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    Fernando Horta

    Fernando Horta é historiador

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    Fui convidado para secretário de Educação

    "Tudo indo bem. Agora, quem poderia imaginar que eu seria convidado para fazer isso num governo de esquerda? Quem acreditaria?", indaga Fernando Horta

    sala de aula (Foto: REUTERS/Carla Carniel)

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    Quero dizer para vocês que fui convidado para ser secretário de Educação de Itapipoca do Sul. Essa cidade tem 10 escolas, com 100 alunos em cada escola e o salário do professor é o piso de 1697 reais. Essa cidade tem problemas sociais e econômicos de toda sorte, mas o prefeito quer que a educação seja “de primeira”.

    Eu confesso que não entendo muito de educação. Sou de uma área “técnica”, mas acredito na meritocracia e acho que a educação nesta cidade é uma bosta porque os professores fazem corpo mole. Ganham e não ensinam. Isso porque o trabalho dos professores é “ensinar” e não simplesmente “dar aula”. E como nossos “índices” são ruins, logo, os professores não fazem o seu trabalho.

    A primeira coisa que eu faço é buscar apoio em “ong’s” que são amorosamente interessadas em educação. Até nem sei o motivo, mas elas gostam muito de “ajudar”. Então escolhi a Fundação Limão. Uma fundação de um milionário aí que quer uma “melhor educação” para todos. A ideia é que os pobres possam ser melhores e os ricos melhores também, sem discriminação. Os pobres precisam ser os melhores pedreiros, serventes, pintores e garçons que podem ser e os ricos melhores advogados, médicos, engenheiros e políticos. Não é muito legal que sejam cientistas pq daí podem produzir conhecimento e isso vai incomodar o domínio tecnológico de outros países. Mas médicos e engenheiros ... ahhh isso sim. Os melhores neste serviço.

    Assim que fiz contato, essa “ong” me recebeu super bem. Eu fui conhecer o milionário, até almocei com ele. Tirei foto, recebi presentes. Perguntou por meu filho, falei que o guri queria ser milionário e – veja só – o cara é tão bom que até falou em ajudar o meu filho. A ong do Limão me mostrou todas as pesquisas que eles fazem (que eu nem entendi) e eu pude ver o “amor” pela educação. Me ofereceram “ajuda” na minha (j)estão com pessoas a serem colocadas em alguns lugares ali no governo. Mas pode ser também por licitação de empresa para “consultoria na educação”. Me deixaram bem à vontade, até porque “dinheiro não é problema” disseram.

    Me prometeram “resultados” e com isso, imaginem só, minha carreira política vai decolar.

    Nosso primeiro passo foi REDUZIR a educação. Esse negócio de literatura, filosofia, sociologia, educação física, artes (vejam só! Artes ...) é muita coisa. É muito gasto para Itapipoca e não prepara “para o mercado”. Reduzimos então para um currículo “enxuto”: português e matemática. Saber ler (e talvez até interpretar) e fazer conta. E olha que interessante, isso ajuda até na prova do IDEB que só tem – imaginem – português e matemática em provas objetivas.

    Claro que não posso demitir todos esses vagabundos da educação que ficam ensinando história, geografia e tal. O que eu fiz foi criar umas disciplinas para colocar essa gente como mão de obra barata. Vou criar “projeto de vida” e “projeto interdisciplinar” para essa gente ficar ali corrigindo prova, e ajudando no português. O que me importa, segundo a Fundação Limão, é a funcionalidade do conhecimento para o “uso prático” “na vida” dos alunos.

    Ainda assim, os alunos não aprenderam muito. Então a Fundação Limão me deu outras ideias. A primeira foi reorganizar os alunos nas escolas. Colocar turmas mais “homogêneas” com alunos com maior nota em uma turma e dar essas turmas a professores “melhores”. Essas dicas de (j)estão são fantásticas. Fui fazendo isso na surdina para não alertar os pais de que seus filhos passaram e ser “material de segunda linha” já que não contribuíam para o aumento da nota no IDEB. Professor que falava alguma coisa eu taxei de criminoso e comunista e joguei as famílias contra. Funcionou. Acabei com a oposição interna.

    Agora, de novo segundo a Fundação Limão, eu preciso INCENTIVAR os “bons professores”. Então eu criei um 14º, 15º salário a ser pago para eles CASO consigam aprovar os alunos, e caso eles forem bem nas provas do IDEB. Esses mortos de fome ganham 1700 reais por mês, e vão poder ganhar até 2500 se atingirem as metas. Não serão todos, mas sabem como é: “se um pode, qualquer um consegue”. Com a movimentação nas turmas e o “incentivo”, mais a redução do ensino eu consegui um aumento de 2 pontos na minha nota do IDEB. Isso levou Itapipoca da 37ª pior posição, para a 19. Uma melhora de 18 posições. Quase 100% de subida!

    A Fundação Limão me premiou e eu aumentei a colaboração com eles. Agora contratamos via prefeitura os materiais “on-line” deles e eu passei a dar “curso de atualização” para os professores com os profissionais indicados por eles. Tá todo mundo feliz. Meritocracia na veia, e – sabe como é – “dinheiro não é problema”. Tivemos duas alunas e um aluno que se destacaram. Inteligentíssimos. Indiquei para a Fundação. Já entraram em contato com as famílias. Uma vai ganhar para Harvard e a outra já está com ensino on-line, com os melhores professores da Limão, para preparação para a Olimpíada de astrofísica (que também é patrocinada pela fundação). Em breve estas duas alunas serão usadas como “case” de excelência. E os outros 998 alunos ... bom, serão ótimos trabalhadores, obedientes e capazes de seguir ordens. Poderão ter famílias felizes e, afinal, o que mais podem querer um bando de pobres coitados sem talento que tiveram o azar de nascer nesse mundo tão competitivo?

    Em quatro anos eu criei uma legião de mentes dóceis, submetidos às coisas do mundo e sem preocuparem-se em mudar nada. Itapipoca segue aqui no mesmo lugar, não temos universidade e a região não se desenvolve muito. Só o suficiente para poder ir comprando na Amazon e clicando no Twitter. As votações aqui passaram a ser todas no nosso partido. A direita manda. Ninguém questiona, trabalha! Outro dia surgiu aqui uma fake news que pegou a cidade toda, mas era a nosso favor. Garantidos estão os votos da cidade para o projeto político da direita pelos próximos 30 anos. Garantida a manutenção da ordem internacional na hierarquia dos conhecimentos. Até o ano que vem, vamos fazer um curso de programação em Php para os alunos aqui na cidade. Vai ser um estouro. Claro que o resto do mundo já fala em inteligência artificial, mas o que mais querem esses coitados de Itapipoca?

    Com os prêmios que recebi da Fundação Limão, minha carreira decolou. Agora fui projetado para secretário nacional. A mesma fórmula: (j)estores da Limão, redução educacional, incentivo financeiro para poucos professores, material on-line deles, e tudo isso agora embalado em “escolha seu itinerário” e “educação do século XXI”. Esse pessoal da Limão é impressionante. As pessoas estão batendo palmas que agora seus filhos pode “escolher” o que querem estudar. Aqui em Itapipoca eles podem escolher entre auxiliar de serviços gerais ou garçom. Bons garçons, aliás. Os melhores a gente envia para fazer o técnico em secretariado executivo bilíngue. O que importa é o “score” do IDEB e minha carreira.

    Tudo indo bem. Agora, quem poderia imaginar que eu seria convidado para fazer isso num governo de esquerda? Quem acreditaria? Pois é. É a rendição desses comunistas de sofá às nossas ideias. O mundo explicado como nós entendemos (trabalho, obediência, meritocracia) e eles batendo palmas para tudo. Antes eu trabalhava para uns que gritavam “mito”, agora para outros que gritam “não critique”. Mas tá tudo certo. Em quatro anos nada vai mudar (a não ser a notinha no IDEB), eles vão perder a eleição e a Fundação Limão – e eu – estaremos lá com o próximo governo. De direita. Eu espero.

    * Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.

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