Luiz Gama. Um brasileiro inesquecível
Durante os seus 52 anos de vida, com sua resiliência, prodigiosidade incomum e determinação na luta progressista, deixou o seu exemplo para todos nós
“Nas pontas do açoite está o emblema do rancor do escravo: às vezes, há nas pontas do açoite marcas de sangue. Tudo isto é repugnante, é repulsivo, é horrível; mas tudo isto se acha intimamente ligado com a escravidão, e absolutamente inseparável dela. Onde há escravos é força que haja açoite. Onde há açoite é força que haja ódio. Onde há ódio é fácil haver vingança e crimes”. (J. M. de Macedo, do romance Vítimas e Algozes)
Em toda relação humana, bem como na história de todas as nações, aparecem fatos inesquecíveis e pessoas inesquecíveis. Luiz Gonzaga Pinto da Gama, nascido em Salvador, em 21/06/1830, e batizado em Itaparica aos 8 anos de idade, ostenta uma biografia marcante e generosa, uma contribuição contundente à luta abolicionista, em defesa de escravizados e contra a escravidão. Durante os seus 52 anos de vida, com sua resiliência, prodigiosidade incomum e determinação na luta progressista, deixou o seu exemplo para todos nós. Vejamos o que falou Rui Barbosa, em discurso, em 2011:
“para não nomear os vivos, lembrarei apenas Luiz Gama. Uma das raras fortunas da minha vida é ter cultivado intimamente a sua amizade, em lutas que nunca esquecerei. Um coração de anjo, uma alma que era a harpa eólia de todos os sofrimentos da opressão; um espírito genial; uma torrente de eloquência, de dialética e de graça; um caráter adamantino, cidadão para a Roma antiga, inaclimável no baixo império; uma abnegação de apóstolo: personalidade de granito, aureolado de luz e povoado pelas abelhas de Himeto. Se eu houvesse de escrever-lhe um epitáfio, iria pedir este ao poeta da Lenda dos Séculos: De verre pour gémir, d’airaim pour résister”.
No mês de novembro, quando celebramos a consciência negra, em homenagem a Zumbi dos Palmares, líder do principal quilombo brasileiro, morto em 20/11/1695, quero lembrar Luiz Gama, ex-escravizado, intelectual, e advogado prático, que recebeu por concessão da OAB o título de advogado, em 04 de novembro de 2015, 133 anos após a sua morte. Depois de alfabetizado, de ter adquirido grande conhecimento jurídico e intelectual e ter conquistado a sua alforria, tentou estudar direito na Faculdade de São Paulo, fora recusado por ser negro, então passou a execer a profissão de advogado, por seu notório saber, tendo libertado mais de 500 escravizados, que como ele, ao arrepio da lei, viviam em cativeiro. Para esclarecer, este número foi retirado de uma carta que ele dirigiu a um amigo, em 25 de julho de 1880 e se refere apenas às ações jundiciais impetradas na condição de advogado, mas Luiz Gama participou ativamente como ativista da luta abolicionista, auxiliando as fugas de negros, a organização de quilombos e ao convencimento de pessoas a se somarem a estas atividades.
Quando Castro Alves e Rui Barbosa chegaram em São Paulo para continuar os seus estudos jurídicos, fizeram grande amizade com Luiz Gama, participaram ativamente dos movimentos abolicionistas e republicanos, partilharam de várias atividades intelectuais, das ações legais e, para a época, ilegais com o intuito aprofundar a consciência antiescravista na sociedade e libertar concretamente o maior número de escravos.
O Estado de São Paulo, com o início do da expansão da cafeicultura, era um dos centros nevrálgicos da luta política do país. Aqui, o partido Republicano se fortalecia com a presença de Luiz Gama e com a Maçonaria. Entretanto, a tensão no interior deste partido era grande, pois muitos senhores de terra eram escravocratas e republicanos. Campinas tinha a fama de senhores de escravos mais cruéis e Santos, talvez por influência dos ingleses da ferrovia, dos Andrada ou de outros fatores, o centro da abolição, sediando o famoso Quilombo do Jabaquara.
Luiz Gama Colaborou com diversos jornais, pasquins, folhetins, ajudou a modernizar todas as formas de comunicação de massa, integrou-se como personalidade famosa da fervilhante província de São Paulo e, muitas vezes, dirigiu-se diretamente ao Imperador em defesa de seus representados.
Pouco antes de completar 17 anos, foi alfabetizado e aprendeu a ler e escrever, em menos de um ano, com um rapaz da sua idade, Antônio Rodrigues de Prado Júnior, que viera morar na casa do alferes Antonio Pereira Cardoso. Antônio Prado, era hóspede, viera estudar, e Luiz Gama, escravo de casa, prendado nos serviços de sapataria, copa, lavar, costurar e engomar roupas. Ficaram amigos. Sabendo ler, o jovem Luiz ardilosamente reuniu as provas de que nunca fora escravo e que nascera livre, tentou convencer o Alferes, mas este não aceitou de forma nenhuma. Então Luiz Gama fugiu e assentou praça na polícia e chegou a patente de cabo durante os 6 anos que serviu.
O alferes Antônio, apesar de ter-se afeiçoado e colocado o menino Luiz para fazer trabalhos domésticos, não era flor que se cheirasse; fez fortuna comprando e vendendo escravos. Luiz Gama fora comprado no Rio de Janeiro, pelo Alferes, num lote de cem escravizados, meteu estes escravizados num pequeno navio e os trouxe para Santos, de Santos os fez virem a pé até Campinas. imaginem uma criança de 10 anos subindo a serra do mar aos tapas e empurrões.
Durante a caminhada Antônio tentou vender Luiz Gama; a todos aos quais ele foi oferecido, quando sabiam que era baiano o recusaram, pois neste período a Bahia ficou famosa pelas diversas rebeliões escravas, em particular a revolta dos Malês em 1835, severamente reprimida, e 2 anos depois, a Sabinada, revolta dirigida pelo Dr Sabino. Mais uma observação: quando Luiz já estava com pouco mais de 40 anos, soube que o alferes, seu ex-dono, havia se suicidado, pois teria sido preso, por ter mantido alguns escravos em cárceres privados, em sua fazenda de Lorena e os ter matado de fome.
Em carta a Lúcio de Mendonça, seu amigo, cuja leitura recomendo na íntegra, pois é uma autobiografia, talvez a realidade sobre seus 10 primeiros anos ainda esteja por ser descoberta, o que sabemos foi contado por ele, aos 50 anos, de memória. ”Oh! Eu tenho lances doloridos em minha vida, que valem mais do que as lendas sentidas das vidas amarguradas dos mártires”.
Ele conta em sua carta:
"Sou filho natural de uma negra, africana livre, da Costa Mina (nagô de nação), de nome Luiza Mahin, pagã, que sempre recusou o batismo e a doutrina cristã. (...) Dava-se ao comércio - era quitandeira, muito laboriosa, e mais de uma, na Bahia, vez foi presa como suspeita de envolver-se em planos de insurreições de escravos, que não tiveram efeito.
Era dotada de atividade em 1837, depois da Revolução do dr Sabino, na Bahia, veio ela ao Rio de Janeiro, e nunca mais voltou. Procurei-a em 1847, em 1856 e em 1861, na Corte, sem que a pudesse encontrar. Em 1862, soube, por uns pretos minas que conheciam-na e que me deram sinais certos, que ela, acompanhada com malungos desordeiros, em uma casa de dar fortuna, em 1838, fora posta em prisão; e que tanto ela como os seus companheiros desapareceram".
Luiz Gama dedicou várias poesias à mãe e sempre a tratou de forma muito carinhosa, transmitindo uma lembrança afetiva do pouco que com ela conviveu; não existe registro histórico além do seu relato sobre a participação política da sua mãe. Como poeta, ensaísta e advogado tem uma vasta obra, parte de suas poesias estão concentradas nas Trovas burlescas sob o codinome Getulino; fundou, juntamente com o chargista Angelo Agostini, um pasquim (se assim podemos chamar) satírico chamado Diabo Coxo. Ainda em sua carta fala do pai:
Meu pai não ouso afirmar que fosse branco, pois tais afirmativas neste País constituem grande perigo perante a verdade, no que concerne a melindrosa presunção das cores humanas: era fidalgo; e pertencia a uma das principais famílias da Bahia, de origem portuguesa. Devo poupar à sua infeliz memória uma injúria dolorosa, e o faço ocultando o seu nome.
Ele foi rico; e nesse tempo, muito extremoso para mim: criou-me em seus braços. Foi revolucionário em 1837. Era apaixonado pela diversão da pesca e da caça; muito apreciador de bons cavalos; jogava bem as armas, e muito melhor de baralho, amava as súcias (agrupamentos de má índole) e os divertimentos: esbanjou uma boa herança, obtida de uma tia em 1836; e, reduzido à pobreza extrema, a 10 de novembro de 1840, em companhia de Luiz Cândido Quintela, seu amigo inseparável e hospedeiro, que vivia dos proventos de uma casa de tavolagem na cidade da Bahia, estabelecida em um sobrado de quina, ao largo da praça, vendeu-me, como seu escravo, a bordo do patacho Saraiva.
Depois de dias de viagem, sofrida, um menino de 10 anos inicia a sua saga, enfrenta a brutalidade do crime da escravidão. As imensas barreiras encontradas por Luiz Gama, foram, para ele, obstáculos a serem superados.
O Patrono da Abolição foi o único ex-escravo brasileiro que conquistou sua própria independência, dedicou a sua vida para combater a escravidão, libertou centenas, senão milhares de escravizados, destacou-se como advogado, intelectual, poeta e escritor. Morreu aos 52 anos, em 24 de agosto de 1882 acometido por diabetes. Foi enterrado no Cemitério da Consolação com um uma cerimônia pública, uma manifestação imensa de populares, escravos, libertos, negros, brancos, mestiços, abolicionistas, intelectuais, estudantes, pobres e ricos. O povo de São Paulo talvez nunca tivesse vivenciado tamanha manifestação. A visita a seu túmulo causou alvoroço por muitos anos.
Luiz Gama faz parte dos brasileiros inesquecíveis!
* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.
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