É a ideologia, estúpido
Extrema direita avança pela disputa ideológica enquanto a esquerda insiste na centralidade da economia e subestima o embate político
“A crise constitui sempre o ponto de partida de grandes investimentos novos e forma assim, do ponto de vista de toda a sociedade, com maior ou menor amplitude, nova base material para o novo ciclo de rotações” (Marx – O Capital – Vol. III).
As crises de superprodução de capital são eventos recorrentes no tempo. Algumas ocorrem em ciclos curtos; outras, em ciclos longos e catastróficos. São descritas como ciclos ou ondas e conhecidas como “ondas de Kondratiev”, em referência à tese do economista soviético Nikolai Kondratiev, um dos pais da NEP (Nova Economia Política). É no auge do ciclo que nasce a crise — ao contrário do que muitos imaginam. Também não existe “crise terminal” nem “crise permanente”; aliás, nada é mais não marxista do que esses dois conceitos.
A importância de acompanhar os ciclos e as ondas reside no fato de que, quando as crises explodem, abre-se a possibilidade de ruptura do sistema — o tempo da revolução. Por outro lado, as políticas anticrise funcionam como gatilhos para preservar o sistema e evitar desastres, sempre transferindo para os trabalhadores os efeitos danosos da crise. Nessas políticas de contenção, o Estado é utilizado com maior intensidade pelo capital para manter sua taxa de lucro. Outro fenômeno gerado pelas grandes crises são as guerras e/ou o endurecimento do sistema — as formas autoritárias de controle e imposição do capital.
A supercrise de 2005 (cujo ápice foi percebido em 2008) pode parecer distante — 20 anos —, mas ocorreu “ontem”. Ela abriu a possibilidade de uma ruptura pela esquerda; no entanto, foi a extrema direita que se consolidou como força política determinante ao emergir daquela grande crise. A recomposição do capital passou pela necessidade vital de aprofundar reformas do Estado e reduzir radicalmente seu poder e sua capacidade de regular a economia.
O fim do Estado de Bem-Estar Social, iniciado nos anos 1980, teve seu maior impulso nas últimas duas décadas. O ataque às conquistas elementares dos trabalhadores e da maioria do povo foi quase dizimado, especialmente nos países centrais. Já nos países periféricos, onde o Estado de Bem-Estar nunca foi determinante, as ondas neoliberais já haviam sido impostas. Essa nova onda ultraliberal não chega a ser uma surpresa, mas seus efeitos são devastadores.
A expressão política dessa onda se manifesta na ascensão de figuras histriônicas ao poder, como Trump, Bolsonaro, Orbán, Milei e Macri, além do crescimento avassalador da extrema direita na Alemanha, França, Itália (onde é governo), Espanha, Portugal e, no Brasil, onde, mesmo com Lula na Presidência, os principais estados estão sob controle da extrema direita.
A ascensão dessas figuras ao poder abriu um novo fenômeno: a autonomia ideológica diante da economia. É certo que as condições econômicas, em regra, sustentam os governos. Contudo, o que se constata neste momento histórico é que a disputa ideológica supera amplamente os ganhos econômicos, as melhorias nas condições de vida e o próprio crescimento da economia.
Prova maior disso foi a derrota de Biden (Kamala). Mesmo com a economia em expansão, a taxa de desemprego historicamente baixa em todo seu mandato, a tentativa de golpe no Capitólio e todas as condenações judiciais de Trump, este teve uma vitória espetacular — a maior dos republicanos no século XXI.
No Brasil, Lula, Alckmin e Haddad têm feito um trabalho extraordinário de recuperação da economia e dos valores democráticos, de reconstrução dos canais de participação social e de valorização das instituições. Tudo isso depois do caos instaurado por Bolsonaro e Guedes, da tentativa de golpe. Ainda assim, percebe-se que a repercussão desse trabalho hercúleo, em tão pouco tempo, é completamente mitigada pelo poder da disputa ideológica.
Enquanto a esquerda segue empenhada em melhorar a economia, as condições sociais e o funcionamento do Estado e de suas instituições, a extrema direita atua em outra frente. Possui enorme presença na arena política, nas redes sociais e capacidade de sustentar o embate no campo da política e da ideologia, esvaziando a centralidade da economia. Aliás, nas eleições de 2022, a extrema direita quase saiu vitoriosa — mesmo com a economia em frangalhos.
O objetivo deste artigo é convidar à reflexão sobre os caminhos que cada campo político está trilhando. A esquerda trabalha com os valores das conquistas econômicas para melhorar a vida e criar sonhos, mas enfrenta um Estado em ruínas. A extrema direita aposta no enfrentamento ideológico, o que muda completamente o patamar da disputa política. Isso ajuda a explicar resultados de pesquisas e a tese de que o problema seria apenas de comunicação (também é). No entanto, o que se percebe é que falta política — ideologia — à esquerda.
Parafraseando James Carville: “é a ideologia, estúpido!".
* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.
❗ Se você tem algum posicionamento a acrescentar nesta matéria ou alguma correção a fazer, entre em contato com redacao@brasil247.com.br.
✅ Receba as notícias do Brasil 247 e da TV 247 no Telegram do 247 e no canal do 247 no WhatsApp.
iBest: 247 é o melhor canal de política do Brasil no voto popular
Assine o 247, apoie por Pix, inscreva-se na TV 247, no canal Cortes 247 e assista: