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      Ben Norton

      Jornalista independente e editor do Geopolitical Economy Report

      57 artigos

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      É por isso que as tarifas de Trump fracassarão, e ainda sairão pela culatra contra a economia dos EUA

      Políticas contraditórias prejudicarão a economia dos EUA, alimentarão a inflação e fracassarão na reindustrialização — mas beneficiarão as elites

      Donald Trump - 02/02/2025 (Foto: REUTERS/Leah Millis)

      Do Geopolitical Economy Report

      Durante o seu primeiro mandato como presidente dos Estados Unidos, Donald Trump iniciou uma guerra comercial contra a China. Em seu segundo mandato, ele expandiu essa guerra comercial para muitos países ao redor do mundo.

      Em uma cerimônia fora da Casa Branca no dia 2 de abril, que o presidente dos EUA chamou de “Dia da Libertação”, Trump anunciou novas tarifas abrangentes contra dezenas de países, incluindo pesados impostos sobre importações de parceiros comerciais importantes dos EUA: 54% sobre a China, 46% sobre o Vietnã, 25% sobre a Coreia do Sul, 24% sobre o Japão e 20% sobre a União Europeia.

      Trump afirmou falsamente que essas tarifas eram “recíprocas”, mas na verdade elas foram unilaterais. A Casa Branca calculou a sua taxa de imposto para cada país não com base nas tarifas que esses países impõem sobre produtos dos EUA, mas sim de acordo com o déficit comercial que os Estados Unidos têm com cada nação.

      Não é exatamente surpreendente que Trump tenha expandido as tarifas dos EUA. Durante a sua campanha presidencial em 2024, ele disse a apoiadores em um comício: “A palavra tarifa é a palavra mais bonita do dicionário, mais bonita do que amor, mais bonita do que respeito”.

      O que foi surpreendente nas tarifas anunciadas por Trump no dia 2 de abril foi o quão massivas e amplas elas foram. Elas terão um enorme impacto não apenas nos EUA, mas na economia global, podendo inclusive provocar uma recessão.

      Todos os países do mundo enfrentarão uma tarifa mínima de 10%. Tarifas adicionais serão aplicadas dependendo do tamanho do superávit comercial que cada país tem com os EUA.

      A forma completamente contraditória e imprecisa com que o governo Trump tentou justificar essa guerra comercial contra grande parte do planeta refletiu a estratégia mal planejada e mal concebida que a Casa Branca propôs para supostamente reviver a manufatura nos Estados Unidos, reduzir o crônico déficit comercial e criar uma nova ordem financeira internacional.

      Na realidade, as táticas tarifárias de Trump provavelmente sairão significativamente pela culatra, alimentando altas taxas de inflação e fracassando em reindustrializar os EUA, ao mesmo tempo em que incentivam países ao redor do mundo a acelerar a busca por alternativas aos Estados Unidos e ao sistema do dólar.

      A Casa Branca de Trump não entende nem a sua própria fórmula de tarifas

      Para começar, é preciso enfatizar que a alegação do governo Trump de que as tarifas dos EUA são “recíprocas” é flagrantemente falsa.

      O jornalista financeiro James Surowiecki destacou que a Casa Branca “na verdade não calculou as tarifas + barreiras não-tarifárias, como afirmou. Em vez disso, para cada país, eles simplesmente pegaram o nosso déficit comercial com aquele país e dividiram pelas exportações do país para os EUA”. Ele chamou essa metodologia de “absurdo extraordinário”.

      Em resposta, o vice-secretário de imprensa da Casa Branca, Kush Desai, criticou Surowiecki e escreveu: “Não, nós literalmente calculamos as tarifas e as barreiras não-tarifárias”. (Isso é falso, e a afirmação recebeu uma nota comunitária de correção no Twitter.)

      Desai vinculou a sua afirmação a uma declaração oficial publicada no site do Escritório do Representante de Comércio dos EUA (USTR), explicando como as taxas de tarifas foram determinadas. Essa nota argumentava que “calcular individualmente os efeitos do déficit comercial de dezenas de milhares de tarifas, políticas regulatórias, fiscais e outras em cada país é complexo, senão impossível”, e em vez disso sugeria que “seus efeitos combinados podem ser representados por uma tarifa que leve os déficits comerciais bilaterais a zero”.

      O USTR então publicou a fórmula usada para determinar a tarifa. Embora empregasse letras gregas para parecer uma matemática complexa, a fórmula era, de fato, muito simples: (exportações - importações) / (0,5 x importações).

      Quando aplicada, a fórmula permitia que a tarifa anunciada pela Casa Branca para todos os países fosse facilmente determinada e traçada numa linha reta.

      Em outras palavras, o porta-voz da Casa Branca estava errado e o jornalista Surowiecki estava certo: as tarifas do governo Trump não se basearam nas tarifas que outros países impõem aos EUA, mas sim no saldo comercial que os EUA têm com esses países.

      Ou seja, por definição, elas não são “recíprocas”; são unilaterais — e agressivas.

      Esse escândalo também mostrou que os porta-vozes da Casa Branca não entendem nem a fórmula simples usada para determinar a tarifa de Trump.

      De forma ainda mais absurda, a declaração publicada pelo Representante de Comércio dos EUA citou um artigo acadêmico que claramente não foi lido, pois ele detalhava como o comércio internacional foi benéfico para os consumidores dos EUA ao reduzir significativamente os custos de bens.

      Em janeiro, quando Trump ameaçou impor tarifas de 25% aos vizinhos dos EUA e seus dois maiores parceiros comerciais, México e Canadá, o conselho editorial do Wall Street Journal chamou isso de “a guerra comercial mais idiota da história”. Trump agora expandiu essa guerra comercial mais idiota para a maior parte do mundo.

      Tarifas de 54% sobre a China, 46% sobre o Vietnã, tarifas elevadas sobre outros grandes parceiros comerciais dos EUA

      Após o “Dia da Libertação”, os principais exportadores para os EUA enfrentarão tarifas altíssimas.

      Trump impôs à China tarifas de 54% (34% acrescidos dos 20% que já estavam em vigor). A China é o principal exportador para os EUA, tendo vendido 438,9 bilhões de dólares em mercadorias em 2024. As principais exportações chinesas incluem telefones, computadores, baterias elétricas, peças de máquinas, brinquedos e têxteis.O presidente dos EUA também mirou o Vietnã com uma tarifa impressionante de 46%. O Vietnã é o sexto maior exportador para os EUA, com 136,6 bilhões de dólares em mercadorias vendidas em 2024. As principais exportações vietnamitas incluem computadores, telefones, móveis, semicondutores, peças de máquinas, microfones e têxteis.

      A maior parte dos eletrônicos importados pelos EUA vem de economias asiáticas que foram seriamente impactadas por Trump.

      40,7% das importações de computadores pelos EUA vêm da China continental, juntamente com 27,5% do México (que pode enfrentar tarifas de 25%). Outros 15% vêm de Taiwan (que sofreu tarifa de 32% pelos EUA). Outros 9,42% vêm do Vietnã.

      A Coreia do Sul, o sétimo maior exportador para os EUA, enfrentará uma tarifa de 25%.

      O Japão, o quarto maior exportador para os EUA, será atingido com tarifa de 24%.

      A Alemanha é o quinto maior exportador para os EUA e enfrentará uma tarifa de 20%, que é a mesma taxa que Trump escolheu para a União Europeia como um todo.

      51,8% das importações de baterias elétricas pelos EUA vêm da China continental, além de 16,6% da Coreia do Sul, 6,5% do Japão, 5,39% do México, 5,17% da Alemanha e 2,72% do Vietnã.

      28,3% dos telefones importados pelos EUA vêm da China continental, juntamente com 23,1% do México, 9,35% de Taiwan e 7,54% do Vietnã. Outros 7,03% vêm da Malásia (atingida com tarifa de 24%) e 5,25% da Tailândia (que enfrentará tarifas de 36%).

      Como a taxa tarifária imposta pela administração Trump é baseada no saldo comercial de um país com os EUA, nações pequenas que exportam um pouco para os EUA, mas importam quase nada, foram atingidas com tarifas enormes.

      A Casa Branca de Trump, absurdamente, afirmou que o Camboja e o Laos têm barreiras comerciais de 97% e 95%, respectivamente, por isso enfrentarão tarifas “recíprocas” de 49% e 48%. Os EUA também acusaram Madagascar de ter barreiras comerciais de 93%, portanto enfrentará tarifas de 47%.O mais ridículo de tudo foram as alegações da Casa Branca de Trump de que a pequena nação africana de Lesoto (com uma população de pouco mais de 2 milhões) e o território francês de Saint Pierre e Miquelon (com população inferior a 6 mil) têm barreiras comerciais de 99%, e por isso foram atingidos com uma tarifa “recíproca” de 50%.

      A inflação está voltando nos EUA

      Trump frequentemente afirma falsamente que os países estrangeiros é que pagariam pelas tarifas, mas isso não é verdade. São os importadores estadunidenses que têm de arcar com os custos das tarifas, e eles frequentemente repassam esses aumentos de preços aos consumidores, o que provoca inflação. (Às vezes, a moeda de um país estrangeiro pode cair um pouco em relação ao dólar em resposta às tarifas, o que compensa ligeiramente o aumento de preço, mas não totalmente — especialmente quando as tarifas são tão altas como 40% ou 50%, pequenas mudanças na taxa de câmbio não compensam esse enorme choque de preços.)

      Mesmo antes de Trump anunciar as novas tarifas abrangentes no "Dia da Libertação", a inflação dos preços ao consumidor já estava subindo nos Estados Unidos.

      A Universidade de Michigan realiza uma pesquisa mensal estudando as expectativas de inflação nos EUA.

      Essas pesquisas mostram que as empresas estadunidenses já esperavam taxas de inflação mais altas antes do "Dia da Libertação" de Trump. Quando as empresas esperam inflação, elas aumentam os preços, alimentando a inflação.

      A pesquisa da Universidade de Michigan também demonstrou um grande aumento nas expectativas de inflação entre os consumidores dos EUA. Isso levou os consumidores a correr para comprar produtos agora, antes que esperem que os preços aumentem, o que contribui ainda mais para a inflação. (Gráficos de Joseph Politano.)

      Espera-se que os preços aumentem significativamente não apenas para bens de consumo como celulares, televisores e computadores, mas também para os alimentos. Como informou a CNBC, “CEOs dos setores alimentício e de bens de consumo dizem que as tarifas sobre uma ampla gama de países pressionarão as já reduzidas margens de lucro em uma economia onde a inflação já está elevada”.

      O café é um exemplo claro. A Associação Nacional do Café (National Coffee Association) destaca que, “como o café não pode ser cultivado na maior parte dos Estados Unidos — apenas no Havaí e em Porto Rico — mais de 99% do café consumido nos EUA precisa ser importado”. A associação aponta que os EUA importam 32% do seu café do Brasil, 20% da Colômbia, 8% do Vietnã e 7% de Honduras.

      Segundo a National Coffee Association, mais de 70% dos adultos estadunidenses bebem café ao menos uma vez por semana. Ou seja, Trump aumentou o preço de um item básico apreciado pela maioria dos estadunidenses.

      A situação é ainda mais grave com frutas e vegetais. Os Estados Unidos importam cerca de 60% das frutas frescas e 40% dos vegetais frescos vendidos no país, segundo o Departamento de Agricultura dos EUA (USDA).

      Portanto, as tarifas de Trump aumentarão significativamente o preço dos alimentos in natura nos EUA, especialmente considerando que há muitas frutas e vegetais — como, por exemplo, bananas, abacates ou mangas — que não podem ser produzidos na maioria dos estados do país.

      O fato de que as tarifas de Trump provavelmente levarão a altos níveis de inflação nos preços ao consumidor nos EUA é profundamente irônico, porque o principal motivo pelo qual Trump venceu as eleições presidenciais de 2024 foi justamente devido às altas taxas de inflação sofridas em 2022 e 2023, após a pandemia de Covid-19.

      Ao redor do mundo, a maioria dos partidos incumbentes perdeu eleições por conta dessa inflação, que foi global e foi causada em grande parte por choques nas cadeias de suprimento e pela queda na produção de bens durante os lockdowns da pandemia.

      Pesquisas indicam que o mau estado da economia foi a questão mais importante nas eleições dos EUA em 2024, e muitos eleitores associavam o presidente democrata Joe Biden e a vice-presidente Kamala Harris à inflação. Trump explorou essa insatisfação generalizada com a economia e prometeu reduzir os preços. Suas tarifas agora farão o oposto.

      Objetivos potenciais das tarifas de Trump

      Dado os efeitos negativos óbvios, há um intenso debate sobre quais seriam exatamente os objetivos de Donald Trump ao impor essas tarifas altíssimas.

      Há quatro teorias principais sobre por que Trump está impondo essas tarifas. Essas explicações potenciais não são exclusivas e podem se sobrepor:

      1. Ele quer reduzir o déficit de conta corrente dos EUA (o déficit comercial do país com o resto do mundo).  
      2. Ele quer reindustrializar os Estados Unidos.  
      3. Ele quer pressionar outros países a concordarem com um “Acordo de Mar-a-Lago”, que ajudaria os EUA a remodelar o sistema financeiro internacional (que os próprios EUA criaram) para servir ainda mais aos seus interesses.  
      4. Ele quer usar tarifas para substituir a receita do governo perdida devido a grandes cortes de impostos para os ricos e para as corporações.

      Reduzir o déficit de conta corrente dos EUA?

      Usar tarifas para tentar reduzir o déficit de conta corrente dos EUA não faz sentido, dado o papel do dólar como moeda de reserva global (tema que será abordado na próxima seção), bem como a inevitável retaliação por parte dos parceiros comerciais dos EUA.

      Se Trump acha que pode usar tarifas para reduzir a zero o déficit comercial dos EUA com cada país, claramente subestimou a capacidade dos outros países de responderem com suas próprias tarifas.

      Se os EUA quiserem reduzir o seu déficit comercial com outros países, por definição, precisam exportar mais para eles. Mas outras nações já anunciaram que responderão às tarifas unilaterais e agressivas de Trump com tarifas efetivamente recíprocas.

      Isso significa que as tarifas de Trump farão com que as exportações dos EUA para esses países diminuam, mesmo que as importações desses países pelos EUA também diminuam.

      China e União Europeia deixaram imediatamente claro que responderiam às tarifas unilaterais de Trump com as suas próprias medidas recíprocas.

      Além disso, consumidores de países alvo das ameaças tarifárias de Trump, como Canadá e França, prometeram boicotar produtos dos EUA em protesto, o que pode piorar ainda mais o déficit comercial, ou ao menos causar uma queda geral no comércio.

      Reindustrializar os Estados Unidos?

      Em seu discurso na Casa Branca, nomeando 2 de abril como "Dia da Libertação", Trump afirmou que a data “será para sempre lembrada como o dia em que a indústria estadunidense renasceu”.

      No entanto, se Trump realmente quiser reindustrializar os EUA, impor tarifas ao resto do mundo não vai magicamente conseguir isso por si só.

      Todas as economias avançadas que se industrializaram ao longo da história o fizeram com uma política industrial clara, numa campanha de modernização liderada pelo Estado, em que o governo dirigiu investimentos em infraestrutura, educação e setores-chave da manufatura; desenvolvendo capital humano, capacitando trabalhadores e fornecendo subsídios e empréstimos baratos para empresas estratégicas.

      Em vez de formular uma política industrial coerente, Trump está impondo austeridade e enfraquecendo a capacidade do Estado, misturando o reaganismo com protecionismo.

      Ao invés de investir em educação e programas de capacitação para reindustrialização, Trump está assinando ordens executivas para desmontar o Departamento de Educação.

      Trump chegou até a desmantelar a tentativa mínima de política industrial realizada pelo governo Biden, revogando a Lei de Redução da Inflação (IRA) e atacando a Lei dos Chips (CHIPS Act).

      Isso não vai reindustrializar os Estados Unidos. Na verdade, foi exatamente esse tipo de ideologia neoliberal que levou à desindustrialização da economia dos EUA.

      O setor financeiro dos EUA foi desregulado sob Ronald Reagan nos anos 1980, e depois por Bill Clinton nos anos 1990. Essa desregulamentação, somada às novas tecnologias digitais, tornou muito mais lucrativo para os capitalistas estadunidenses investir no setor financeiro, em vez da manufatura.

      O modelo de CEO de Jack Welch incentivou os executivos corporativos a inflar ações, prometendo bônus gordos para quem o fizesse.

      Em vez de investir na expansão da produção, as corporações dos EUA investiram toda a sua renda líquida na recompra de ações. Em 2014, a Bloomberg informou que, entre as 500 maiores empresas listadas nos EUA no índice S&P 500, 95% dos lucros foram usados para recomprar ações próprias e pagar dividendos aos acionistas.

      Até que o governo dos EUA mude fundamentalmente suas políticas em relação ao setor financeiro, taxe fortemente os ganhos de capital e incentive empresas a investirem na manufatura local, elas continuarão priorizando a especulação financeira em detrimento da produção tangível.

      O fato de que a indústria de private equity dos EUA está florescendo é o símbolo perfeito de como os capitalistas estadunidenses não querem criar novas empresas ou construir fábricas, pois isso é considerado arriscado e pouco lucrativo. Eles conseguem retornos muito mais altos simplesmente comprando empresas existentes, demitindo trabalhadores e desmantelando os seus ativos. Esse é o modelo de negócios dos infames "raiders corporativos" do private equity, que enriqueceram imensamente na era neoliberal.

      Em vez de tentar resolver esses problemas profundos e estruturais, Trump está fazendo exatamente o oposto: o bilionário presidente dos EUA e a dúzia de outros bilionários em sua administração estão cortando impostos para ricos e corporações, implementando austeridade e enfraquecendo o Estado. Isso não vai reindustrializar a economia.

      O papel do dólar estadunidense

      O papel do dólar dos EUA como moeda de reserva global está no centro das contradições enfrentadas pela administração Trump.

      Se o objetivo de Donald Trump com as suas tarifas é reduzir o déficit comercial que os EUA têm com o resto do mundo (ou seja, o seu déficit em conta corrente), uma das melhores formas de fazer isso seria acabar com o papel do dólar como moeda de reserva global.

      No entanto, Trump está fazendo exatamente o oposto. O objetivo do Acordo de Mar-a-Lago é salvar a dominância do dólar estadunidense criando uma nova ordem financeira internacional dominada pelos EUA.

      Trump está tão desesperado para preservar o “privilégio exorbitante” da moeda dos EUA que ameaçou aplicar tarifas de 100% sobre os membros do BRICS e sobre outros países que desdolarizem e abandonem o uso do dólar em seu comércio internacional.

      “Vamos manter o dólar dos EUA como moeda de reserva do mundo”, prometeu Trump durante sua campanha presidencial de 2024. “Muitos países estão abandonando o dólar. Eles não vão abandonar o dólar comigo. Eu direi: ‘Você abandonou o dólar, não fará negócios com os Estados Unidos, porque vamos impor uma tarifa de 100% sobre os seus produtos’”.

      Como presidente, Trump afirmou que “o BRICS está morto” por conta das suas ameaças tarifárias. “Eu disse a eles que, se quiserem brincar com o dólar, então vão ser atingidos com uma tarifa de 100%”, disse Trump em uma coletiva de imprensa na Casa Branca. “Desde que mencionei isso, o BRICS morreu”.

      Apesar das alegações falsas de Trump, o BRICS continua a se expandir rapidamente. Em janeiro, a organização liderada pelo Sul Global aceitou como novo membro a Indonésia, o quarto país mais populoso do mundo, com a sétima maior economia do planeta. Poucos dias depois, o BRICS adicionou como parceiro a Nigéria, o país mais populoso da África.

      O BRICS representa 54,6% da população mundial e 42,2% do PIB global (em PPC), em janeiro de 2025, apesar das ameaças de Trump.

      O desejo de Trump de manter a dominância do dólar ao mesmo tempo em que reduz o déficit comercial dos EUA é completamente contraditório. Uma das principais razões para esse enorme déficit é justamente o papel que os EUA desempenham na economia global como emissor da moeda de reserva internacional — essencialmente, o banqueiro do planeta.

      Por definição, o inverso do déficit em conta corrente dos EUA é o superávit em sua conta de capital.

      O que isso significa? Significa que, porque o dólar é a moeda de reserva global, outros países ao redor do mundo precisam ter acesso a dólares. Como eles conseguem esses dólares? Os EUA precisam manter um déficit comercial com esses países — caso contrário, eles não terão os dólares de que precisam para manter o dólar como moeda de reserva global.

      Isso faz parte do famoso Dilema de Triffin, debatido há mais de seis décadas.

      Empresas estrangeiras que exportam produtos para os EUA são pagas em dólares. Os EUA, essencialmente, imprimem dívida e compram esses produtos com essa dívida. Esses dólares entram nas contas bancárias dos exportadores estrangeiros. Os investidores estrangeiros então usam esses dólares para investir em ativos dos EUA, comprando ações, imóveis e títulos do Tesouro. Isso gera o superávit na conta de capital.

      Se Trump quiser acabar com o déficit em conta corrente, ele também teria que acabar com o superávit na conta de capital — o que significaria o fim do fluxo líquido de capital estrangeiro para os EUA.

      Isso seria catastrófico para Wall Street — uma das principais bases de apoio do bilionário Trump e dos outros bilionários que compõem o seu governo.Se, de alguma forma, Trump conseguisse reduzir o déficit em conta corrente dos EUA a zero, outros países não teriam os dólares de que precisam para continuar usando a moeda no comércio internacional. Mas Trump já avisou que, se esses países deixarem de usar o dólar no comércio internacional, ele os atingirá com tarifas de 100%. Isso, na prática, forçaria esses países a desdolarizarem os seus intercâmbios comerciais.

      Então, o que afinal ele quer?

      Parece que Trump não entende o básico da balança de pagamentos, razão pela qual as suas políticas contraditórias não fazem sentido algum.

      A solução real para esse problema estrutural seria a adoção de um sistema diferente, como o modelo originalmente proposto por John Maynard Keynes na conferência de Bretton Woods, em 1944.Keynes queria criar um Bancor, uma unidade de conta internacional cujo valor seria baseado em uma cesta de diferentes commodities e/ou moedas. Isso seria complementado por uma União Internacional de Compensações que ajudaria a reduzir os desequilíbrios comerciais globais, incentivando países com superávits a aumentarem as suas importações e países com déficits a estimularem as suas exportações.Isso sim seria uma solução real. Mas, em vez de fazer algo remotamente parecido, Trump e o seu suposto plano de "Acordo de Mar-a-Lago" buscam preservar a dominância do dólar estadunidense, reescrevendo as regras do sistema financeiro internacional — regras essas que os próprios EUA escreveram em primeiro lugar — e chantageando e intimidando quaisquer países que se recusem a segui-las.

      Contudo, quanto mais os EUA impõem sua vontade aos outros países, mais esses países buscam alternativas à ordem imperial liderada pelos EUA — e é exatamente isso o que tem acontecido ao longo da última década.

      Substituir impostos de renda por tarifas

      Resta, então, uma última teoria para explicar as tarifas de Trump: que elas poderiam funcionar como uma fonte alternativa de receita para o governo dos EUA.Trump declarou publicamente que gostaria de substituir os impostos de renda por tarifas. E agora parece que está tentando fazer isso por meio de tarifas massivas contra países de todo o mundo.Enquanto Trump corta impostos para os ricos e para as corporações, ele espera compensar a perda de arrecadação tributando as importações. Isso prejudicará desproporcionalmente a maioria da população, ao mesmo tempo em que beneficiará uma pequena elite rica.Essa ideia é matematicamente absurda, pois tarifas não gerariam nem de longe receita suficiente para compensar a redução nos impostos de renda — mas isso nunca foi um obstáculo para Trump.

      As tarifas são essencialmente um imposto sobre o consumo, dado que os EUA importam uma enorme quantidade de bens de consumo. Além disso, tarifas são um imposto altamente regressivo. Elas transferem o peso da tributação para os pobres e para a classe trabalhadora, que gastam uma parte muito maior de sua renda em bens de consumo baratos importados e possuem uma propensão marginal ao consumo muito mais alta.O consumo dos ricos não é significativamente impactado pelas tarifas, e eles têm uma baixa propensão marginal ao consumo. Assim, tarifas são o modo de Trump de impor um enorme imposto regressivo, transferindo a carga tributária do capital para o trabalho.O sistema de imposto de renda dos EUA já é bastante regressivo na prática. No papel, ele supostamente é progressivo, mas há inúmeras brechas legais que beneficiam os super-ricos. E graças aos cortes de impostos de Trump sobre os ricos durante o seu primeiro mandato, em 2018, as famílias bilionárias nos EUA pagaram uma alíquota de imposto menor do que a metade mais pobre da população.As tarifas serão ainda mais regressivas. O Budget Lab da Universidade de Yale publicou uma análise em resposta às tarifas do “Dia da Libertação”, anunciadas por Trump em 2 de abril, estimando:“O nível de preços decorrente de todas as tarifas de 2025 sobe em 2,3% no curto prazo, o equivalente a uma perda média de consumo de US$ 3.800 por domicílio, em dólares de 2024. As perdas anuais para os domicílios na base da distribuição de renda são de US$ 1.700”.

      Em resumo, se os supostos esforços de Trump para reindustrializar os EUA e/ou negociar um Acordo de Mar-a-Lago fracassarem, ao menos Trump e seus aliados bilionários terão os seus impostos drasticamente reduzidos, e o peso da carga tributária terá sido transferido para os estadunidenses pobres e da classe trabalhadora.Para Trump, isso já parece ser motivo mais do que suficiente para impor tarifas altíssimas.

      Traduzido e adaptado por Rubens Turkienicz

      * Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.

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