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    Eric Nepomuceno

    Eric Nepomuceno é jornalista e escritor

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    Eu, clandestino no Chile de Pinochet

    O colunista Eric Nepomuceno relata a experiência em território chileno, e cita os escritores Gabriel García Márquez, da Colômbia, e Eduardo Galeano, do Uruguai

    Augusto Pinochet (Foto: Reuters)

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    No final de 1973 Gabriel García Márquez escreveu uma meticulosa reportagem contando como tinham sido os últimos dias da democracia no Chile e os últimos dias de Salvador Allende antes do golpe sangrento de Augusto Pinochet no dia onze de setembro daquele ano, devidamente levado adiante pelo governo de Ronald Reagan, com apoio de multinacionais e da ditadura brasileira da época.

    O texto seria vendido para publicações do mundo inteiro, e o dinheiro arrecadado iria para grupos defensores de direitos humanos no Chile.

    Há um dado curioso, que não faz mais que comprovar o tipo de jornalista que ele era. A reportagem descreve em minúcias aspectos de Santiago, fala da comida, menciona e descreve cafés e praças, fala até do cheiro das ruas, tudo isso com um detalhe: García Márquez jamais esteve em Santiago. Conversando com chilenos exilados depois do golpe conseguiu o que pretendía, ou seja, contar a eles como era a cidade que tinham descrito para ele.

    Terminado o texto, García Márquez teve as ideia de mandar algum escritor de gerações mais novas para, numa viagem clandestina, entrevistar Jaime Gazmuri, dirigente máximo do MAPU, Movimento de Ação Popular Unitária, principal grupo de resistência civil, ou seja, não armada, à ditadura.

    Indicou o uruguaio Eduardo Galeano para cumprir a missão, mas os chilenos o rejeitaram por razões óbvias: seria impossivel manter na clandestinidade, e ainda mais em Santiago, alguém tão conhecido.

    Galeano então me indicou. Eu vivía desde março daquele 1973 em Buenos Aires e era um joven escritor bastante conhecido, mas só na minha casa. Nem os vizinhos sabiam da minha existência.

    Houve um infinito telefonema de García Márquez, que me interrogou de maneira implacável – faltou perguntar o número do meu sapato – até me aprovar.

    Días depois recebi em meu apartamento, ao lado de Galeano, os escritores chilenos Ariel Dorfman, autor de, entre outros livros, “A morte e a donzela”, e Antonio Skármeta, que escreveu “Ardente Paciência” e outras maravilhas mais.

    Eles me passaram instruções precisas para a viagem a Santiago e como me contatar com Jaime Gazmuri e o MAPU.

    No dia seguinte fui até a embaixada do Chile em Buenos Aires e me apresentei como correspondente do conservador “O Estado de S. Paulo”, coisa que nunca fui, disse que viajaría para o Chile, e pedi uma entrevista com o general Augusto Pinochet.

    Na manhã seguinte embarquei rumo a Santiago.

    Foram cinco días únicos. Havia toque de recolher no país inteiro. A partir das cinco da tarde, quem fosse pego na rua era levado para os quartéis e delegacias que eram centros rotineiros de tortura. Não se podía nem mesmo entrar em hotéis: só quem estivesse registrado ao menos dois días antes, e pela manhã. Ninguém corria o risco de receber desconhecidos em casa: poderia ser algum infiltrado para em seguida denunciar o anfitrião.

    O cotidiano era estranhíssimo. Os restaurantes de Santiago abriam para almoço às dez e meia da manhã, e os bordéis, ao meio dia. Havia espetáculos de strip-tease nessa hora, mas a maioria dos homens estava lá não para ver as moças tirarem a roupa e sim para encontrar companheiros e trocar informações na penumbra, para não serem identificados.

    Quem se animava a chamar alguma moça para um programa lá mesmo, nos fundos, sabia: o encontro só podía durar vinte minutos.

    O pessoal do MAPU encarregado da segurança de Gazmuri avisava que dias nossos encontros na mais radical clandestinidade aconteceriam de manhã, e quando seriam de tarde.

    Minha rotina entrou então num cenário absurdo: quando eu ia encontrar Gazmuri de manhã, passava a tarde no palácio presidencial esperando a tal entrevista com Pinochet, que jamais aconteceu. Conversava com coronéis, ficava na espera, e ponto final.

    A partir do terceiro dia uma moça joven, com uniforme colegial, me procurava no hotel sempre no final da tarde, pouco antes do toque de recolher. Ela me entregava canetas Bic que não escreviam: a parte escura eram microfilmes que eu deveria levar para Buenos Aires e de lá encaminhar para Roma, onde seria realizado o Tribunal Russell para julgar o cenário chileno, organizado, entre outros, por Julio Cortázar. Foi, a propósito, quando comecei a me aproximar dele.

    No penúltimo dia da minha permanência em Santiago, e aí sim, faltando pouquíssimo para o toque de recolher, a menina apareceu com uma pilha de papéis, umas cento e vinte páginas. Explicou que não tinham conseguido microfilmar. E pediu para eu tirar aquele material do Chile.

    Lembro como fiz isso: botei no fundo da minha bagagem, uma maleta de mão, cobri de roupa usada e no dia seguinte, a caminho do aeroporto, parei numa livraria e comprei uns cinco livros elogiando o golpe, exaltando Pinochet e destroçando Allende.

    Na hora de revistar minha maleta, os fulanos da alfândega tropeçaram com aquele material que cobria as roupas e, claro, a documentação secreta. Passei batido.

    Além da entrevista com Gazmuri escrevi duas reportagens contando como eram aqueles primeiros tempos de resistência à ditadura.

    Junto com o texto soberano de García Márquez, esse material foi publicado em mais de trinta países. E meu nome foi para a lista dos “inimigos da pátria” e fui proibido de entrar no Chile.

    A ordem era contundente: se tentasse entrar, deveria ser preso de imediato. Toda uma homenagem, pensei na época.

    Gazmuri ficou clandestino ao longo de longos sete anos. Em 1980 aceitou, finalmente, se exilar. Foi para Roma, e quatro anos depois, para Buenos Aires. Em 1985 decidiu se arriscar e voltou para o Chile. Entrou para o Partido Socialista, foi senador entre 1990 e 2010, e depois virou embaixador no Brasil, no segundo governo de Michelle Bachelet.

    Eu voltei para o Chile em 1990, com meu filho Felipe, que na época tinha quinze anos. Fomos recebidos pelo escritor Poli Délano, meu fraterno amigo, e foram dias de luz para mim e de descobrimentos para o Felipe.

    Guardo no mais fundo da memória a minha primeira viagem ao Chile, em 1972, e todas as muitas que vieram depois.

    Nenhuma delas, porém, com a intensidade com que recordo aqueles cinco días de clandestinagem.

    * Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.

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