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    Luis Pellegrini

    Luís Pellegrini é jornalista e editor da revista Oásis

    14 artigos

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    De volta à barbárie. A escolha será nossa

    "É fato que a barbárie, em suas várias formas contemporâneas, ameaça a civilidade humana e a democracia"

    Elon Musk faz gesto nazista durante festividade da posse de Donald Trump na presidência dos EUA - 20/01/2025 (Foto: REUTERS/Mike Segar)

    Quando o tema da conversa é a forma como a sociedade é organizada e governada, alguns duvidam que estejamos regredindo perigosamente em direção à barbárie, em detrimento da democracia.

    Barbárie é um estado de desordem, violência ou falta de civilização, onde prevalece a lei do mais forte, sem regras claras ou respeito aos direitos humanos. Muitas vezes, está associada à brutalidade, à ausência de instituições e ao desprezo pela vida e pela dignidade humana.

    Democracia é um sistema de governo baseado na participação popular, no respeito às leis, na liberdade de expressão e nos direitos individuais. Envolve instituições sólidas que garantem o equilíbrio de poderes, eleições justas e respeito à diversidade de opiniões.

    Resumindo: a barbárie é a ausência de regras civilizadas, enquanto a democracia é um sistema que organiza a sociedade de forma mais justa e participativa.

    E para ser justo, não tenho como afirmar que, neste momento, no Brasil e no mundo, exista uma total derrocada dos valores e ideais da democracia, e nem dos instrumentos e ferramentas que ela usa para fazer valer a sua força. Prova disso é a denúncia da Procuradoria Geral da República que, com argumentação robusta, acaba de denunciar o ex-Presidente Bolsonaro et caterva de uma longa lista de crimes. Se examinarmos com atenção os itens dessa mesma lista, perceberemos que todos eles fazem parte do rol nefasto de desmandos e atrocidades associados à barbárie. Golpe de Estado, rasgar a Constituição em proveito próprio, planejar assassinatos de autoridades legalmente constituídas, mentir deslavadamente, organizar atos terroristas visando a destruição física e ideológica dos Três Poderes constituídos, nada disso faz parte do universo da Democracia. São atos bárbaros que caracterizam um estado de barbárie. 

    No entanto, estivemos perigosamente perto, muito mais perto do que imaginávamos, de ver nosso país e nossas vidas novamente mergulhados no terror de uma ditadura autocrata.

    Muitos, hoje, em todo o mundo, e não apenas no Brasil, compartilham dessa séria preocupação em relação à segurança da Democracia. Inclusive cabeças pensantes militares. 

    Há cerca de duas décadas, em Roma, assisti na televisão italiana uma entrevista com o então Chefe do Estado Maior das Forças Armadas da Grã-Bretanha. Ele falava sobre o possível retorno da maior parte do mundo à barbárie, e seus prognósticos eram bem sombrios. Aquele general de não sei quantas estrelas, cujo nome não me lembro, acreditava – e afirmava em alto e bom som -  que, até a metade deste século 21, toda a África regrediria a um estado muito primitivo de organização social, política, sanitária, cívica e cultural - à barbárie, enfim. O mesmo para toda a América Latina, da fronteira norte do México até os ermos da Patagônia. No norte do continente, Estados Unidos e Canadá, unificados, construiriam uma gigantesca muralha feita de ferro, fogo e tecnologias avançadas para se manterem isolados do resto do mundo, em relativo conforto e segurança. Do outro lado do Atlântico a Europa faria praticamente o mesmo, para impedir a entrada de hordas de milhões de desvalidos proveniente da África, das regiões do Leste europeu e de outros países vitimados por catástrofes naturais e pelo surto avassalador de novas formas de barbárie. Na Ásia inteira, o General achava que só o Japão teria chances de se autopreservar. Perdidas na imensidão do Pacífico, Austrália e Nova Zelândia seriam as áreas com maiores possibilidades de escapar à praga mundial da neo barbárie.

    O repórter italiano então perguntou: Há chances de evitarmos isso? “Sim, chances remotas, mas elas existem. Dependerão da nossa capacidade de enfrentarmos com coragem e decisão os grandes dilemas que já hoje são bem visíveis: injustiça e desequilíbrios sociais, exploração insustentável dos recursos ambientais e planetários, líderes planetários cada vez mais incultos e incompetentes mas ávidos de poder autocrata, corrupção estrutural mais ou menos generalizada e em nível mundial, perda acelerada por parte das populações das noções de civilidade, corrosão das escalas de valores éticos, etc.” O general inglês evidentemente se referia a todos esses atributos que caracterizam a barbárie, hoje cada vez mais fortes e valorizados, em detrimento dos valores tão duramente conquistados da democracia.  

    Vinte anos depois, no ano passado, foi a vez de um outro Chefe do Estado Maior Britânico, General Patrick Sanders – que serviu no posto de 13 de junho de 2022 a 15 de junho de 2024 – fazer declarações impactantes sobre a necessidade de preparação para possíveis conflitos futuros. Falando ao jornalista italiano Antonello Guerrera, no jornal La Repubblica de 24/01/2024, ele alertou que o Reino Unido deveria estar pronto para enfrentar uma guerra terrestre contra a Rússia, destacando que a situação global está se tornando cada vez mais instável. Sanders enfatizou que o país precisa recrutar e treinar um exército de cidadãos prontos para a batalha, e sugeriu que estamos em um período pré-guerra. Essas declarações repercutiram em todo o mundo, refletindo uma preocupação crescente com a segurança e a estabilidade global, e a necessidade – segundo o militar britânico - de se estar preparado para evitar um retorno à barbárie através da força militar e da mobilização.

    Agora, há poucos meses, o novo e atual Chefe do Estado Maior Britânico, General Roland Walker, engrossa o caldo ao declarar a BBC que: “O Reino Unido precisa estar preparado para entrar em guerra dentro de três anos”. Não, não se trata de um soldado qualquer: trata-se de um general que ocupa hoje o mais alto cargo na hierarquia militar do Reino Unido. Na ocasião, ele advertiu contra toda uma lista de ameaças que pairam sobre aquilo que ele chama de “um mundo crescentemente volátil”. Walker concluiu afirmando, como não poderia deixar de fazer, que a guerra não era totalmente inevitável, e que “as Forças Armadas britânicas têm apenas o tempo suficiente” para se preparar de modo a evitar o conflito! Providência central para tanto seria dobrar o poder de combate dessas Forças até 2027 e triplicá-lo até o final desta década.  

    Nas falas desses militares britânicos – que por sinal parecem desenvolver, cada um deles, o mesmo discurso do seu antecessor – está sempre implícito o dilema “Democracia ou Barbárie”. A questão é recorrente em quase todos os debates políticos e culturais. A ideia central é que a sociedade pode estar em um ponto de inflexão onde deverá escolher entre manter os valores democráticos ou sucumbir a formas de autoritarismo e violência.

    É fato que a barbárie, em suas várias formas contemporâneas, ameaça a civilidade humana e a democracia. Autoritarismos, fundamentalismos, movimentos políticos extremistas e intolerâncias são algumas das manifestações dessa barbárie que podem – e em muitos casos já o está fazendo - substituir o diálogo e a política democrática por ódio e violência e suas consequentes práticas autoritárias.

    A barbárie é uma questão crucial de nosso tempo. Democracia ou barbárie parece ser o dilema que paira sobre nossas vidas. A barbárie em suas variações contemporâneas nos ameaça a todo momento: autoritarismos, neoliberalismos, fundamentalismos, opressões, neofascismos, intolerâncias, monoculturas, discriminações, explorações, preconceitos etc. O risco da barbárie emerge como perigo para a civilidade humana, pois ela interdita conversas, diálogos, liberdades, disputas político-culturais, próprias do viver democrático e introduz ódio e violências, simbólicas e físicas, em substituição à política, enquanto busca consensos provisórios, por meio de conflitos legitimados por regras do jogo acordadas de modo pactuado. Este é o xadrez que se joga neste momento na questão palestina e na Ucrânia.

    Hoje, passei na manhã pela Rua Amaral Gurgel, sob o Minhocão, zona central de São Paulo. Trânsito muito intenso e lento: três caminhões da Prefeitura parados no acostamento obrigavam os carros se enfurnarem em uma única pista. Calor de rachar. No canteiro central, um pequeno batalhão de uns vinte trabalhadores uniformizados – e protegidos por alguns policiais armados - procedia a uma “faxina geral”, recolhendo os pertences da multidão de moradores de rua que ali se aglomera sob a proteção da via expressa lá no alto. Levavam tudo para as caçambas dos caminhões: móveis quebrados, colchões e cobertores molhados pela chuva e as enxurradas, pilhas enormes de caixas de papelão desmontadas espalhados em toda a parte. Os moradores se juntavam em grupos perto do que foram suas casinhas de papel e plástico. Entre eles gente de todo tipo, jovens, idosos, mulheres, crianças.

    Atendendo a alguma instrução superior, os funcionários não retiravam alguns poucos pertences essenciais, umas trouxas de roupa, cobertores ainda secos, baldes de água limpa, pacotes de comida. Segundos antes de manobrar para entrar na pista única, tive a visão final que a ninguém recomendo ver: uma pequena mesa de plástico vermelho, dessas que a gente vê nos botequins baratos. Sobre ela, duas sacolas com alimentos, uma penca de bananas, umas três quentinhas ainda fechadas de alumínio e, bem no centro, a cereja do bolo: uma lata de leite em pó Ninho, com seu chamativo rótulo amarelo canário. Ao lado dela, uma mamadeira vazia.

    E alguns acham que a barbárie ainda não chegou...

    * Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.

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