Guerra Civil
"Que a força do humano, do pensamento, do saber, da cultura, da arte, vença a força das armas", escreve o diretor teatral e apresentador Aderbal Freire-Filho
De um lado, o assassino Bolsonaro e os seus cúmplices militares e civis, trazendo a memória infame de ustras e curiós, saem do Palácio do Planalto e dirigem-se a pé ao Supremo Tribunal Federal. Cruzam com os nazi-fascistas seus apoiadores, que os saúdam com bandeiras de outro brasil, camisetas pretas, tênis modernos, gritos de guerra ahu ahu ahu brasil brasil brasil. Seguem adiante e entram à força no edifício do Supremo, para pedir a morte dos brasileiros. Diante dos ministros, o miliciano-mor, amealhando palavras no seu vocabulário paupérrimo de bronco, socorrido sempre por issos daís e talkeis, diz:
“Senhores Ministros do Supremo, honro-vos com a minha presença e desses canalhas amigos que me seguem, pois os senhores sabem que bastava ter mandado um jipe e dois soldados; venho dizer aos senhores que minha promessa de campanha de matar 30 mil agora vai à força e com juros: exijo que sejam mortos 30 milhões de brasileiros. E quem manda sou eu. Cala a boca você aí, talkey”.
Dá meia volta, volver e partem todos. Voltam para o Palácio, para conspirar. Nem resultado de exame, nem condução coercitiva em caso de recusa a depor, quem esse juiz pensa que somos, nem vídeo de reunião, nem Queiroz, nem mandantes do assassinato de Marielle... Falsos patriotas que reverenciam a bandeira dos Estados Unidos da América e usam o nome do povo em vão. Povo, para eles, são aqueles coitados, amém, do cercadinho matutino e vespertino dos “cala a boca” e dos “e daí”.
Do outro lado, uns brasileiros saem do Congresso e se dirigem por sua vez ao mesmo edifício do Supremo. Uns brasileiros que estão acima do tempo, porque a história está do lado deles. Eles são o Brasil verdadeiro: um povo em construção, que mais uma vez precisa resistir a uma interrupção desumana no secular processo para juntar raças diversas – índios, africanos, brancos, tantos mais – numa terra de esperança. Uns brasileiros, uma multidão de brasileiros. Eles saem do Congresso e não param de sair, eles são muitos, muitos mais do que podiam caber naquele edifício desenhado por Niemeyer e construído por candangos. Não são deputados, embora alguns sejam; são os eleitores livres, os que não se deixam enganar, são mulheres e homens que saem daquele edifício como se saíssem de todas as partes deste Brasil enorme. Uma comissão caminha adiante: Ulisses Guimarães, Zumbi dos Palmares, Chiquinha Gonzaga, Joaquim Nabuco, Marielle, Lima Barreto e Machado de Assis abraçados, Dona Ivone Lara, Antonio Candido, Anita Garibaldi, D. Helder Câmara, Dona Menininha do Gantois, impossível nomeá-los todos, Antonio Vieira, nascido em Portugal e baiano de alma, Zilda Arns, Raul Seixas, Leila Diniz, Tarsila do Amaral, se nomeio esses é que bato o olho e vejo, mas estão todos os que admiramos e para onde olho reconheço diferentes que são iguais na grandeza, meu tio Luciano, meu pai, minha mãe Maria e sua irmã Ângela, Niemeyer, o doutor Sócrates, Pixinguinha, Clarice Lispector... todos caminhando em direção ao Supremo Tribunal Federal, com porte altivo, ninguém tem coragem de interrompe-los, a visão desses brasileiros e brasileiras incendeia peitos e corações. Eles chegam ao Palácio, as portas se abrem, eles entram e avançam até o salão onde estão os ministros.
Agora é a vez dos brasileiros. Diante dos ministros do Supremo, Joaquim Nabuco lembra outros tempos e uma mesma urgência. Diz, como já dissera um dia:
“A escravidão já nos tinha completamente arruinado, quando veio o abolicionismo. Não repitam o defeito das soluções de estadistas do passado... soluções, como eu disse naquele tempo, que só têm o defeito de serem póstumas”.
Faz-se um silencio. E é Leila Diniz quem quebra esse silencio:
“Porra, cacete, vocês acham o que, #%&#*&#”?
Em seguida, o doutor Ulisses:
“Já podiam ter evitado isso tudo mandando prender essa besta no dia em que, da tribuna do Congresso, elogiou um torturador, o mais desumano de todos. Nabuco foi cortês, com vocês; mesmo tomada hoje, uma atitude redentora já será póstuma. Mas, enfim, em nome da Constituição que eu tive a honra de proclamar, venho cobrar dos senhores que defendam o Brasil do mais repugnante dos políticos nascido nessas terras, que os senhores deixaram que chegasse tão longe. Vocês sabem que na Constituição que promulguei estão todos os instrumentos para manter a democracia. Se os tivessem usado antes, já poderiam ter parado com esse desatino”.
Os ministros do Supremo calados. Depois de Ulisses, outros falam. Às vezes duas ou mais vozes juntas dizem as mesmas palavras, o espetáculo que todos dão é potente e belo e também trágico como o coro de uma tragédia grega. Finalmente, a intimação ao Supremo termina com música: Dona Ivone Lara solta a voz, o samba não pode parar... e, suavemente, Joaquim Nabuco canta uma música de Caetano, com letra sua.
Hoje parece que chegamos ao final.
Realidade e ficção, juntos. Um lado e outro. A guerra civil.
Que a força do humano, do pensamento, do saber, da cultura, da arte, vença a força das armas.
* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.
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