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    Roberto Bueno

    Professor universitário, doutor em Filosofia do Direito (UFPR) e mestre em Filosofia (Universidade Federal do Ceará / UFC)

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    Extermínio e resistência

    "Uma das valorosas respostas históricas foi dada pelos heroicos partícipes do levante do gueto de Varsóvia, que reagiram ao iminente assassinato covarde em massa impondo a sua dignidade em luta aberta como resposta", escreve o counista Roberto Bueno

    Durante a invasão nazista do Gueto de Varsóvia, moradores são aprisionados e levados a campos de concentraçao (Foto: Unknown)

    Ao redor de 400 mil pessoas compartilharam destino e espaço em quatro quilômetros quadrados da cidade de Varsóvia, aproximadamente 2,4% do território da cidade. Ao redor de 16.11.1940 o gueto de Varsóvia foi construído e logo hermeticamente fechado com muros de 3 metros de altura, cacos de vidro na parte superior e a guarda de militares com metralhadoras, reforçada pelo lado de dentro com a mobilização de guarda judia. O único sinal de liberdade e amplitude naquela antessala do inferno da capital polaca era o céu. A administração nazista atribuía aos judeus a responsabilidade por limpar e ordenar internamente os guetos sem dotá-los de recursos assim como retirar os incontáveis corpos desfalecidos caídos nas ruas com improvisadas carroças de madeira, nas quais iam sendo empilhados, desprovidos em vida de muito mais do que a roupa que lhes faltava à morte.  

    O gueto de Varsóvia dispunha de condições gerais desafiadoras até da mais fecunda imaginação ocupada da descrição do inferno. A luta pela vida era incessante, tudo sob o desafio imposto pelo tifo e a tuberculose, entre várias doenças convenientemente potencializadas em corpos deteriorados pela insuficiência calórica das rações limitadas a 184 kcal diárias, bastante abaixo das 1800 kcal destinadas aos poloneses e 2400 kcal aos alemães naquele período. A política nazista era de estimular o advento da morte, deliberadamente criando condições insuficientes para a vida humana, e neste sentido era estratégico o crítico contexto sanitário no qual proliferariam doenças mortais, algo bastante “econômico” para a consecução do extermínio em massa enquanto iam sendo enviados milhares às câmaras de gás. Enquanto o derradeiro momento não chegava, os judeus eram molestados e violentamente espancados, além de insultados e roubados à céu aberto. 

    Nos espaços de destruição do humano em todas as suas dimensões a fronteira de transição de estável funcionamento psíquico individual e coletivo para a interdição absoluta da razão é tênue, passagem esta desobstruída em qualquer geografia e momento histórico. A destruição do humano é temperada pelo vilipêndio à dignidade, pelo exacerbamento do ódio que transgride todos os parâmetros civilizacionais. Especial esforço é empregado na deterioração do humano, quando os olhos das testemunhas são apresentados à sucessão de cadáveres, em profusão, pretendendo “acostumar” ao bárbaro e, assim, minimizar o ânimo de reação. O objetivo é normalizar não apenas o desaparecimento físico, mas da própria memória do humano e de sua cultura. É rotinizado o assassinato de gente de todos os tipos e idades como se se tratasse de evento inevitável, prenunciando tempos em que o inusitado bárbaro é quem deitará as regras, e as regras da civilização já farão parte apenas de história que poucos recordarão.  

    Sob a rotina do assassinato em massa os traços da vida são desenhados com cores cinzentas, e o silêncio dos omissos marca o requiém dos que partiram, patrocinado pela inenarrável malignidade que motiva os perpetradores. No gueto de Varsóvia, assim como nos demais espaços abertos em que populações inteiras são aprisionadas, não resta mais do que almas trágicas, mesmo quando disfarçadas sob olhares interrogativos, pois a submersão no sangue dos semelhantes não subsiste indefinidamente na esfera da indiferença. Nos campos de extermínio de hoje assim como nos de ontem – a exemplo do gueto de Varsóvia – vidas são desossadas, as faces emaciadas e transfiguradas se transformam na identidade visível do horror, corpos são reduzidos à ossatura, e nada mais do que trapos os cobrem, até que deles também serão privados ao sucumbir nas ruas até que alguma viatura os recolha. O redesenho do mapa da fome no mundo é a versão atualizada do processo de sucção das últimas calorias de corpos exaustos pelos capitães do neofascismo. 

    Aquele espaço de morte em massa forjado em plena urbe polaca assim como em outras muitas outras cidades antigas e contemporâneas sob formas diversas não descuidam de isolar seus resultados, embora Varsóvia seguisse ali logo ao lado do gueto interditada pelos muros e metralhadoras, como ocorria em Auschwitz, em ambos os casos percebendo todos os vestígios das mortes em massa. Espaços de exceção legal como Auschwitz atingem centralmente a condição humana, deslocando-os do horizonte de todas as expectativas mundanas e espirituais. Nos espaços de exceção em que a regra foi abolida pelo arbítrio, a “normalidade” é a radicalização do mal em sua versão absoluta. A concretização do mal em espaços de exceção como o gueto de Varsóvia convergia com a lógica dos campos de concentração, lançando mão de impensáveis e perversos recursos que destroem a vida antes de exterminar a fisicidade do vivo. Mesmo quando fosse inaudita a máquina corrosiva do mal sendo perpetrado, ainda assim era insuficiente para abarcar a tudo e a todos, exterminar horizontalmente até o último vestígio de dignidade humana, do que foi testemunha Adam Czerniaków, engenheiro e um dos Presidentes do gueto de Varsóvia, que para evitar a decisão de enviar os seus para Treblinka optou pelo suicídio no dia 23.07.1943.  

    Tal como na literatura de Arendt em Eichmann em Jerusalém (1999, p. 136), é possível supor que Czerniaków tenha recordado o dito rabínico de que “Deixe que matem você, mas não cruze a linha”, pois ao cruzá-la pereceremos por ainda mais tempo sob o testemunho de nossa própria consciência acusadora. Mas o que responder quando inexiste a alternativa da continuidade da vida sob a acusação de nossa consciência, senão que o passo seguinte será o extermínio? Quando a vida parece já quase não apresentar opções, então, a melhor (ou mesmo a única) delas será sempre a que preserve a dignidade, ou acaso há alguma em perecer sob condições degradantes, ademais, testemunhando e/ou antevendo o extermínio dos semelhantes? Resposta objetiva foi oferecida pelos partícipes do levante do gueto de Varsóvia em 19.04.1943, quando era certa a morte ante as tropas de elite nazistas, as SS, assim como também ocorreria, proximamente, nas câmaras de gás. Havia sido dada a ordem por Heinrich Himmler para que o oficial nazista Jürgen Stroop destruísse todo o gueto de Varsóvia, para cumprir o objetivo de reduzir a população da cidade a aproximados 30% e a própria capital a um apêndice urbano germanizado para cumprir os interesses da metrópole. Stroop cumpriu as ordens assim como outros homens-besta que se repetem ao longo da história e alternam na função de destruir vidas humanas em massa. Em face da disjuntiva entre a morte miserável e humilhante nas mãos de bestas em forma humana, a escolha judia no gueto de Varsóvia foi pela morte em condições de luta pela liberdade sob o princípio da dignidade, assim como o fizeram outros valorosos povos em diversos momentos históricos quando enfrentados às múltiplas faces do mal. 

    Segundo a gramática de Ricoeur em “O mal” (1988, p. 48) “Fazer o mal é fazer sofrer alguém”, é impingir-lhe a dor, algo que o nazismo realizou em escala necroindustrial, produzindo sofrimento e torturas massivamente antes de estocar a carne humana, torná-la pó e lançá-la às nuvens para próximo da imensidão, tarefa realizada milhões de vezes pelo trágico diretor do impensável inferno de Auschwitz, Rudolf Höß. Este foi um dos operadores da potente bomba de sucção do ar que a todos atingia e exterminava ali entre cercas elétricas, faróis, fuzis, metralhadoras e cães menos animalescos do que as bestas-feras que os adestravam à sua imagem e semelhança. Höß coordenou a oclusão do espaço existencial de milhões de vidas humanas articuladamente com Eichmann, como se não houvesse espaço para dimensões do humano para além dos referenciais orientadores do nazismo assim como do neofascismo, pautados pela insanidade que desmobiliza a moralidade e desarticula os sinais da racionalidade no mundo. 

    A organização para a morte de milhões de indivíduos passou pela mesa de meticuloso planejador do extermínio do maior número possível de indivíduos, genuína linha de produção da morte: Adolf Eichmann era o seu nome. Seu metódico planejamento não sofreu solução de continuidade nem implicou crise pessoal porque era indiferente ao sentido último de seu trabalho, realizado mecanicamente simplesmente. Sob sua coordenação entre os meses de julho e setembro de 1942 foram deportados para Treblinka desde o gueto de Varsóvia a espantosa quantidade aproximada de 300 mil judeus, distribuição de corpos em vida que iniciou em 22.07.1942, alguns destes milhares enviados para destinos como Minsk, Majdaneck e Auschwitz. A maioria dos que lá desembarcaram dos trens foi assassinada no campo pouco após o teatro que envolvia a recepção dos recém-chegados para não causar tumultos, indispensável movimento de distração para que não ocorressem cenas de rebeldia coletiva ante a morte iminente, problema insuperável para a guarda dos campos.  

    Em face às dimensões da miséria que foi sendo dimensionada quando a guerra terminou, entre aqueles que o acaso permitiu sobreviver logo ecoou a vigorosa e interrogação, sem resposta, sobre onde estava Deus quando o inferno queimava milhões de corpos, levando consigo sentimentos e futuros compartilhados, criando lacunas e sofrimentos entre os que ficavam, famílias inteiras dilaceradas, algo que põe em questão a existência de Deus enquanto entidade absolutamente boa, justa e perfeita, já que o mal persiste em grau radical no território ético de sua obra maior, o ser humano, cuja demonstração de liberdade atinge os confins da miséria e da negação da própria humanidade. Pergunta que não é usualmente proposta é onde se encontram cada um dos homens críticos de Deus quando o mal impera, justo a eles a quem Ele outorga a proteção de Sua maior obra em tempos críticos em que a virtude deve sobressair, quando vidas são colocadas em risco ou exterminadas diariamente sob a luz do dia como fruto de mera opção econômica e política. 

    Quando o horror neste mundo já não era descritível por quem tomava contato com ele diretamente – a exemplo do cheiro de cadáveres nas ruas do gueto de Varsóvia e, nestes dias, em nossa memória objetiva de tanta gente que se foi – começava a fazer sentido e a ser melhor compreendida a densa queixa de Wiesel em seu “Night” (2006, p. 67) sobre Deus: “[...] who chose us among all nations to be tortured day and night, to watch as our fathers, our mothers, our brothers end up in the furnaces?” (“Quem nos escolhe entre todas as nações para ser torturados dia e noite, olhando para nossos pais, nossas mães, nossos irmãos terminarem nos fornos?”). Há perplexidade no questionamento de Wiesel (2006, p. 64-65) sobre onde estaria Deus quando até mesmo milhares de crianças foram tomadas como alvo de execuções, inclusive por enforcamento público, cujo requinte de crueldade era evidenciado pela negativa de algum carrasco a realizar a infame tarefa ou, nas fronteiras do impensável, quando a própria corda se negasse, e falhasse na missão de produzir o enforcamento da criança em face de seu escasso peso. A capacidade do nazismo e de suas atualizadas versões para a perpetração da barbárie carece de limites, assim como a dos pretensamente democratas para antever e construir diques eficientes para a sua contenção, muitos deles embriagados com a perspectiva de extrair vantagens até os últimos momentos da exceção neofascista, supondo equivocadamente dispor de força e poder suficiente para brecar um regime bárbaro quando as instituições democráticas já se encontrem em queda livre. 

    O diálogo com Wiesel propõe o questionamento sobre onde estaria Deus quando um pequeno humano agonizava pendurado levando com seu corpo à agonia de toda a humanidade. Onde estava Deus quando aquele pequeno permanecia ali naquela condição agonizante por mais de meia hora? Onde está Deus, afinal, quando este mal que tão rápido corre esvaindo o sangue de milhares e milhões de indivíduos sem que as providenciais forças do Katechon intervenham, e siga exterminando outras muitas vidas de crianças e inocentes vários, perecendo neste exato momento em que as linhas deste texto terminam de ser percorridas pela atenção do leitor? Onde está Deus quando a morte de milhares e milhões é planejada e executada em termos típicos de um renascido Eichmann, desta vez sem mobilizar trens de transporte de carga, mas igualmente por especialistas em logística? Onde esteve Deus quando milhares de vidas foram vítimas de assassinato por sufocamento planejado por civis e militares? Esta resposta não foi encontrada por Wiesel nem por gigantes como Ágnes Heller. Assumida a Sua existência, eu compartilharia a ignorância sobre o destino de Deus em momentos cruciais como estes, mas sei, como todos sabem, onde estão os homens que acusam a ausência de Deus, petrificadas testemunhas do horror e do pânico, do terror e do sangue que escorre, mas que finalmente não os poupará, consumindo-os vivos. 

    Quando a divindade se cala e grande parte da humanidade testemunha silente e paralisada a ação bárbara, então, o que fazer quando há conhecimento disseminado de que o assassinato generalizado é cotidiano e não será interrompido? O que fazer quando estamos certos de que o assassinato em série e indiscriminado recai sobre indivíduos que teriam continuado vivos não fossem as decisões dos assassinos investidos em posições de poder? O que fazer quando fardas repletas de falsas distinções de latão são utilizadas como disfarces da personalidade medíocre de assassinos descomprometidos com valores humanos, cívicos e de qualquer espécie de religiosidade, cujo pressuposto é a fraternidade e a caridade, a solidariedade e o amor ao próximo? O que fazer quando o teólogo é o sustentáculo dos assassinos em massa? O que fazer quando o genocídio é falsificado por falsos profetas ante seus crentes como desígnio divino? O que fazer quando a força dos armados é avassaladoramente superior e em condições de devastar a reação dos democratas? O que fazer quando o medo é inimigo da (re)ação e a paralisia parece ser o distintivo dos tempos? O que fazer quando os vigias já estão resolutamente posicionados? O que fazer quando as metralhadoras já têm as portas de nossas casas ao seu alcance? Uma das valorosas respostas históricas foi dada pelos heroicos partícipes do levante do gueto de Varsóvia, que reagiram ao iminente assassinato covarde em massa impondo a sua dignidade em luta aberta como resposta. A mensagem para as bestas-humanas sempre deverá ser a de que terão de suportar alto custo e risco de fracasso, resposta violenta a sua covardia que desconhece tudo que não seja a força bruta como instrumento de breque para a perpetração de sua barbárie. Quando é aberta a caixa de todos os piores males e bestas, nenhum regressa a ela de forma espontânea.  

    * Este texto é versão ampliada de publicação realizada no dia 12 de agosto de 2020 pelo Instituto Brasil-Israel. 

    * Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.

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