Fé e ciência no aborto
Toda forma de criminalizar o aborto deveria ser suprimida do ordenamento legal
A ciência não tem todas as respostas, mas é nela que se baseiam as melhores soluções para problemas técnicos e sociais. Vimos isso durante a pandemia e sabemos que é por meio do investimento no conhecimento que poderemos resolver as históricas mazelas do país. E também em questões mais polêmicas podemos ver o que a ciência diz, com todas as ressalvas de que o tecnicismo não pode suplantar a realidade social e sem a ingenuidade de que ela seria pura, uma vez que é feita por nós, humanos. É o caso do aborto.
No Estadão, o cientista Fernando Reinach apresentou uma solução científica para a questão do aborto, que pode ser lógica, mas que ainda condiciona a mulher a ditames estranhos a seu corpo e a sua decisão única de continuar ou não uma gravidez (“Vamos mudar a lei do aborto, mas para melhor”, 28/6).
Além disso, o parâmetro da idade gestacional em semanas usado para fixar o prazo de 12, 22 ou 26 semanas, conforme o critério, não leva em consideração que muitas mulheres – especialmente as meninas vítimas de estupro – não têm ciclo menstrual regular ou nem saibam quando foi a última menstruação, data a partir da qual são calculadas as semanas gestacionais. Mantendo a lei como está, ainda assim o estuprador não tem responsabilidades para com a criança que venha a nascer, caso essa seja a decisão da vítima ou, mudando a lei, que seja obrigada a dar à luz por ter passado o prazo legal.
No meu entender, toda forma de criminalizar o aborto deveria ser suprimida do ordenamento legal e veríamos ao longo do tempo se haveria corrida desenfreada à prática ou se ela se acomodaria em patamares razoáveis, tal como acontece no resto do mundo em que o aborto não é crime. Porém, enquanto predominar o preceito judaico-cristão no Parlamento, pouco se evoluirá na questão, com os evidentes e iminentes riscos de retrocesso. A fé ocupa espaço desproporcional no ordenamento jurídico, ainda mais que estamos em um estado laico.
Quando vozes com lugares de fala religiosos se pronunciam, precisamos ouvi-las para saber se estão falando de um púlpito apenas para fiéis, ou de uma bancada para a sociedade. Assim, ainda que não compartilhemos a mesma fé, concordo com tudo o que Frei Betto escreveu em seu claro e preciso artigo “Querem abortar o aborto” na Folha de S. Paulo (2/7). Ao contrário de dogmas divinos, os crimes contra a mulher são realidade, mas o Parlamento – novamente ele – prefere discutir a melhor forma de ter acesso a orçamento secreto do que legislar a saúde social.
Adilson Roberto Gonçalves, pesquisador em Campinas-SP
* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.
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