TV 247 logo
      Paulo Calmon Nogueira da Gama avatar

      Paulo Calmon Nogueira da Gama

      Mestre em Teoria do Estado e Direito Constitucional pela PUC-Rio

      7 artigos

      HOME > blog

      Crimes imprescritíveis são inanistiáveis

      À luz da CR/88, todo crime imprescritível é também inanistiável, mas nem todo crime inanistiável é imprescritível

      Ato pró-anistia aos golpistas do 8 de Janeiro em Copacabana, Rio de Janeiro-RJ - 17/03/2025 (Foto: Reuters)

      SPOILER

      Com o destaque que se vem dando ao chamado “PL da Anistia”, em trâmite na Câmara dos Deputados, pululam variadas discussões na mídia, boa parte delas distorcidas, apaixonadas e, de regra, pouco técnicas. 

      E não se ouve falar do óbvio: a imprescritibilidade carimbada constitucionalmente a um tipo criminal revela-se como conteúdo material amplo e continente, em termos de vedação à extinção da punibilidade do agente que o pratica. Ela pressupõe a insusceptibilidade à anistia, à graça, ao indulto ou outra forma de perdão qualquer.  

      E mais que isso.

      Impede até mesmo que uma lei nova descriminalize condutas que o Constituinte originário reputou imprescritivelmente criminosas (retroatividade benigna).

      Ou seja, quando o Constituinte originário deliberou petrificar cláusula que arrola algumas espécies delitivas como dotada de punibilidade “eterna” (imprescritíveis), não remanesce campo algum ao legislador – nem mesmo ao constituinte derivado, tampouco em deliberação plebiscitária – espaço para drible ou mitigação dessa punibilidade. A revisão desse carimbo atributivo somente pode ser feita por nova ordem constitucional, através de nova assembleia nacional constituinte.

      CONFUSÃO INDEVIDA DOS ATRIBUTOS 

      Ao contrário de alguns pretensiosos malabarismos hermenêuticos que têm sido colocados, não se trata de complexa construção “lógica” ou de profunda interpretação do “espírito constitucional” o óbice existente para se perdoar (via anistia, graça ou indulto) condutas criminais tidas por imprescritíveis pela Constituição da República de 1988. 

      A questão é técnica, básica e direta: a vedação à anistia, à graça (ou ao indulto) está indissociavelmente contida na noção de imprescritibilidade criminal.  

      Os três incisos do artigo 5º que se relacionam ao tema estão assim colocados:

      “(...) 

      XLII - a prática do racismo constitui crime inafiançável e imprescritível, sujeito à pena de reclusão, nos termos da lei;

      XLIII - a lei considerará crimes inafiançáveis e insuscetíveis de graça ou anistia a prática da tortura, o tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins, o terrorismo e os definidos como crimes hediondos, por eles respondendo os mandantes, os executores e os que, podendo evitá-los, se omitirem; 

      XLIV - constitui crime inafiançável e imprescritível a ação de grupos armados, civis ou militares, contra a ordem constitucional e o Estado Democrático (...)”.

      Os mais açodados podem cogitar que a “imprescritibilidade” e a “insusceptibilidade de graça ou anistia” são todos atributos independentes, e, juntamente com a “inafiançabilidade”, teriam o mesmo “status” jurídico, já que previstos na mesma topografia constitucional e emparelhados em sequências de adjetivações.

      Nada mais falso.

      De início, ao contrário dos outros dois, a inafiançabilidade não tem repercussão em direito material, ou seja, não reflete na punibilidade do agente. Tem apenas repercussão “processual”, meramente instrumental, podendo repercutir negativamente na possibilidade ou não de responder ao processo em liberdade, nos casos em que presentes os pressupostos da prisão cautelar. O alcance prático, inclusive, é sobremodo limitado: não estando presentes os pressupostos e fundamentos da prisão cautelar, o agente responderá ao processo em liberdade, independentemente de fiança(bilidade).

      Mas esse perfilamento de atributos constitucionais, por si só, já alimenta a confusão feita por mídia e leigos. Fiança e prescrição ou perdão são “assuntos” jurídicos diferentes. Inafiançabilidade, ao contrário dos demais atributos vedatórios, em nada interfere na punibilidade do agente.

      Já imprescritibilidade e inanistiabilidade (e insusceptibilidade de graça ou indulto) guardam entre si relação de continente e conteúdo.

      Observe-se que aqui se está a tratar da imprescritibilidade constitucional e não do tratamento infraconstitucional dado ao instituto da prescrição. 

      A forma negativa do atributo constitucional imprescritibilidade – sua entronização na ideia do “eterno” – é continente de várias vedações “menores” ou “parciais”; já a forma positiva do instituto legal – prescritibilidade – a coloca ao lado de várias outras formas extintivas de punibilidade (decadência, perdão, lei nova descriminalizante etc).

      Isso tudo para dizer que, do ponto de vista constitucional, a inanistiabilidade está contida na ideia de imprescritibilidade constitucional. A inanistiabilidade é um “minus” em relação a imprescritibilidade. 

      Numa frase: à luz da CR/88, todo crime imprescritível é também inanistiável (p. ex., racismo), mas nem todo crime inanistiável é imprescritível (ex., tráfico de drogas).

      O Min. Toffoli, no julgamento que deu pela invalidação do decreto presidencial que indultava o ex-deputado Daniel Silveira (ADPF 967/DF), chegou perto:

      “(...) se nem mesmo o decurso do tempo [imprescritibilidade] não é capaz de apagar, de tornar inútil ou desnecessária, a punição por esses crimes, dada a extrema relevância da preservação da ordem constitucional e do próprio estado democrático de direito, visto que esses são pressupostos inarredáveis, condições de existência, ou, ainda, as razões de ser do próprio Estado enquanto tal, bem como, em última análise, também do poder soberano de indulgência, de clemência, de perdão conferido ao chefe do Poder Executivo, tenho muita dificuldade de enxergar, nesse contexto, a possibilidade de aplicação do perdão constitucional aos crimes contra a ordem constitucional e o estado democrático de direito. Dito de outro modo, não vislumbro coerência interna em ordenamento jurídico-constitucional que, a par de impedir a prescrição de crimes contra a ordem constitucional e o estado democrático de direito, possibilita o perdão constitucional, a clementia principis, aos que forem condenados por tais crimes. Pergunto: que interesse público haveria em perdoar aquele que foi devidamente condenado por atentar contra a própria existência do estado democrático, de suas instituições e institutos mais caros?”

      A conclusão da relação continência/conteúdo entre esses institutos constitucionais vadatórios, volto a dizer, não se extrai de alguma suposta “construção hermenêutica”, ou de exegese sofisticada quanto ao “espírito constitucional”, nem mesmo de mera “coerência interna do ordenamento”. É conclusão direta, óbvia, para não dizer técnico-gramatical. 

      Mais que isso. A redação dos três incisos citados é fruto de opção consciente e deliberada do constituinte quanto à ideia central aqui colocada: a imprescritibilidade criminal, embora vá além, açambarca a impossibilidade de perdões legais ou judiciais.

      Para tanto, vale investigar a fase de discussão travada na Assembleia Nacional Constituinte, sua “occasio”, o contexto que levou em especial à positivação dos três incisos acima citados.

      Em 2013, a Câmara dos Deputados editou a obra eletrônica “A construção do artigo 5º da Constituição de 1988” (Edições Câmara, 2013, Série obras comemorativas n. 9). Com quase duas mil páginas, ali é possível ter uma ideia de como o texto veio se aperfeiçoando até sua forma final, na esteira de centenas de sugestões de redações, propostas de emendas etc.  

      Tem-se ali bem evidenciado que mesmo os constituintes integrantes das comissões proponentes não detinham inicialmente apuro ou preocupação mais minuciosa quanto ao entendimento técnico relacionado a cláusulas vedatórias a favores penais. Várias propostas enfileiravam e baralhavam as vedações de naturezas ou graus distintos; outras se referiam equivocadamente a institutos diferentes como se fossem sinônimos...

      E assim, como de costume, o Texto Constitucional ao longo das discussões foi se aperfeiçoando, adotando critérios, criando parâmetros, apurando técnicas de nomenclatura.

      Daquele enorme compilado eletrônico é possível obter boa noção, mesmo num sobrevoo geral, de como se deu a evolução textual. 

      E há pontos que – ilustrativamente – chamam a atenção.  

      Por exemplo, em sua página 1034, há o registro da emenda supressiva 10644 da dep. Sadie Hauache (PFL/AM), em que a autora sustenta ser ilógico situar a tortura como crime imprescritível (consoante constava da proposta inicial), ante a consideração de que eventual homicídio a ela conectado não o seria. Embora não encampada a ideia de supressão completa, a proposta recebeu a seguinte conclusão no parecer de relatoria: “Parece-nos, contudo que podemos registrar no texto constitucional que a lei punirá a tortura como crime inafiançável e insuscetível de graça ou anistia” (op. e p. cits). 

      Isso evidencia que a relatoria responsável pelo tema veio de refinar a nomenclatura constitucional, cônscia de que as outras clausulas vedatórias de extinção de punibilidade eram mais restritas e “leves” do que a vigorosa imprescritibilidade, que, afinal, a todas englobava e com sobras.

      AS PALAVRAS TÊM SIGNIFICADO

      Havendo sujeito punível (estando vivo o agente dotado de imputabilidade penal), é vedada a extinção da punibilidade a qualquer tempo dos crimes dos incisos XLII (racismo) e XLIV (ação de grupos armados contra a ordem constitucional e o Estado Democrático), tais como postos no artigo 5º da Constituição, normas estabelecidas como cláusulas pétreas (artigo 60, §4º, IV). 

      A imprescritibilidade, que significa a possibilidade de persecução estatal se dar ao longo da “eternidade” da vigente ordem constitucional, por isso mesmo pressupõe a vedação a qualquer espécie de perdão ou mesmo de descriminalização da conduta pela via legal, sob pena de a Constituição ficar submetida à Lei, e não o contrário, subvertendo toda hierarquia do ordenamento jurídico-constitucional.  

      As palavras têm significado. E seu significado tem força. 

      Simples assim.

      * Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.

      ❗ Se você tem algum posicionamento a acrescentar nesta matéria ou alguma correção a fazer, entre em contato com redacao@brasil247.com.br.

      ✅ Receba as notícias do Brasil 247 e da TV 247 no Telegram do 247 e no canal do 247 no WhatsApp.

      iBest: 247 é o melhor canal de política do Brasil no voto popular

      Assine o 247, apoie por Pix, inscreva-se na TV 247, no canal Cortes 247 e assista: