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    Fernando Lionel Quiroga

    É professor da Universidade Estadual de Goiás (UEG), na área de Fundamentos da Educação. Doutor em Ciências pela Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP)

    38 artigos

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    Inteligência artificial, ideologia e política

    "Se vê florescer o projeto subterrâneo da intensificação do trabalho, a queda nas condições de vida e a racionalidade técnica e implantada nas relações sociais"

    Inteligência artificial

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    No livro "Guerra, Tecnologia e Fascismo", Herbert Marcuse analisa, em um dos ensaios, os modos pelos quais o nazismo teria desenvolvido uma nova mentalidade alemã. Para Marcuse, tal mentalidade manifestava-se através de duas camadas, a saber: a) pragmática - constituída de um sentido prático, filosofia da eficiência, êxito da mecanização e racionalidade instrumental; b) mitológica - relativa ao neopaganismo, racismo e naturalismo social. O plano subjacente a esta estrutura teria como propósito central a intensificação do trabalho por meio de eficientes técnicas de dominação sob o comando da velha plutocracia capitalista. Mas, para levar a cabo tal projeto, seria necessária uma ideologia que a justificasse. Mas, de que modo fazê-lo? Ou, genericamente: como a ideologia funciona? Há sempre um propósito objetivo, racional, por assim dizer, subjacente aos programas de governo.

    Há uma verdade crua, objetiva, conhecida apenas pelo poder econômico, que não convém ser propagada aos quatro ventos, ao conhecimento público. Óbvio: o clube dos poderosos - travestido pelo epítome da comunidade internacional - tem tudo a seu favor para articular os modos como irá atuar. Que o Nacional Socialismo tenha melhor se ajustado aos interesses do capitalismo implica dizer que sua ocorrência histórica não se encerrou com o fim da Segunda Guerra. Deste contexto se vê florescer o projeto subterrâneo da intensificação do trabalho, a queda nas condições de vida e a racionalidade técnica e cínica implantada nas relações sociais. Ora, descontadas as características históricas da Alemanha daquela época, o que sobra - isto é, seu núcleo ideológico - pode bem servir como modelo explicativo para o florescimento do que hoje chamamos de extrema-direita, a qual o Brasil experimentou sob o governo de Jair Bolsonaro.

    Das categorias analisadas por Marcuse sobre a nova mentalidade alemã - que, se bem aplicadas, podem lançar luz sobre o modus operandi do capitalismo avançado, destacam-se, a politização integral, o desprestígio integral, o sentido prático cínico, o neopaganismo, o giro dos tabus tradicionais, o medo. Diante destes ângulos, a tecnologia é a grande propulsora da lavagem cerebral em curso. Marcuse escreve: “Na tecnologia não existe verdade nem falsidade, não existe bem nem mal, correto ou incorreto; somente há adequação ou inadequação com relação a um fim pragmático” (Marcuse, 2001, p. 197-198 - tradução livre do espanhol). O que podemos aprender, após este breve exercício de olhar para a história em sentido pedagógico, é que: a) mesmo que Bolsonaro seja finalmente preso - e isso é imperativo - o fascismo seguirá vivo, renovando a fábula que pretende nos contar; b) para além do poder de alcance do governo Lula, a ideologia segue em paralelo, como um quarto poder, agindo em tempo real sobre nossas almas. Deste último ponto, cabe destacar o frenesi com que tem se apresentado o debate da inteligência artificial. A ampla disseminação destas tecnologias já apresenta os primeiros resultados: um voraz apetite das massas que se voltam em sobressalto para tudo o que tem se dito sobre elas. A curiosidade sobre aquilo que pode, em tese, substituir nossa essência - a inteligência - é o que mais espanta. “O que a IA pode fazer?”, é a pergunta da vez. Mas não se trata apenas disso. Levando-se em conta a relação do homem com a máquina, a IA pode ser uma metáfora de uma ponte do homem sobre si mesmo; ou, em uma palavra, um distanciamento do homem de seu “eu”, cujo desfecho é o hikikomori, isto é, o sonho mais bem acabado do neoliberalismo: a energia humana 100% absorvida pelo digital.Um sujeito integralmente capturado, subjugado, dominado.

    O mistério da ideologia é que, por ela atuar pela via do prazer, termina por produzir um desequilíbrio sombrio à busca por desprazer - e é aqui que a ideologia chega à automutilação como fenômeno presente nas sociedades contemporâneas. A IA é o apogeu da racionalidade técnica descrita por Marcuse. Dela, tudo podemos esperar. Desde que nos poupe esforços mentais e obedeça toda vez que lhe pedimos uma música, abaixe o tom da luz, auxilie-nos em nossas profissões e ajude-nos nas tarefas educacionais de nossos filhos, todo o resto parece tolerável. Mas, uma coisa deve ficar clara. O que a IA - última heroína do capitalismo - parece estar nos comunicando não sem cinismo é a seguinte mensagem: tudo bem, fiquem com o corpo; nós ficamos com a alma.

    * Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.

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