Enxurrada de racismo no Rio Grande do Sul
“O racismo desaloja a todos nós. Uns do ambiente social, outros da condição de seres humanos”, diz o colunista Ricardo Nêggo Tom
Karen Lima é uma mulher preta e moradora da periferia na zona norte de Porto Alegre. Mãe de dois filhos, uma jovem de 18 anos, e um menino autista de 8 anos de idade, ela é uma das desalojadas pela enchente no Estado. Karen concedeu uma entrevista ao programa “22 Horas” da última sexta-feira (17), onde fez graves denúncias de racismo e preconceito contra pessoas pretas e periféricas dentro de alguns abrigos destinados às vítimas das enchentes. Denúncias que dão conta de que algumas pessoas pretas estão preferindo se abrigar nos viadutos, do que serem humilhadas, colocadas sob suspeição ou receberem um tratamento menos digno do que os brancos, dentro dos locais que deveriam acolhê-las com mais afeto, nesse momento de dor e sofrimento. Chego a história de Karen através de um vídeo que circula nas redes sociais, onde um senhor branco com pinta de fazendeiro tenta reprimi-la questionado o porquê de ela estar sentada numa calçada, em meio a devastação que tomou conta do Estado.
Durante a entrevista, Karen dá mais detalhes da abordagem feita pelo tal homem, e revela que ele desferiu diversas injúrias raciais contra ela e contra “gente como ela” que, na opinião dele, se fazem de coitadinhos, mas não valem nada. E tudo isso, segundo Karen, diante dos olhos de agentes da Brigada Militar e do Corpo de Bombeiros, que nada fizeram para defendê-la ou punir o homem que praticava crime de racismo contra ela. As mesmas lágrimas de angústia e revolta que é possível ver saindo de seus olhos no momento de uma abordagem tão cruel e desumana, são vistas novamente em seus olhos durante a entrevista quando reprisou a cena. Eu confesso que antes de ouvir os relatos da cabeleireira e proprietária de um salão de beleza na Vila Farrapos, já pressentia que situações como essas iriam acontecer. Afinal, estamos falando de um dos Estados mais racistas do país, apelidado pelos pretos que lá habitam, e também por brancos que não absorvem tal ideia de superioridade racial, como “Mississipi Gaudério”, numa referência ao Estado norte-americano onde até 2016 brancos e pretos estudavam em escolas separadas, e à tradição camponesa do Estado, onde a colonização alemã teve grande influência.
Eu refleti bastante antes de escrever esta coluna, porque quase fui convencido pela narrativa de que não é momento de falarmos sobre isso. Porém, refletindo mais um pouco, entendi que não existe momento certo para falarmos sobre injustiças sociais e crimes raciais, uma vez que tais situações ferem diretamente a existência humana das vítimas. Observando a cobertura que vem sendo feita pela mídia corporativa e tradicional, me deparei com alguns detalhes que servem de recorte para percebermos o racismo que permeia e pontua a cultura gaúcha. Luciano Huck dedicou uma edição do seu programa “Domingão com Huck”, para levar artistas e personalidades nascidas no Estado, que falaram sobre a tragédia ambiental que destruía cidades e vidas. Entre esses artistas e personalidades não havia nenhum preto ou pardo. E no casting de atores da emissora tem Sheron Menezes e Flávio Bauraqui, entre outros, que são nascidos no RS. O mesmo podemos perceber no programa “Altas Horas”, do último sábado, que também dedicou uma edição especial para cantores e músicos gaúchos, e nenhum preto foi convidado para a atração.
É fácil entender que o sofrimento branco causa mais comoção, quando lembramos que, até bem pouco tempo, os negros não eram considerados humanos. Nem mesmo a Igreja, que sempre quis ser chamada de “a casa de Deus”, nunca se pronunciou a respeito dessa desumanização. Talvez, para não contradizer o próprio discurso de que os africanos não tinham alma, o que legitimava a sua escravização. Patrícia Poeta, aquela que motivou a demissão de Manoel Soares, um jornalista preto, também fez questão de apresentar o seu “Encontro” diretamente de sua cidade natal, onde também não vimos pretos em cena. E ainda houve quem criticasse o presidente Lula quando ele falou que não sabia que havia tantos pretos no “Mississipi Gaudério”. O que Lula fez foi cutucar o racismo e trazê-lo à evidência, fazendo-nos constatar que os pretos do Estado estão relegados às áreas periféricas e mais precarizadas. Quase invisíveis e inexistentes, como nos programas da Globo sobre o drama local.
Eu já escrevi nesta mesma coluna que nem todo branco é racista, mas que todo racista é um assassino em potencial. E a cada dia tenho mais certeza disso. Karen relata que o senhor que cometeu crime de racismo contra ela estava aparentemente armado. Possivelmente, esse homem poderia ter atentado contra a sua integridade física e ainda sairia como a vítima da história. Basta lembrar do caso do motoboy que foi esfaqueado por um senhor branco em Porto Alegre, e ao acionar a polícia para defendê-lo da tentativa de homicídio sofrida, foi algemado e colocado na caçamba da viatura como um bandido. Vale lembrar que o fator motivador do racismo sofrido por Karen e pelo motoboy foi o mesmo. Estarem sentados num local onde “não deveriam” estar, segundo o conceito racista de seus agressores que colocam todo preto sob suspeição e desconfiança. À medida em que escrevo este texto, sou tomado por uma certa ira ao vir à minha retina lembranças de situações semelhantes que eu vivenciei, e que todos os pretos que são minimamente conscientes também já sofreram.
No rastro das denúncias de Karen Lima, chegam outras de crimes de preconceito e xenofobia contra imigrantes haitianos e venezuelanos, como na matéria publicada pela Agência Brasil, na última quarta-feira (15), onde a presidente da Associação dos Haitianos no Brasil, Anne Milceus Bruneau, que trabalha como voluntária em um abrigo da zona norte de Porto Alegre, relata que os imigrantes não estariam recebendo o mesmo tratamento destinados aos gaúchos. Algo grave que precisa ser apurado pelo governo Federal, que agora tem na figura do Ministro Extraordinário, Paulo Pimenta, uma autoridade no auxílio à gestão da reconstrução do Estado. A preocupação aumenta ao ler uma matéria na qual o Governador Eduardo Leite diz que os Quilombos não estão recebendo a assistência devida, em função do grande número de ocorrências e da falta de pessoal para auxiliar no socorro a essas comunidades. Uma mensagem que, com base nas denúncias de Karen e de Anne, pode ser interpretada como uma negligência determinada pela prioridade racial de atendimento às vítimas.
Se todo mundo é parecido quando sente dor, como bem já cantou Roberto Frejat em “O poeta está vivo”, nem todo mundo é capaz de se humanizar diante da dor do outro. O racismo é uma praga, uma chaga sempre aberta no corpo físico e social dos pretos desse país. Quantas pessoas não devem estar passando por situações semelhantes em outros abrigos? Pessoas que já sofrem diariamente com a opressão racistas, e que agora estão ainda mais à mercê de uma estrutura social que não foi construída para nos abrigar como seres humanos, de fato. Ainda que a natureza se encarregue de mostrar que em algumas situações todos podem se igualar, sempre haverá dentro da alma dos preconceituosos um sentimento de superioridade sobre os demais. Eu, que nunca acreditei que as pessoas seriam mais fraternas após a pandemia, não estou nem um pouco surpreso com esse racismo até debaixo d’água. Uma enxurrada de preconceito, ignorância e falta de civilização que, de alguma forma, desaloja a todos nós. Uns do ambiente social, outros da condição de seres humanos.
* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.
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