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    Paulo Amaro Ferreira

    Historiador e professor da rede pública de ensino do Rio Grande do Sul

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    Lula e a esquerda bem-pensante

    O que precisamos nesse momento não é de um programa, no sentido estrito do termo. Precisamos colocar a classe trabalhadora em movimento, para lutar contra o Golpe como um todo, e não somente contra Bolsonaro. E é nesse sentido que a candidatura de Lula é o instrumento mais poderoso que a classe trabalhadora tem em suas mãos

    O ex-presidente Lula discursou na última quarta (10), na sede do Sindicado dos Metalúrgicos (Foto: Ricardo Stuckert)

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    Nem bem Lula recuperou seus direitos políticos (e nem se sabe até quando), e a esquerda bem pensante já iniciou seus ataques ao ex-presidente e possível candidato do Partido dos Trabalhadores. Além de todas as suas qualidades, Lula ainda tem o privilégio de ser a pessoa mais mal interpretada da política brasileira. Este que escreve, inclusive, por anos possuiu uma visão completamente distorcida sobre Lula, vindo provavelmente de uma (de)formação pequeno burguesa bastante presente na esquerda. 

    Grande parte dessas interpretações distorcidas sobre Lula consiste, justamente, em analisar Lula como uma pessoa isolada do contexto geral da luta de classes. Embora se reivindique socialista e revolucionária, a esquerda representante dos setores radicalizados da classe média, que analisa Lula sob essa perspectiva, não se assemelha, nem de longe, ao marxismo. Outro erro crasso cometido por essa esquerda, é analisar Lula fora do tempo histórico. Assim, surgem pérolas do tipo “Lula não é o mesmo de 1989”, ou então, “Lula é o mesmo de 2002”, e por aí vai. Vejam que inclusive essas duas afirmações se contradizem, como aliás se contradizem os seus autores o tempo todo. 

    Acusam Lula de não ser marxista revolucionário. Ora, mas desse crime Lula é inclusive réu confesso. Não é surpresa para ninguém, em pleno 2021, que Lula não teve uma formação, partidária ou acadêmica, que lhe fizesse comungar dos preceitos teóricos do marxismo. Lula não acredita na revolução violenta ou na ditadura do proletariado (bom, aqui cabe um parênteses, já que essa esquerda classe média também não acredita nisso). A formação de Lula ocorreu na prática social, na luta política, dentro do movimento sindical da parcela mais importante e radical da classe trabalhadora brasileira, que são só operários metalúrgicos.  E essa formação, inclusive, conferiu mais importância política e revolucionária a Lula do que toda a esquerda acadêmica reunida. Aliás, só para registrar, Lula sozinho foi muito mais revolucionário que todo o conjunto dessa esquerda classe média, ao estilo PSOL, PSTU, PCB, UP, etc. Basta lembrar que Lula foi o principal criador (e não o único, obviamente) do novo sindicalismo no Brasil, rompendo as amarras do sindicalismo pelego criado ainda na época de Getúlio, e do qual faziam parte setores da esquerda, como o PCB, por exemplo. Ou seja, do ponto de vista de organização da classe trabalhadora, Lula foi muito mais importante e contribuiu infinitamente mais, do que toda a esquerda pequeno-burguesa junta. 

    Devemos, portanto, analisar Lula do ponto de vista da sua relação com a classe trabalhadora e com a luta de classes, e ao mesmo tempo situá-lo no contexto histórico do tempo presente (nem do passado e nem fazendo um exercício de futurologia, tentando adivinhar como seria um possível governo Lula). Até porque a conjuntura de 2021 não se assemelha nem um pouco à de 1989 ou de 2002. E nisso, algumas observações rápidas sobre essas duas épocas são interessantes para nos situar dentro do contexto político de hoje. Em 1989, Lula encabeçou uma candidatura que era justamente a expressão dos trabalhadores (além dos sindicalistas, havia também uma importante parcela dos trabalhadores do campo), na sua luta econômica e política contra todos os efeitos dos mais de 20 anos de ditadura militar. Embora essa candidatura não fosse uma expressão única da classe trabalhadora, na medida em que houve uma aliança com setores da classe média e da burguesia, expressa na aliança com o PSB, é inegável que a classe trabalhadora hegemonizava a candidatura Lula de 1989. Por isso que a campanha daquele ano foi mais radicalizada e com um conteúdo de classe muito mais definido. 

    Em 2002, após haver perdido três eleições presidenciais, e após uma década de total destruição da economia nacional, a candidatura de Lula já não tinha a mesma expressão de 1989, por diversos motivos. Primeiro, porque não havia mais aquela classe trabalhadora, sustentada pelo setor mais radical dos metalúrgicos. A desindustrialização da década de 1990 atingiu em cheio não só a economia nacional, como também a esquerda, fazendo com que setores da classe média passassem a hegemonizar inclusive o Partido dos Trabalhadores (sem falar no resto da esquerda pequeno-burguesa). Em segundo lugar, em 2002 houve um fenômeno que não havia ocorrido em 1989, 1994 e 1998, que foi a divisão da própria burguesia brasileira, quando uma parcela significativa desta passou a congregar a candidatura de Lula à presidência da república, onde a expressão máxima dessa aliança se dava na vice-presdência da chapa ocupada pelo grande empresário José de Alencar. A profunda crise em que o neoliberalismo havia jogado o país após mais de uma década de duros ataques à soberania nacional, fez com que a candidatura de Lula aparecesse como uma espécie de respiro para a economia do país, além de que as forças políticas neoliberais, representadas pelo PSDB, estavam completamente desgastadas junto à população. 

    Notemos, portanto, que as oscilações das posições políticas do PT e do próprio Lula, vão muito além da rasa e moralista análise do comportamento individual de Lula. Qualquer análise pretensamente marxista precisa considerar, como elemento principal, o movimento das classes sociais a luta entre as mesmas, e não o humor ou as tendências políticas de um líder isolado, como no caso do Lula. Ou então, não é uma análise marxista, estando dentro do vasto e confuso leque das teorias liberais. 

    E é nesse sentido que precisamos levar em consideração todas as mudanças ocorridas na luta de classes no Brasil desde o golpe de 2016. Todos os ataques direcionados a Lula e ao PT, por parte da esquerda classe média, desconsideram completamente o cenário inaugurado com o golpe de estado que derrubou o governo de Dilma. Para essa esquerda, a luta de classes ocorre fora do contexto histórico. Eles desconsideram aquele princípio básico do marxismo, plasmado na célebre frase contida no 18 do Brumário, de que os “os homens fazem a sua própria história, mas não a fazem de livre e espontânea vontade, pois não são eles que escolhem as circunstâncias sob as quais ela é feita (...)”. Na cabeça dessa esquerda bem pensante, Lula vai repetir o roteiro de 2002 (pois ele não é o mesmo de 1989), e vai rearticular o bloco que se expressou na sua candidatura quando se elegeu presidente. Mas pergunto às pessoas que pensam assim: onde fica o golpe de estado nesse roteiro? Nele, onde ficam o imperialismo e a burguesia que deram o golpe no PT? Simplesmente desaparecem? Desistiram de pilhar todas as riquezas do país e entregá-las ao capital estrangeiro? Desistiram de esmagar os trabalhadores e retirar todos os seus direitos, jogando sobre nossas costas os prejuízos da crise capitalista? Seria Lula um super-homem, capaz sozinho, de fazer desaparecer todos os interesses econômicos do imperialismo e da burguesia, e estabelecer novamente um pacto nacional? Vejam que, somente ao nos levantarmos essas perguntas, já demonstra o quão absurdos são esses devaneios da esquerda classe média. 

    Que Lula não é um marxista-leninista, ou um socialista revolucionário, como já foi dito no início do texto, não é segredo para ninguém. Certamente Lula não foi submetido a uma operação ao estilo Laranja Mecânica dentro da prisão, onde seus esbirros tivessem introjetado, através de sofisticados métodos científicos, uma ideologia revolucionária. Porém, a pergunta que devemos nos fazer é a seguinte: qual o papel de Lula dentro do contexto do golpe de estado? 

    Parece bastante óbvio, para qualquer pessoa minimamente atenta às questões políticas nacionais, que Lula é o centro dos ataques dos golpistas (e também da esquerda bem pensante, curioso não?). Isso porque Lula possui uma particularidade que nenhum político da esquerda brasileira tem, que é uma relação estreita com a classe trabalhadora, uma espécie de simbiose. Ele é o político nacional que possui de longe o maior apoio popular, sobretudo entre as camadas mais pobres da população. Portanto, ele é também o que possui as melhores condições de opor uma resistência popular ao golpe, não porque ele possua uma consciência clara sobre todo esse processo (e não estou dizendo que ele não tenha), mas porque ele pode ser um instrumento de mobilização da classe trabalhadora por sua relação com ela. E é justamente essa característica e essa capacidade de Lula que amedronta os golpistas em geral. 

    A esquerda bem pensante diz: “precisamos de um programa mais radical para ser apresentado em 2022”, no melhor estilo reformista pequeno burguês, que representa na verdade o desespero da pequena-burguesia prestes a ser engolida pela crise do capitalismo e pelo grande capital. Ora senhores, se a solução para os nossos problemas estivesse contida em um programa eleitoral radical, bastaria contratarmos algum ser iluminado, vindo dos bancos acadêmicos, para que escrevesse esse programa e tudo estaria resolvido. Simples, não? Aliás, essa mesma esquerda tem se dedicado, ao longo de décadas, a escrever programas, apresentar teses super revolucionárias, quase como um manual da revolução. E no que resultou todo esse acúmulo de programas? Em nada. Ou melhor, resultou no fato de que essa esquerda super revolucionária apoiou o golpe de 2016 contra o PT, uns em um grau mais elevado do que os outros. 

    Não senhoras e senhores, o que precisamos nesse momento não é de um programa, no sentido estrito do termo. Precisamos colocar a classe trabalhadora em movimento, para lutar contra o Golpe como um todo, e não somente contra Bolsonaro. E é nesse sentido que a candidatura de Lula é o instrumento mais poderoso que a classe trabalhadora tem em suas mãos. Até porque, como podemos perceber, existe um grande esforço de todo o conjunto do golpe, desde a direita tradicional até o bolsonarismo, em impedir que Lula possa ser candidato, assim como fizeram em 2018. 

    É provável que a devolução dos direitos políticos de Lula sofra algum revés, seja por um novo julgamento do STF, seja por novos processos, ou quaisquer outras manobras políticas. Até porque, afinal de contas, a situação política não se modificou de forma tão radical, a ponto de a burguesia, o imperialismo, e portanto, o conjunto da direita, aceitarem a candidatura de Lula, que é, como todos sabemos, uma candidatura com um potencial muito grande de vencer as eleições. Outro fator a ser observado é que a devolução dos direitos de Lula não veio através de uma imposição do movimento de massas, mas sim de algum cisma dentro de certos setores da institucionalidade golpista, que na verdade ainda não ficou muito claro para nós. O certo é que o próprio regime político implantado pelo golpe está em crise, e um dos pontos de crise desse regime é a própria existência de Lula. 

    A esquerda bem-pensante diz que precisamos apresentar uma alternativa eleitoral em 2022, mais radical do que a candidatura de Lula. Perguntamos, qual seria essa alternativa de esquerda revolucionária eleitoral? Boulos? A campanha de Boulos para a prefeitura de São Paulo mais parecia uma campanha da fraternidade organizada pela Igreja, e Boulos se assemelhava a um coroinha, sendo inclusive amplamente elogiado pela grande imprensa golpista, como a Folha de São Paulo e o Estadão (estes que atacam Lula com espuma na boca). É preciso desde já afirmar, sem nenhum tipo de hesitação, que essa esquerda que se diz radical, é na verdade apenas a expressão da classe média relativamente radicalizada, e que não tem nenhum projeto e nem anseio revolucionário para o Brasil. Além disso, em que classe social se sustentam esses projetos? Na classe trabalhadora é que não é. Basta apenas pegarmos o mapa eleitoral dessas candidaturas da esquerda pequeno-burguesa para vermos de que bairros elas colhem os seus votos, todos muito bem situados no plano diretor das grandes cidades, acomodados nos condomínios de luxo, posicionados nos bancos das universidades federais. 

    Se a situação política e econômica não sofrer nenhuma alteração radical até 2022, não há dúvidas de que a candidatura de Lula será não só a alternativa mais à esquerda que existirá no país, como também a única capaz de derrotar o regime golpista como um todo. Isso porque ela certamente será um ponto de crise muito grande para o próprio regime, e deverá provocar uma reação muito forte da direita golpista como um todo. Contra Lula, unir-se-ão toda a direita tradicional, incluindo os monopólios da imprensa golpista, e também a ala bolsonarista. E claro, como não poderia faltar, alguns setores da esquerda bem pensante, que costuma atuar a reboque do imperialismo. Ou seja, o cenário é de uma grande polarização. E essa polarização não ocorre apenas no sentido eleitoral, mas fundamentalmente é uma polarização da luta de classes, onde a classe trabalhadora se expressará através da candidatura de Lula. Então, qual o nível de importância que teria o projeto dessa candidatura, diante do fato material da luta de classes? Obviamente nenhum. 

    A candidatura de Lula abre uma crise profunda no regime, e também abre possibilidades imensas de avanço na luta contra o golpe e contra todas as consequências econômicas e sociais postas em prática pelos golpistas. Para defender essa candidatura não necessita gostar da figura do Lula, nem amá-lo, ou coisa parecida. Basta apenas estar do lado certo da luta de classes. Mas, como sabemos senhoras e senhores, não nos faltará a esquerda bem-pensante, que adora andar de mãos dadas com os golpistas, e desde já levanta suas armas contra Lula, embora contra Bolsonaro tenham se comportado como animais de estimação.

    * Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.

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