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Washington Araújo

Mestre em Cinema, psicanalista, jornalista e conferencista, é autor de 19 livros publicados em diversos países. Professor de Comunicação, Sociologia, Geopolítica e Ética, tem mais de duas décadas de experiência na Secretaria-Geral da Mesa do Senado Federal. Especialista em IA, redes sociais e cultura global, atua na reflexão crítica sobre políticas públicas e direitos humanos. Produz o Podcast 1844 no Spotify e edita o site palavrafilmada.com.

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EUA em Declínio -- A Roma do Século XXI?

Os Estados Unidos se encontram em uma encruzilhada crítica

Presidente dos EUA, Donald Trump, discursa no Departamento de Justiça, em Washington - (Foto: REUTERS/Nathan Howard)

Os Estados Unidos, outrora o farol da democracia e a superpotência incontestável do século XX, encontram-se em uma encruzilhada crítica. A discussão sobre o declínio americano, antes relegada a círculos acadêmicos e críticos marginais, ganhou força no debate público, impulsionada por análises contundentes como as do economista Richard Wolff e pelas turbulências políticas e sociais que marcaram o início do século XXI.

A ascensão de Donald Trump à presidência, longe de deter esse processo, como prometido em sua retórica nacionalista, expôs e acelerou as fissuras e contradições que corroem a estrutura do império americano. A analogia com o declínio e queda do Império Romano, popularizada por Edward Gibbon em sua obra monumental, ressurge com força, oferecendo um espelho sombrio para a trajetória dos Estados Unidos no século XXI.

Este ensaio busca aprofundar a análise dessa encruzilhada, ampliando os aspectos comparativos entre o declínio romano e o americano, explorando a demolição da "cerca de Chesterton" na era Trump, e incorporando insights de pensadores contemporâneos como Noam Chomsky e Slavoj Žižek.

A Sombra de Roma: Paralelos entre Declínio Imperial

Edward Gibbon, em "Declínio e Queda do Império Romano", descreveu um processo multifacetado e gradual, marcado por uma série de fatores interconectados que minaram a força e a estabilidade de Roma. Ao traçar paralelos entre a trajetória romana e a americana, é possível identificar semelhanças alarmantes:

» Corrupção e Degradação das Instituições: Gibbon destacou a corrupção generalizada nas instituições romanas, desde o Senado até o exército, como um fator crucial para o declínio. Nos Estados Unidos, a influência do dinheiro na política, o lobby desenfreado, a polarização partidária e a erosão da confiança nas instituições democráticas refletem uma crise de governança e legitimidade. A nomeação de juízes para a Suprema Corte com base em critérios ideológicos, a politização do Departamento de Justiça e os ataques à imprensa livre são exemplos da corrosão das normas e instituições que sustentam a democracia americana.

» Apatia Popular e Perda de Valores Cívicos: Gibbon observou uma crescente apatia entre os cidadãos romanos, que se tornaram mais preocupados com o luxo e o entretenimento do que com o bem-estar da República. Nos Estados Unidos, o consumismo desenfreado, a cultura do espetáculo, a polarização ideológica e a despolitização de amplos setores da população contribuem para uma erosão dos valores cívicos e um enfraquecimento do senso de comunidade e responsabilidade social.

» Desigualdade Social e Econômica: A crescente desigualdade entre ricos e pobres foi um fator de instabilidade social em Roma. Nos Estados Unidos, a concentração de riqueza nas mãos de uma elite cada vez menor, a estagnação dos salários da classe trabalhadora, a precarização do trabalho e a falta de mobilidade social criam um abismo crescente entre os "ganhadores" e os "perdedores" da globalização, alimentando o ressentimento e a polarização.

» Sobrecarga Militar e Extensão Imperial: Roma estendeu seu império por vastos territórios, o que exigiu um enorme esforço militar para manter o controle e defender as fronteiras. Essa sobrecarga militar, combinada com as dificuldades econômicas, enfraqueceu o império. Os Estados Unidos, com sua rede global de bases militares, seu envolvimento em conflitos em diversas partes do mundo e seus gastos militares exorbitantes, enfrentam um dilema semelhante. As derrotas militares no Vietnã, Afeganistão e Iraque, e o atual impasse na Ucrânia, evidenciam os limites do poderio militar americano e o alto custo da projeção de força.

» Invasões Externas e Pressões Migratórias: Roma enfrentou constantes invasões de povos bárbaros em suas fronteiras, o que contribuiu para a fragmentação e o colapso do império. Os Estados Unidos, embora não enfrentem invasões militares tradicionais, lidam com pressões migratórias, tensões raciais e culturais, e a ascensão de potências rivais como a China, que desafiam sua hegemonia global.

A Demolição da Cerca de Chesterton

Como observado por Richard Wolff, a retórica de Donald Trump, ao proclamar o fim do declínio americano, revela uma compreensão superficial dos processos históricos. Trump, ao atribuir os problemas do país a administrações anteriores e prometer soluções fáceis e rápidas, encenou um "teatro barato" que desvia a atenção dos verdadeiros desafios estruturais.

A negação dos problemas estruturais, como a desigualdade crescente, a estagnação da classe trabalhadora, a crise do sistema de saúde e a deterioração da infraestrutura, agrava a crise. Essa negação se manifesta na relutância dos líderes políticos em reconhecer a realidade do declínio e em propor soluções abrangentes e de longo prazo.

G.K. Chesterton, escritor e filósofo inglês, formulou o conceito da "cerca de Chesterton" para ilustrar a importância de preservar as instituições e tradições que nos trouxeram até o presente. A cerca representa as normas, valores e práticas que, embora possam não ser imediatamente compreendidas, desempenham um papel importante na manutenção da ordem e da estabilidade social.

Trump, em sua presidência, agiu como um demolidor dessa cerca. Ele ignorou as normas e tradições da política americana, atacou as instituições democráticas, desrespeitou o Estado de Direito e semeou a divisão e o caos.

» Ataque às Instituições Democráticas: Trump questionou a legitimidade das eleições, atacou a imprensa livre, interferiu no trabalho das agências de inteligência e desafiou o sistema de freios e contrapesos. Suas ações minaram a confiança nas instituições democráticas e polarizaram a sociedade americana.

» Desrespeito ao Estado de Direito: Trump demonstrou desprezo pelas leis e normas, concedendo indultos controversos a aliados políticos, obstruindo a justiça e incitando a violência. Suas ações enfraqueceram o Estado de Direito e corroeram a confiança no sistema legal.

» Polarização e Divisão: Trump explorou as divisões raciais, culturais e ideológicas da sociedade americana, semeando o ódio e a intolerância. Sua retórica divisiva alimentou o ressentimento e a polarização, tornando o diálogo e o compromisso cada vez mais difíceis.

» A demolição da cerca de Chesterton por Trump deixou um legado de instabilidade, desconfiança e divisão. A reconstrução dessa cerca, a restauração da confiança nas instituições e a promoção da unidade nacional serão os maiores desafios para a América no futuro.

A Crise da Hegemonia Econômica e o Deslocamento do Poder Global

A supremacia econômica dos Estados Unidos, que sustentou sua hegemonia global no século XX, está sendo desafiada pela ascensão de novas potências, como a China e a Índia. A ascensão dos BRICS, com um PIB combinado já superior ao do G7, reflete a mudança do eixo de poder global.

A globalização, que inicialmente beneficiou os Estados Unidos, também contribuiu para o deslocamento da produção industrial para países com mão de obra mais barata, o que resultou na perda de empregos e na estagnação dos salários da classe trabalhadora americana.

A crise financeira de 2008 expôs as fragilidades do sistema financeiro americano e abalou a confiança na capacidade dos Estados Unidos de liderar a economia global.

A Crise Social e o Aumento da Desigualdade

O declínio econômico se traduz em crise social. A desigualdade cresce a passos largos, e a classe média e os trabalhadores de baixa renda pagam o preço. O salário-mínimo federal, estagnado em 7,25 dólares por hora desde 2009, é um exemplo gritante dessa deterioração.

A crise do sistema de saúde, com milhões de americanos sem acesso a cuidados médicos adequados, e a crise da educação, com o aumento dos custos universitários e o endividamento estudantil, são outros exemplos da deterioração das condições de vida da maioria da população.

A polarização racial e cultural, a violência armada e a crise dos opioides são outros sintomas da crise social que aflige os Estados Unidos.

A Urgência de uma Mudança Real

Para evitar um colapso ainda maior, os Estados Unidos precisam abandonar a arrogância e reconhecer a necessidade de reformas estruturais. A solução não está em medidas cosméticas, mas em uma revisão profunda das instituições, no fortalecimento da democracia e na redução da desigualdade.

É preciso repensar o papel dos Estados Unidos no mundo, abandonar a política de intervenções militares e buscar uma diplomacia mais eficaz e multilateral.

É preciso investir em educação, saúde, infraestrutura e energias renováveis, criando empregos e oportunidades para todos.

É preciso reformar o sistema político, limitando a influência do dinheiro na política, fortalecendo a democracia e garantindo o direito ao voto para todos os cidadãos.

A história ensina que nenhum império é eterno. Os Estados Unidos podem seguir os passos de Roma e sucumbir aos mesmos males ou aprender com a história e tentar reverter esse ciclo. Mas o tempo está se esgotando.

A Encruzilhada e o Futuro da América

Os Estados Unidos se encontram em uma encruzilhada crítica. O declínio imperial, a sombra de Roma, a demolição da cerca de Chesterton e as crises econômica, social e política convergem para um momento de profunda incerteza. A retórica da negação, o teatro político e a falta de liderança agravam a crise. A reconstrução da confiança, a restauração das instituições e a promoção da unidade nacional serão os maiores desafios para a América no futuro. O futuro da América dependerá da capacidade de seus cidadãos e líderes de reconhecer a realidade do declínio, abandonar a arrogância, aprender com a história e promover as reformas estruturais necessárias para construir um futuro mais justo, próspero e sustentável. A encruzilhada é desafiadora, mas ainda há espaço para a esperança. Se a crise atual serve como um chamado para uma transformação mais profunda, que transcende as fronteiras nacionais e abraça a visão de que 'A Terra é um só país e os seres humanos seus cidadãos', conforme ensinado por Bahá'u'lláh (1817-1892), então a América, e o mundo, podem emergir mais fortes e unidos. O futuro dirá se a nação será capaz de superar seus desafios e reinventar-se para o século XXI, não apenas como uma potência, mas como um participante ativo na construção de uma civilização global mais justa e pacífica.

* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.