Democracia e Desenvolvimento Econômico: qual a relação?
"A permanecer essa estrutura de atividades econômicas, o retrocesso democrático no Brasil será inevitável", diz José Luis Oreiro
Quando olhamos para os países de renda per-capita alta (Estados Unidos, Canadá, Europa Ocidental[1], Austrália, Nova Zelândia, Japão e Coréia do Sul) notamos que tais países tem notáveis semelhanças no que se refere à estrutura de sua atividade econômica e à forma de organização política. No lado econômico, as economias desses países são altamente diversificadas, com alto nível de complexidade econômica[2] e distribuição de renda relativamente equitativa, sendo o crescimento econômico puxado por setores nos quais prevalecem retornos crescentes de escala, concorrência imperfeita - e, com ela, a capacidade das firmas de determinarem os preços dos seus produtos nos mercados internacionais, ao invés de tomá-los como um dado - e rápido progresso tecnológico. Nessas economias, o progresso tecnológico se materializa na forma de lucros e salários mais elevados, criando-se uma ampla classe média, o que permite o crescimento contínuo dos mercados e a criação de um círculo virtuoso de ganhos de produtividade devido aos retornos crescentes de escala e aumento da renda e do tamanho dos mercados. No lado político, esses países se caracterizam por terem um regime político que pode ser denominado de democracia liberal na qual prevalece: (a) a alternância do poder entre os partidos políticos; (b) a realização de eleições livres e periódicas para os cargos nos poderes executivo e legislativo; (c) a liberdade de pensamento, associação e religião e (d) o Estado Democrático de Direito baseado no “Império da Lei” e garantidor dos direitos e garantias fundamentais do ser humano, tal como entendido pela Declaração Universal dos Direitos Humanos, datada de 1948. Nesse grupo de 21 países de renda alta, temos 12 monarquias parlamentaristas e 9 repúblicas.
A ligação entre “democracia” e “desenvolvimento” já havia sido notada por vários pensadores nos últimos 400 anos. Com efeito, o estadista, político e escritor francês Alexis de Toqueville escreveu em 1855 que “(...) não sei se alguém é capaz de citar uma única nação manufatureira e comercial, desde os Tírios até os florentinos e os ingleses – que também não tenha sido livre. Há, portanto, uma ligação estreita, e uma relação necessária entre essas duas coisas: liberdade e indústria” (Apud Reinert, 2016).
Os países que hoje estão no clube seleto dos países de renda alta adotaram, em algum momento de sua história, políticas econômicas que tinham por objetivo fomentar as atividades sujeitas a retornos crescentes de escala[3] que produziam bens diferenciados para venda nos mercados internacionais de forma a obter uma “renda de monopólio”, a qual permitia o aumento simultâneo tanto dos salários como dos lucros. A manutenção dessa renda de monopólio, contudo, demandava a realização de inovações periódicas de produto como forma de impedir que a difusão tecnológica entre os demais países do mundo levasse as empresas dos países de renda alta a reduzir os preços de seus produtos, ao nível compatível com a concorrência perfeita, tal como ocorre no caso das commoditiesagrícolas e minerais. Está claro que a atividade econômica que combina retornos crescentes de escala, concorrência imperfeita e inovação de produto é a atividade manufatureira associada, nos dias de hoje, aos serviços de alta intensidade tecnológica, os quais são complementares à produção industrial. Dessa forma, a democracia liberal é decorrência direta, ainda que defasada, da Revolução Industrial.
A experiência histórica amplamente catalogada no livro de Reinert (2016) parece apontar para que a relação de causalidade entre democracia e desenvolvimento econômico se dá do desenvolvimento para a democracia, e não o contrário. A história das cidades estado italianas e da República Holandesa deixam bem clara essa relação. Nas palavras de Reinert: “Os primeiros Estados ricos, com algum princípio normativo republicano, eram frequentemente ilhas, como Veneza, ou países marítimos com poucas terras agricultáveis, como Gênova e a República Holandesa. Na falta dessas terras não se desenvolveu uma estrutura feudal. Surgiu uma estrutura econômica mais diversificada, que incluía atividades sujeitas a rendimentos crescentes. Isso faz de Florença – que tradicionalmente possuía uma importante classe latifundiária – um caso muito interessante. Lá as corporazioni(Guildas) e os burgueses lutavam pelo poder, mas desde muito cedo (nos séculos XII e XIII) eles proibiram as famílias que possuíam terras circunvizinhas de participar da política (...) Democracias antigas foram estados onde classes de artesãos e industriais exerceram influência política sobre a nobreza” (Reinert, 2016, pp.293-294).
Essas considerações nos remetem ao caso Brasileiro. Apesar do negacionismo da desindustrialização prevalecente entre 2005 e 2012, não resta mais dúvida no debate econômico brasileiro que o país passou por um rápido e profundo processo de desindustrialização prematura (Rodrik, 2016). Contudo, são poucos os que enxergam a relação desse processo com a ascensão dos movimentos de extrema-direita no Brasil a partir de 2013, a qual culminou com a eleição de Jair Bolsonaro. Apesar dos resultados econômicos e sociais catastróficos do governo Bolsonaro; parte considerável, se não majoritária, dos empresários brasileiros parece satisfeita com o atual governo. As críticas são pontuais, restritas a “falta de boas maneiras” por parte do Presidente da República. O fato é que, desde o início dos anos 1990, o Brasil tem abandonado as atividades sujeitas a retornos crescentes de escala, concorrência imperfeita e inovação de produto em prol das atividades com retornos decrescentes de escala, concorrência perfeita e inovação de processo, ou seja, o país trocou a indústria de transformação pelo agronegócio. Já os serviços de alto intensidade tecnológica associados à indústria não se desenvolveram no Brasil devido ao baixo investimento em educação e em ciência e tecnologia. As atividades sujeitas a retornos decrescentes de escala empoderam uma classe de “empresários” que se assemelham mais à nobreza feudal do que à burguesia industrial e comercial do Renascimento e da Revolução Industrial. A permanecer essa estrutura de atividades econômicas, o retrocesso democrático no Brasil será inevitável, ainda que a extrema-direita sofra um revés nas eleições de 2022.
Referências
Reinert, E. (2022). Como os países ricos ficaram ricos ... e porque os países pobres continuam pobres. Contraponto: Rio de Janeiro.
Rodrik, D. (2016). “Premature deindustrialization”. Journal of Economic Growth, 21(1), pp. 1-33.
[1] Alemanha, França, Itália, Reino Unido, Holanda, Bélgica, Luxemburgo, Noruega, Suécia, Dinamarca, Finlândia, Espanha, Portugal, Áustria e Irlanda. [2] Sugiro o leitor interessado consultar o Atlas de Complexidade Econômica no sítio The Atlas of Economic Complexity (harvard.edu). [3] Aqui acabe uma observação com respeito ao caso Australiano. A Austrália, assim como a nova Zelândia, é citada muitas vezes como um sucesso “agro”, ou seja, de economia baseada num setor sujeito a retornos decrescentes de escala. No entanto, como ressalta Reinert (2016): “o resto da Europa e os países com grandes populações de imigrantes europeus – Estados Unidos, Canadá, Austrália, Nova Zelândia e África do Sul – seguiram a mesma política que a Inglaterra seguiu desde o final do século XV, adotando uma proteção tarifária relativamente alta para incentivar a industrialização” (p.105)
* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.
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