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    Cristiano Addario de Abreu

    Doutor do Programa de Pós-graduação de História Econômica/USP (PPGHE/USP).

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    Institucionalidade republicana e Forças Armadas: Pacto Geiseilzista e Neodesenvolvimentismo

    A falência e destruição institucional no Brasil bolsonarista emana da ditadura narrativa do ultra liberalismo econômico, há 40 anos repetido pela mídia

    (Foto: Agência Brasil)

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    Um ponto que merece um artigo especial, é o papel das FFAA nessa destruição institucional que o Brasil vive sob o capitão miliciano expulso do exército por planejar atos terroristas[1] contra as Forças Armadas, que ele jurava defender. A destruição de países se faz com pessoas como essa. Países como Sudão, Líbia, Iraque, Iugoslávia, e hoje a própria Ucrânia, atirada nesta guerra pela OTAN, sob um político anti-política, o ex ator de TV, que virou presidente, demonstram como o imperialismo não está de brincadeira, e que as nações não são eternas. Há planos mundiais de um mapa da guerra que se alastra em países que escolhem avacalhar suas instituições. Começando pela instituição por excelência: o Estado. 

    E este é o ponto defendido aqui: que a falência e destruição institucional no Brasil bolsonarista emana da ditadura narrativa do ultra liberalismo econômico, há 40 anos repetido pela mídia. Tal ultra liberalismo destrói a democracia, a convivência civilizada, e por fim o próprio Estado. Estado que é o chão e a espinha vertebral de todas as instituições nacionais. Quando a elite das FFAA embarca em peso nesse ultra liberalismo econômico é possível que uma fragmentação territorial, à la Sudão, esteja sendo desenhada no horizonte nacional: Forças Armadas sem nenhum nacionalismo é uma contradição em si. 

    A defesa do Estado, com nacionalismo político só existe com alguma soberania econômica. Por isso uma agenda econômica, minimamente soberanista, é inescapável, e muito presente nos círculos militares historicamente. Ou deveria assim ser... Mesmo na fundação da Petrobrás temos exemplo disso, com a participação ativa de militares nacionalistas então. Hoje o absurdo mergulho de militares na agenda Paulo Guedes é a pinochetização total de grande parte da elite militar. Que comete a regressão institucional de ser contra o fortalecimento do Estado que paga seus honorários(e o de suas filhas e viúvas...). Nessa elite militar, que é ultra liberal em economia, há uma otantizaçãoda agenda: parece que eles não trabalham para o Brasil, mas para a OTAN. O econômico e o político são conectados, e a repetição em mantra da defesa do liberalismo econômico mais simplório, repetida por toda a mídia monopólica, parece que contaminou de vez certa elite militar no Brasil. O que causa riscos institucionais severos ao Brasil. O professor Darcy Ribeiro tinha toda razão quando dizia que a formação dos militares brasileiros precisava passar pela Universidade pública.

    Parte desses militares ultraliberais até emitiram um documento defendendo um SUS pago[2]. O SUS é a maior construção institucional democrática feita pela sociedade brasileira. O SUS é uma Instituição brasileira feita pela nossa Constituição Cidadã de 1988. Defender o SUS é defender a institucionalidade democrática do Brasil. Pois um grupo militar ousa, nem terminada esta pandemia, a pregar uma privatização do SUS, sempre via organizações um tanto suspeitas, tendo como uma liderança simbólica o alquebrado gal. Villas Boas em sua cadeira de rodas. O custo do tratamento de saúde deste general é astronômico, pago por todo o povo brasileiro, mas sem a menor percepção do ridículo macabro que cometem, eles emprestam tal imagem como símbolo de um projeto de destruição da gratuidade universal do SUS. Rasgando a maior conquista da Constituição de 1988, e assim propõe dividir o Brasil em castas.

    Esse mergulho militar no liberalismo econômico é uma novidade perigosa na história brasileira. E se desenha como uma força que coloca em risco a própria existência do Brasil como o conhecemos. 

    O Estado, sobretudo num país com as dimensões continentais do Brasil, precisa ter algum controle sobre bases materiais estratégicas: energia, tecnologia militar e produção alimentar... Coisas mínimas para um país ser independente. Ou como ensinou o general da guerra de independência americana, e seu primeiro presidente, George Washington: um país para ser independente precisa ser independente na produção de duas coisas: alimentos e armas. Hoje incluímos neste esquema uma terceira: a energia. O Brasil com suas estatais estratégicas como Petrobrás, Eletrobrás, EMBRAPA, tem um histórico de segurança estratégica feito em sua produção nacional. Quem criou as primeiras estatais foi Vargas, mas o regime militar não privatizou tais empresas: ao contrário. Até as expandiram, como no governo Geisel. 

    O auge do desenvolvimentismo brasileiro foi vivido com JK, com a criação do que os teóricos batizaram de “modelo do tripé”: estatais, multinacionais, e empresas nacionais privadas. Esse esquema, com as estatais em áreas estratégicas com investimentos de longo prazo(como energia), as multinacionais em bens de consumo duráveis(como automóveis, eletrodomésticos...bens que o Brasil não tinha tecnológica para produzir sozinho), e empresas privadas nacionais nos nichos que exigiam menor tecnologia(autopeças, empreiteiras..), foi como o Brasil chegou a oitava economia industrial do mundo em 1980. Tal modelo é herdeiro direto da tradição intelectual oitocentista do Sistema Nacional de Economia Política. Um estado ativo e interventor em áreas sensíveis e estratégicas é vital para o desenvolvimento. Como os autores norte-americanos do American System do século XIX defendiam fortemente: com a defesa de política tarifária agressiva e internal improvements. Estes últimos feitos com financiamento público. Digo isso para lembrar algo que os americanos do século XIX sabiam muito bem, tal e qual a elite brasileira do começo da república também, mas que  a ”elite” brasileira atual se esqueceu perigosamente: defender o desenvolvimento capitalista é diferente de defender o liberalismo econômico. Lincoln defendia o desenvolvimento do capitalismo industrial nos EUA, via todos os esquemas protecionistas do sistema nacional de economia política, contra o liberalismo britânico. 

    O liberalismo econômico é uma doutrina iniciada por Smith e finalmente estruturada por David Ricardo no começo do século XIX, que em pouquíssimos lugares independentes, por pouco tempo, foi posta em prática de forma literal. Frente esta doutrina, lógico-dedutiva, em que os dogmas e certezas matemáticas estão acima da história, a realidade costuma se impor posteriormente: alegam esbravejantes que seguirão o liberalismo em tudo, mas na prática sempre realizam subterfúgios com a realidade que se impõe. Como o próprio Chile de Pinochet, quando não privatizou sua exploração de cobre(a principal do país), assim como não privatizou a aposentadorias de militares, nem do judiciário, mas de todos mais do povo chileno sim. Ou quando bolsonaro hoje busca intervir na política dolarizada de preços da Petrobrás... A realidade sempre nega o dogmatismo liberal.

    Mas essa obsessão em seguir o liberalismo de forma zumbínica, fora da realidade, é uma construção(desconstrução) narrativa dos anos 1980 para cá: qualquer político do século XIX, como o nada esquerdista Bismarck, daria muitas risadas ao ver algum governo muito preocupado em seguir David Ricardo ao pé da letra. Aliás, Bismarck via os espaços que em seu tempo faziam isso: eram as colônias europeias na África, e sul e sudeste da Ásia.

    Em verdade os conservadores sempre olharam para doutrinas liberais com um riso no canto da boca: liberalismo econômico, para eles, era para a Índia.... E não só conservadores: todos os federalistas, whig(liberais) e republicanos, na história política dos EUA, nunca seguiram os ditames liberais, muito ao contrário. Sempre defenderam e praticaram, as maiores tarifas protecionistas do mundo, e defendiam as internal improvement, com participação estatal em melhorias e investimentos de longo prazo. Ou dito de forma mais clara: o capitalismo nos EUA foi feito, e pensado, por homens hostis às doutrinas liberais em economia. Como nos ensina Fernand Braudel: capitalismo é uma coisa, e o liberalismo econômico é outra[3]. Os americanos sempre souberam disso: e defenderam a proteção de seu mercado interno na estruturação de seu sistema, enquanto hoje pregam aos outros países subdesenvolvidos que façam o que eles não fizeram por todo o século XIX: que abram suas economias. 

    O sistema americano, que aqui falamos, foi o primeiro modelo e sistema nacional de economia política, desenvolvido nos EUA, e teorizado pela primeira vez pelos teóricos do American System no começo e meio do século XIX. Os alemães, com List, seguirão esse sistema, e a Escola Histórica de economia alemã será herdeira disso. Mas a primeira foi nos EUA, que teorizou e praticou o Sistema Nacional de Economia Política.

    Dito isto, qualquer patriota, republicano ou conservador, do século XIX não estaria preocupado se o Financial Times iria lhe considerar um “socialista” se ele defendesse empresas estatais em seu país, para quebrar o monopólio privado internacional: pois eram pragmáticos defensores de um sistema nacional. Mas o que ocorre hoje, deste discurso acusando socialismo em tudo o que não for o liberalismo econômico mais dogmático, é uma desonestidade teórica absurda, cujo objetivo político é esconder da opinião pública a narrativa analítica que explica e positiviza o Sistema Nacional de Economia Política. E que suspeito: quando entendido pela maioria do povo brasileiro é a expressão do que eles costumam querer como economia política. Por isso é tão importante para mídia esconde-lo.

    Em verdade, bem antes mesmo da revolução russa de 1917, os intelectuais da direita republicana ocidental, honestos intelectualmente, sabiam que havia três sistemas econômicos no mundo moderno: o liberalismo individualista, o positivista(termo da época)sistema nacional de economia política, e o socialista. 

    Como nos explica o republicano histórico, nada socialista, do começo da república brasileira, o papelista Amaro Cavalcanti, que nos ensina:

    No terreno da sciencia e da pratica três systemas econômicos encontramos nós, aos quaes se poderia qualificar de systema socialista, systema individualista, e o systema positivo ou experimental: os dous primeiros .procuram resolver o problema medeante formulas absolutas; o ultimo, segundo os elemento históricco de cada povo e a relatividade das circunstâncias.[4]

    Vê-se que no começo da Primeira República no Brasil isso era conhecido. Por que um advogado e teórico econômico do começo da república sabe isso, e hoje tal informação é tão negada à opinião pública? Porque há uma ditadura narrativa que resolveu censurar qualquer proposta de economia nacional. Que me desculpem a polêmica que posso causar, mas a China pratica e organiza sua economia num sistema de economia nacional desde os anos 1978. Com socialização da terra, economia privada junto, mais multinacionais... Mas as empresas nacionais chinesas são centrais no esquema de crescimento chines atual, cujo foco é acelerar a industrialização, e seu plano de capitalismo nacional industrializante.... É sim uma continuação do Sistema Nacional de Economia Política em versão chinesa. Como o Brasil fez parcialmente no século XX. E os EUA assim também o fizeram no século XIX e começo do XX, na estruturação de sua industrialização (EUA foi o pioneiro!). O Sistema Nacional de Economia Política é a base histórica para as políticas das estatais com Vargas, e depois com o tripé de JK(empresas privadas nacionais, multinacionais, e Estatais), que o Brasil fez com sucesso em seu desenvolvimentismo no século XX. 

    Os que têm “saudades” dos anos do “milagre econômico”, e identificam isso com “os militares”, não sabem que eles têm saudades é do Estado desenvolvimentista que os militares não mataram. O discurso privatista ocorreu no golpe de 1964, mas não na prática: mesmo na reforma Campos-Bulhões não privatizaram, e ainda regulamentaram melhor o funcionamento das estatais. Mas a agenda industrialista dentro do regime militar viveu seu auge no II PND de Geiseil(1974-1979), que também começou a abertura política do regime. Contra a abertura política e o estado ativo na economia se levantou um grupo liderado por Silvio Frota: grupo mais “liberal” em economia, e politicamente muito mais repressivo e violento, inspirados no Pinochetismo. Geisel vence e Frota é exonerado. 

    Bolsonaro é herdeiro de Frota, antinacional em economia e hidrófobo em política. Bolsonaro é um ressentido desprezado até pelos militares profissionais[5], e degrada todas as instituições do Brasil, sobretudo as militares. Sua turma é dos militares identificado com esta linha frotista: como o general Heleno, que era assessor de Silvio Frota nos anos 1970. Bolsonaro é miliciano, que é a privatização da violência, não é militar.

    É preciso isolar este movimento de extrema direita militar, que não corresponde a maioria da frota e dos praças, que são nacionalistas sinceros, e não colonizados privatistas. Há um descolamento perigoso de uma elite militar abraçando o ultraliberalismo econômico. Novamente: isso é inédito, desta forma e neste nível, no Brasil. Ser de direita (linha política sempre dominante nas Forças Armadas) nunca foi ser ultraliberal. Muito ao contrário.... Há uma mentira, muito repetida pela mídia, de que tudo o que não for liberalização de captais e privatizações, é de esquerdo. Mentira histórica.

    Talvez para buscar apoio do centro dinâmico mais à direita, a defesa de um pacto contra a miliciana quebra de hierarquias militares e essa ultra liberalização em economia, um movimento civil-militar precise ser articulado. Talvez pudesse ser chamado de Pacto Geiselzista. Sei que apanharei de milhares na esquerda por sugerir isso, mas precisamos falar pra fora de nossos círculos, e reconquistar o centro dinâmico na sociedade. E mostrar que Bolsonaro é herdeiro de Silvio Frota e da ralé do porão dos torturadores, e sempre criticou o “comunismo” do governo militar(1964-1985). Tal estratégia pode trazer muitos simpáticos a memória do regime militar para o nosso lado Republicano. Além do que a esquerda precisa conversar com as Forças Armadas. Poucos nela, como Aldo Rebelo e José Genoino, o fizeram. As Forças Armadas precisam querer uma República unificada, num pacto político/econômico em que o Povo caiba(bem diferente do proposto sobre privatizar o SUS), ou vão apoiar o Brasil virar uma rachada e escravista Confederação miliciana? Que é o projeto bolsonarista... Há no discurso ultraliberal um projeto de destruição do Brasil. 

    Immanuel Wallerstein previu na continuidade da crise do capitalismo, que vem desde os anos 1970, três caminhos nos quais as regiões irão entrando: uma saída socialista(a menos provável segundo ele), uma neofascista dos monopólios privados(que é o que se desenha no Atlantismo de um lado e na Rússia de outro...), e por fim uma regressão neofeudal.

    O caminho mostrado por Bolsonaro é o da regressão neofeudal miliciana, agrária, centrada em atividades primárias, com privatização total da violência, com a atomização dos produtores brasileiros, sob o controle dos monopólios privados internacionais (Atlantistas). O Brasil tem um histórico de desenvolvimentismo, que alimenta suas forças progressistas, e a retomada deste caminho passa, obrigatoriamente, pela retomada da valorização das Estatais. Sobretudo num mundo arrastado pela guerra sobre os recursos naturais. O esquema futurólogo em tripé, previsto por Immanuel Wallerstein, é muito bom para pensarmos. Mas não somos obrigados a concordar com tudo. Uns dirão que a China configura o que Wallerstein previu, indo para o socialismo. Suspeito que, por mais que as soluções práticas se misturem, eles mostram que a China está mais no sentido do desenvolvimento de seu capitalismo industrial, na trilha do Sistema Nacional de Economia Política, em versão chinesa. E é isso que devemos lembrar aos brasileiros, de esquerda e de direita: há um caminho industrializante, que o Brasil já trilhou com Vargas, JK, Jango, e mesmo com os militares(com absurdos arrochos salarias e inflação no caso...), e que este caminho em NADA TEM A VER COM O QUE bolsonaro oferece. 

    Para sairmos dessa catástrofe, um pacto republicano Neodesenvolvimentista é a saída. E que pelas instituições militares, depois do inverno bolsonarista/frotista, será preciso a feitura de um Pacto Geiselzista, em defesa das estatais, da soberania nacional, da democracia e das instituições. E é explicando como tal tradição nacional desenvolvimentista em política econômica foi a chave para o crescimento do Brasil que faremos as pessoas escutem e relativizarem tanto ódio e preconceito induzido nelas. Pois o golpe segue que se colocou no Brasil pode ter muitos epílogos. Para desarmar esse gatilho golpista, assim como o gatilho do “Estado mínimo”(para os pobres só) que ataca o SUS, estimulando o genocídio do povo brasileiro feito por eles, desarmar o gatilho do massacre econômico proposto pelo estagnacionismo liberal é fundamental. 

    A verdadeira arma do lado republicano, abolicionista e unionista, dessa guerra, são as ideias: as palavras lógicas. Ou, como dizia o lema de campanha do deputado petista, e professor da USP, Florestan Fernandes nos anos da democratização dos 1980: “contra as ideias da força, a força das ideias”

    [1] https://www1.folha.uol.com.br/poder/2017/05/1884033-bolsonaro-admitiu-atos-de-indisciplina-e-deslealdade-no-exercito.shtml  [2] https://www.poder360.com.br/brasil/em-projecao-para-2035-militares-citam-sus-pago-e-globalismo/  [3] BRAUDEL, Fernand. La Dynamique du Capitalisme. Ed. Flammarion, 1985. [4] CAVALCANTI, Amaro. Política e Finanças. Ed. Imprensa Nacional. Rio de Janeiro, 1892. Pg 319 [5] https://www.diariodocentrodomundo.com.br/geisel-detestava-bolsonaro-mau-militar-fora-do-normal-vivandeira-da-ditadura-por-kiko-nogueira/ 

    * Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.

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