos em legislar, e mais em evangelizar, sobretudo aos homens.

     

    * Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.

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